Luis Felipe Miguel, Aldo Fornazieri e a disputa da Mesa

Por Valter Pomar (*)

Circulam nas redes sociais dois textos muito interessantes sobre a disputa na Câmara.

Um deles é de Luis Felipe Miguel.

Outro é de Aldo Fornazieri.

Reproduzo ao final os dois textos, na íntegra.

Luís Felipe diz que a participação da esquerda no bloco de Maia é necessária.

Fornazieri considera um erro.

Luís Felipe diz que pensava que seria melhor “ter lançado uma candidatura própria e negociado apoio só no segundo turno”, mas que agora pensa que “há fatores a serem considerados – além de que esse trem já passou”.

Quais são os fatores?

Fator 1: “a presença de um candidato próprio da ‘esquerda’, sem chances de vitória, estimularia defecções de deputados de PSB, PDT, PCdoB e até PT, que já estavam barganhando com o grupo de Maia e mesmo com Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. Melhor, portanto, garantir unidade e negociar com mais força”.

Entendi o argumento, mas não consigo entender por qual motivo os traidores deixariam de trair, caso houvesse duas candidaturas e não três.

Fator 2: “marcar posição na eleição para a presidência da Câmara só fala para os iniciados. Não tem grande repercussão política para além do círculo dos já altamente politizados”.

Também entendi o argumento, mas há pelo menos um detalhe que Luís Felipe desconsidera. A argumentação utilizada para apoiar o bloco de Maia não desaparece no dia seguinte a eleição; assim como os acordos feitos não somem.

E – para usar os termos de Luís Felipe – se a negociação não for feita às claras, se as muitas e profundas diferenças forem minimizadas, o resultado não será politizador.

Pelo contrário, “marcar posição”, tendo candidatura à presidência no primeiro turno, poderia garantir a possibilidade de politização.

Luís Felipe também fala dos acordos que poderiam ser feitos com Baleia Rossi.

Reconhece ser ilusório “obter de Baleia Rossi o compromisso de pautar o impeachment ou de abrir mão da agenda neoliberal”.

Mas acredita ser possível “garantir que os principais ataques às liberdades liberais não serão pautados – como a licença para a polícia matar (“excludente de ilicitude”) ou a mordaça nas instituições de ensino (“escola sem partido”)”.

Acho que Luís Felipe exagera quando fala em “garantir”.

Não há garantia nenhuma, em acordos feitos com o MDB de Temer, o vice articulador de golpes.

Acho que Luís Felipe também exagera quando diz que “a linha divisória na coalizão golpista, entre os que se alinham a Bolsonaro e os que querem marcar distância dele, não está no respeito à democracia, que nenhum dos lados tem. Está no quanto os direitos e liberdades liberais são ou não são preservados”.

O PSL, o MDB, o DEM e o PSDB já demonstraram inúmeras vezes que são capazes de ultrapassar a linha vermelha.

Isto não quer dizer que os dois lados sejam iguais. Mas quer dizer que eles são menos diferentes do que parecem. E que mesmo apoiando um contra outro, não devemos acreditar em promessas.

Por exemplo: se é ilusório “obter de Baleia Rossi o compromisso de (…)abrir mão da agenda neoliberal”, não seria também ilusório acreditar que basta ter “habilidade” para “arrancar o compromisso de que a pauta de Guedes não será imposta goela abaixo do Congresso”? Não será ilusório acreditar que “a presença de parlamentares de esquerda na mesa diretora e à frente de comissões” seja “importante com vistas a esse objetivo”? Ou que a “presença no bloco” sirva para “garantir isso também”?

Maia é neoliberal, o MDB de Temer também. Não há habilidade, nem garantias que resolvam este problema.

Luis Felipe diz que devemos depositar nossos esforços na luta popular. Concordo inteiramente e por isso mesmo me preocupam os reflexos da eleição para a presidência da Câmara.

Da maneira como estamos procedendo, não estamos agudizando “a disputa interna na direita, entre o bolsonarismo, João Dória e o eixo DEM-MDB que Maia capitaneia”.

Estamos fortalecendo este eixo.

E isso não é feio, nem bonito. É um erro fatal.

E quanto ao texto de Fornazieri?

Buenas, confesso que desta vez concordo com grande parte do que Fornazieri diz acerca dos erros cometidos pelo PT na disputa da presidência da Câmara.

Concordo especialmente com o seguinte trecho: “Com esse defensivismo tático e estratégico, as esquerdas parecem estar dispostas a permitir que se construa uma polarização entre a direita e Bolsonaro nas eleições de 2022”.

Mas discordo do que é dito no parágrafo final.

Lá está dito o seguinte: “As esquerdas brasileiras vivem a sua pior crise desde os tempos finais da ditadura. É a pior crise porque se trata de uma crise política e moral, uma crise de perspectivas, de ausência de fisionomia, de projeto, de direção e de sentido. Tomados por uma burocracia partidária e por uma aristocracia parlamentar, a maior parte dos partidos parece preocupar-se apenas por cargos, altos salários, fundos partidários e eleitorais e privilégios. A coragem, as virtudes combativas, a organização popular, tudo isso que constrói a grandeza e a importância histórica de um partido, parece estar morto”.

Minha opinião é que, neste parágrafo, Fornazieri abandona a análise política e converte-se num “moralista”.

Não é que inexistam vários dos problemas indicados.

Eles existem.

Aliás, sempre existiram.

Mas apesar destes e de outros problemas, a esquerda já venceu grandes batalhas e algumas guerras.

E o que fez a diferença?

O que fez partidos e líderes cheios de defeitos, muitas vezes os mesmos defeitos de agora, cumprir um papel positivo?

A resposta é: a combinação entre outra linha política e uma onda de lutas de massa, a mobilização intensa e independente da classe trabalhadora.

Portanto, penso que nosso problema não está em recriar uma imaginária liga da justiça, composta por pessoas irrealmente virtuosas.

Nosso problema está na política, não na ausência de virtudes.

Nosso problema está na luta de classes, não nos indivíduos tomados isoladamente.

Embora haja crise na direção, nossos problemas não podem ser reduzidos a uma “crise de direção”.

O que a esquerda precisa fazer é adotar outra linha política, outra estratégia, com seus desdobramentos táticos e organizativos.

E fazer de tudo para estimular a única variável que pode mudar o rumo deste jogo: a luta da classe trabalhadora. Só a luta salva.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT


 

SEGUE UM DOS TEXTOS CITADOS

Luis Felipe Miguel, sobre a disputa na Câmara.

“Entendo que seja difícil apoiar o candidato de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara dos Deputados. E não ajuda nada dourar a pílula dizendo que ele é um “democrata” ou algo assim.

Não é. Ele é um golpista a serviço da pauta regressiva do grande capital. Baleia Rossi, seu possível candidato, tem uma longa folha corrida de desserviços ao país.

Isso tem que ser reconhecido, com total clareza. Ainda assim, acho que a participação no bloco é necessária.

A “esquerda” – PSOL, PT, PCdoB, PDT e PSB – teria 132 votos (em 513) na eleição para a presidência da Câmara. Insuficiente para vencer, mas suficiente para levar a eleição para o segundo turno.

Seria melhor então ter lançado uma candidatura própria e negociado apoio só no segundo turno? Eu também pensava assim, mas há fatores a serem considerados – além de que esse trem já passou.

A votação é individual e secreta. A presença de um candidato próprio da “esquerda”, sem chances de vitória, estimularia defecções de deputados de PSB, PDT, PCdoB e até PT, que já estavam barganhando com o grupo de Maia e mesmo com Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro.

Melhor, portanto, garantir unidade e negociar com mais força.

Além disso, marcar posição na eleição para a presidência da Câmara só fala para os iniciados. Não tem grande repercussão política para além do círculo dos já altamente politizados.

Uma  negociação feita às claras, que não apague ou minimize as muitas e profundas diferenças que separam a esquerda de Maia, é mais politizadora do que simplesmente marcar posição.

Não se espere também obter de Baleia Rossi o compromisso de pautar o impeachment ou de abrir mão da agenda neoliberal. É ilusório.

Mas é possível garantir que os principais ataques às liberdades liberais não serão pautados – como a licença para a polícia matar (“excludente de ilicitude”) ou a mordaça nas instituições de ensino (“escola sem partido”).

A linha divisória na coalizão golpista, entre os que se alinham a Bolsonaro e os que querem marcar distância dele, não está no respeito à democracia, que nenhum dos lados tem. Está no quanto os direitos e liberdades liberais são ou não são preservados.

Há um setor da esquerda para o qual detonar o liberalismo é a prova máxima de radicalidade, então essa diferença se torna irrelevante. No entanto, esses direitos e liberdades (expressão, manifestação, organização, devido processo legal etc.) fazem toda a diferença nas condições em que se trava a luta popular.

Porque é nela – nas ruas, não nos conchavos de gabinete – que devemos depositar nossos esforços. É à luz dos reflexos nela que a eleição para a presidência da Câmara deve ser pensada.

Não é como apoiar um candidato presidencial “de frente ampla” e silenciar o discurso da esquerda. É o contrário. É buscar impedir que se deteriorem ainda mais as condições para que o debate público acolha o discurso da esquerda.

Com habilidade, também é possível arrancar o compromisso de que a pauta de Guedes não será imposta goela abaixo do Congresso. A presença de parlamentares de esquerda na mesa diretora e à frente de comissões é importante com vistas a esse objetivo. A presença no bloco é para garantir isso também.

Por fim, uma derrota de Bolsonaro, que está priorizando fortemente a eleição na Câmara, está longe de ser desimportante.

Ela reduz o poder de cooptação da presidência sobre os deputados. E agudiza a disputa interna na direita, entre o bolsonarismo, João Dória e o eixo DEM-MDB que Maia capitaneia.

É bonito? Não é, não. Mas a política não é recomendada para quem tem estômago fraco. Nunca foi.”

SEGUE OUTRO DOS TEXTOS CITADOS

A fisionomia cinzenta das esquerdas

Por Aldo Fornazieri

É difícil compreender a decisão dos partidos de esquerda e centro-esquerda, excetuando o PSOL, de integrarem o bloco articulado por Rodrigo Maia para disputar a presidência da Câmara dos Deputados. Pode ser que estejamos diante de uma esquerda apavorada. Pode ser que estejamos diante de uma esquerda oportunista. Pode ser que as duas atitudes orientem as decisões desses partidos.

As esquerdas vêm errando de forma crônica na avaliação de conjuntura nesses dois anos de governo Bolsonaro. O erro básico é o seguinte: Bolsonaro estaria na iminência de dar um golpe militar. Por isso, seria necessário formar uma frente antifascista. O fato é que Bolsonaro não tem e nunca teve força, nem no meio militar e nem na sociedade, para promover um golpe. As esquerdas confundiram os desejos de Bolsonaro e de meia dúzia de aloprados, que foram calados por uma canetada de Alexandre de Moraes, com a realidade objetiva.

Este erro de avaliação fez com que, na disputa das eleições municipais, as esquerdas considerassem Bolsonaro como inimigo a ser derrotado. Bolsonaro sequer disputou as eleições com uma força política própria. Com essa tática equivocada, as esquerdas favoreceram a vitória dos tradicionais partidos de direita que ampliaram significativamente sua presença em prefeituras. As esquerdas colheram uma derrota indesmentível, como mostram os números. Mas, para camufla-la, constroem uma pós-verdade, dizendo que Bolsonaro foi o derrotado nas eleições municipais.

As esquerdas entram no bloco de Maia de forma subalterna, condição que enfraquece sua autonomia e fere os princípios e a lógica da política. A lógica política recomenda que uma força política que pretende dirigir e comandar nunca deve se aliar a uma força política superior ou equipotente à sua, pois perde autonomia e o comando. O PT parece que não aprendeu esta amarga lição: aliou-se ao PMDB inteiro no governo Dilma e perdeu o poder. Além disso, tem aquela velha história: é melhor ser derrotado com dignidade do que vencer sem honra.

Além do argumento da frente antifascista para integrar o bloco de Maia, argumenta-se que Bolsonaro quer aparelhar as instituições, incluindo a Câmara. É verdade que Bolsonaro quer exercer o mando sobre as instituições de fiscalização, controle e investigação. Mas, então, por que as esquerdas e especialmente o PT, apoiaram de forma efusiva a indicação do ministro Kassio Nunes Marques para o STF? Se a vitória de Arthur Lira representa um risco fascista tão grande, por que setores do PT, incluindo o vice-presidente do partido, Washington Quaquá, defenderam uma aliança com ele? Qual a diferença fundamental que existe entre Arthur Lira e Baleia Rossi, um aliado figadal do golpista Michel Temer?

Não se está dizendo que não seja importante derrotar Arthur Lira. Mas ele poderia ser derrotado num segundo turno. Neste momento em que, em Brasília e na política brasileira, a grande maioria dos gatos são pardos, as esquerdas deveriam se apresentar com fisionomia e com candidato próprios nas eleições para a presidência da Câmara dos Deputados, defendendo um programa democrático e popular, os direitos dos trabalhadores, a liberdade, o emprego, a renda mínima, a habitação, a educação, a saúde, a vacinação, a ciência, a cultura e o combate às desigualdades e ao racismo.

Excetuando o PSOL, as esquerdas e a centro-esquerda estão entregando a João Dória e a Rodrigo Maia as linhas de frente do combate a Bolsonaro para permanecer numa inexplicável e numa inaceitável posição de retaguarda. Com esse defensivismo tático e estratégico, as esquerdas parecem estar dispostas a permitir que se construa uma polarização entre a direita e Bolsonaro nas eleições de 2022.

As esquerdas brasileiras vivem a sua pior crise desde os tempos finais da ditadura. É a pior crise porque se trata de uma crise política e moral, uma crise de perspectivas, de ausência de fisionomia, de projeto, de direção e de sentido. Tomados por uma burocracia partidária e por uma aristocracia parlamentar, a maior parte dos partidos parece preocupar-se apenas por cargos, altos salários, fundos partidários e eleitorais e privilégios. A coragem, as virtudes combativas, a organização popular, tudo isso que constrói a grandeza e a importância histórica de um partido, parece estar morto.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp).

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