O rumo traçado para a política externa no governo Lula tem por meta retomar a inserção global do Brasil, mas em uma conjuntura substancialmente distinta da vivida no período 2003-2010
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Foto oficial da VII Cúpula da CELAC – Buenos Aires – Argentina. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Por Silvio Queiroz (*)
Fotos oficiais de encontros entre chefes de Estado e governo não costumam ser muito mais do que uma formalidade, mas, vez por outra, é possível ler mensagens implícitas — ou nem tanto. É o caso da reunião de cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), celebrada em Buenos Aires, na última semana de janeiro. Em sua primeira viagem ao exterior como presidente, Lula está no centro da primeira fila, ao lado do anfitrião, Alberto Fernández.
A presença na capital argentina selou o reingresso do Brasil na Celac, organismo de integração regional costurado no primeiro período de Lula no Planalto, em uma trinca completada pelos então presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Argentina, Néstor Kirchner. Menos de um mês depois da posse, o novo governo deu o primeiro passo para concretizar uma das linhas-mestras definidas para a política externa: a reinserção no cenário geopolítico regional e global, construída de maneira a potenciar o alcance do país na perspectiva de uma ordem multipolar.
Ficou igualmente retratada, na foto como no teor da participação na cúpula, outro traço que, embora não seja explicitado, é reconhecido universalmente como característica determinante do governo Lula, em contraste absoluto com o desgoverno cavernícola: o lugar central a ser ocupado pela diplomacia presidencial.
Um e outro dos elementos presenciados em Buenos Aires, e capturados no cenário da foto oficial, ratificam a estratégia traçada desde a campanha para a formulação e a execução da política externa do terceiro governo Lula. Afinal, o embaixador Celso Amorim, chanceler nos oito anos da primeira gestão petista, foi conselheiro e par constante do então candidato ao longo da campanha eleitoral. Na composição do gabinete, assumiu a posição de chefe da assessoria especial do Planalto, função que engloba a exercida em 2003-2010 por Marco Aurélio Garcia na área internacional. Para o comando do Itamaraty, com o papel de orquestrar a ação do corpo diplomático profissional, foi escalado o embaixador Mauro Vieira, chanceler do segundo mandato da presidenta Dilma.
Esferas concêntricas
No fundamental, o objetivo anunciado pela trinca é retomar a carta de navegação da primeira década do século. Em resumo, a estratégia formulada e aplicada por Celso Amorim, a quatro mãos com o embaixador Samuel Pinheiro, “número dois” do Itamaraty, concebia a inserção global do Brasil por um sistema de esferas concêntricas. Para projetar o país como potência de primeira linha sem trilhar o caminho inviável — e indesejado — de afirmar-se fundamentalmente pelo poderio militar, o Planalto e o Itamaraty optaram pela disputa diplomática, conhecida nos meios como softpower, de uma posição de força alicerçada na liderança regional.
É precisamente nesse âmbito que se delimitava a primeira esfera de ação diplomática. Sem esperar um dia sequer para enunciar a posição brasileira nos temas centrais das relações internacionais, como era em 2003 a invasão dos EUA ao Iraque, Lula, Amorim e Marco Aurélio fizeram o cavalo-de-pau na política de submissão aos interesses norte-americanos e europeus, traço marcante do governo FHC. A primeira prioridade foi o relançamento e o fortalecimento do Mercosul, acenando para a sua ampliação.
A partir desse movimento, que foi chave para enterrar o projeto de Alca, menina-dos-olhos da política traçada em Washington para o Hemisfério Americano — mais conhecido por lá como “o quintal”, Brasil, Venezuela e Argentina foram os pivôs para a criação da Unasul, concebida como plataforma para a integração política da América do Sul. Como desdobramento quase natural, agora com a inclusão do México na costura, a Bahia sediou em 2008 a primeira cúpula latino-americana. Dois anos depois, a iniciativa resultaria na fundação da Celac.
Favorecido pela atenção e pela energia concentradas pela Casa Branca e pelo Departamento nas guerras simultâneas travadas por George W. Bush no Iraque e no Afeganistão, o país acentuou a presença nos espaços multilaterais, em especial a ONU. Paralelamente, avançou para a segunda esfera concêntrica de inserção, esta na direção do que hoje é chamado de Sul Global — o mundo em desenvolvimento.
Dessa orientação nasceu o Fórum Ibas, sigla para Índia-Brasil-África do Sul. Delimitado inicialmente como um triângulo entre as democracias mais populosas fora do eixo EUA-União Europeia, o Ibas propiciou iniciativas de cooperação com países africanos e com a Autoridade Palestina, entre outros agentes estatais e regionais.
Entre os frutos dessa articulação, o mais relevante do ponto de vista político-diplomático foi a formalização do Brics, sigla “completada” por China e Rússia. Nesse patamar, os horizontes se ampliaram para a “política externa ativa e altiva” preconizada por Celso Amorim. Os cinco passaram a coordenar posições em instâncias do relevo do Conselho de Segurança da ONU. Essa atuação foi determinante, por exemplo, para barrar a tentativa euro-americana de obter aval para a intervenção militar na Líbia e na Síria, em 2011, sob a cobertura dos levantes batizados de Primavera Árabe. Ainda no governo Dilma, o bloco ensaiou os primeiros passos para estabelecer um banco de investimentos e construir um sistema alternativo para trocas econômicas e comerciais que contorne a âncora monetária do dólar — e, em menos medida, também do euro.
Quase nada como dantes
Os seis anos decorridos desde o golpe de 2016, que apeou a presidenta e abriu caminho para o pesadelo bolsonarista, com escala no mandato-tampão de Temer, assistiram não apenas a uma guinada na política externa brasileira. O conjunto do cenário internacional experimentou mudanças profundas e abrangentes, com implicações diretas e imediatas para reorientação de curso traçada para a nossa diplomacia.
Antes de tudo, o mundo vive hoje sob o espectro da guerra. Não mais uma guerra de intervenção, como as capitaneadas pelo imperialismo ianque e seus aliados europeus, tendo como guarda-chuva a Otan. A aliança militar ocidental, estabelecida ao fim da 2ª Guerra para se contrapor à União Soviética e ao campo socialista do Leste Europeu, sobreviveu à dissolução da URSS e ao fim da Guerra Fria. Desde a última década do século 20, assumiu progressivamente a configuração de instrumento direto para a construção de um polo mundial hegemônico, empenhado em neutralizar o poderio militar-nuclear da Rússia e, tão ou mais importante, a afirmação da China como novo fator geopolítico, inclusive como potência bélica.
É esse o conteúdo mais completo e geoestratégico do conflito na Ucrânia, que completa um ano no final de fevereiro sem sinal de solução à vista, seja por via militar ou político-diplomática. Ao contrário: a recente decisão dos EUA e da Alemanha de enviar os modelos mais modernos de tanques para o governo de Volodymyr Zelensky, títere ucraniano, aponta na direção do acirramento dos combates, no plano mais imediato. No médio e longo prazo, eleva a um novo e perigoso patamar o esforço da Otan para completar o cerco estratégico da Rússia, empreendida com a incorporação progressiva à aliança ocidental dos países que até 1989/90 compunham o bloco socialista e mesmo de ex-repúblicas soviéticas, como Lituânia, Letônia e Estônia.
O último passo da manobra, que consistiria na adesão da Ucrânia, representaria o estabelecimento da fronteira geopolítica entre Moscou e a Otan nos limites ocidentais do próprio território russo. Foi precisamente para impedi-la que Vladimir Putin colocou em campo suas tropas. A disposição do bloco euro-americano de levar seus planos às últimas consequências, patrocinando e armando Zelensky para uma guerra “até o último ucraniano”, tende a ser respondida com o emprego de poderio militar crescente da parte de Putin.
Se restassem dúvidas quanto às consequências dessa escalada para a carta de navegação traçada para a política externa do governo Lula, bastaria registrar a pressão feita para a Alemanha para que o Brasil se associasse ao esforço da Otan fornecendo à Ucrânia munição para os tanques. As gestões precederam o desembarque, em Brasília, do chanceler (chefe de governo) Olaf Scholz, em 30 de janeiro. Para além do objetivo de curto alcance de abastecer o aliado na guerra por procuração que trava contra Putin, o que está em jogo nesse movimento é envolver o Brasil no conflito, com dois propósitos: atrair o país para o campo da Otan e, de quebra, abrir fissuras ou mesmo fraturas expostas no Brics.
Jogo chinês
O desafio inicial colocado para o relançamento internacional do país consiste, portanto, em compreender o novo cenário geopolítico no qual ele se insere. Definitivamente, como no poema épico de Camões, nos aventuramos por mares nunca dantes navegados. Mapas e bússolas que nos guiaram há 20 anos, com reconhecido sucesso, estão desatualizados.
Desde logo, é indispensável reconhecer que, por maiores que sejam as semelhanças entre a disputa Rússia-Otan e a Guerra Fria, a geopolítica atual é substancialmente mais complexa que da segunda metade do século 20. A começar pelo fato de que não se restaurou a ordem global bipolar. Hoje, são múltiplos jogadores na disputa, cada qual com estratégia e interesses próprios, compondo simultaneamente alianças e travando confrontos de maior ou menor alcance — e alterando os planos de jogo conforme o andamento da partida.
A imagem clássica do xadrez, especialmente usada para analisar os movimentos russos, soa inapelavelmente superada. O cenário parece retratado com mais fidelidade e nitidez pelo tabuleiro do weiqi, milenar jogo de estratégia descrito pelo diplomata norte-americano Herry Kissinger em seu clássico livro Sobre a China. No weiqi, confrontam-se vários oponentes. O objetivo final é infinitamente mais sutil que a aniquilação do adversário único por xeque-mate: a parada se decide pelo conceito de “cerco estratégico”, cabendo a vitória ao jogador que dispõe suas peças em posição de vantagem sobre os demais.
Segundo esse conceito, a política externa de um país deve ser concebida e sua execução planejada tomando em conta a apreciação a mais judiciosa possível da estratégia dos contendores. No caso da reinserção traçada para o Brasil, torna-se imperioso compreender que EUA, Europa, Rússia e China — para ater-se aos fatores de maior peso —, jogam cada qual o próprio jogo.
De saída, a despeito do alinhamento político-militar evidenciado na guerra da Ucrânia, seria um erro ignorar os interesses específicos da Europa, o que se aplica mais especialmente à Alemanha e à França, a dupla dinâmica que toca o leme da UE. Embora abrigado no guarda-chuva militar-nuclear do imperialismo americano, o bloco europeu persegue “por fora” uma estratégia própria de afirmação econômico-comercial. Ela contempla a liderança na transição para a economia pós-carbono e posições de vantagem nas transações com a China. O mesmo se aplica à América Latina.
Não por acaso, a visita de Scholz a Lula teve entre os temas centrais da agenda articulações relacionadas às mudanças climáticas e, sob o manto ambiental, o avanço do acordo de livre-comércio assinado em 2019 entre a UE e o Mercosul. Uma vez ratificado e em vigor, ele compreenderá um mercado da ordem de 780 milhões de consumidores. Afora essa dimensão intrínseca, trata-se de um movimento com impacto direto sobre as relações comerciais de ambas as partes com a China.
Não por acaso, Pequim está entre os próximos destinos programados para o exercício da diplomacia presidencial de Lula, que deve desembarcar em março na capital chinesa. A agenda bilateral, por si, bastaria para situar a dimensão da empreitada. Mas sobram as implicações de alcance mais amplo. Além de atrair investimentos preciosos para os planos de reindustrialização do país, o presidente tem na mira a recolocação no âmbito do Brics. É ingênuo, porém, ignorar que o presidente Xi Jinping tem familiaridade com a lógica do weiqi. Na visita que fez a Montevidéu, escala do retorno a Brasília após a cúpula da Celac, Lula discutiu com o colega Luis Alberto Lacalle Pou o tema delicado das negociações em curso para um acordo bilateral de livre comércio entre Uruguai e China. Uma vez concretizado, ele poderia representar um golpe quase fatal ao Mercosul, aspecto que, certamente, não escapa ao olhar penetrante do regime chinês.
Por fim, e não por ter menor importância, para fevereiro está prevista a visita do presidente aos EUA. Joe Biden, à voltas com a sombra de um retorno de Donald Trump ao cenário na eleição presidencial de 2024, na qual planeja lutar pelo segundo mandato, jamais fez segredo da animosidade com o cavernícola, hoje “refugiado” na Flórida, tendo em torno de si a ultradireita trumpista e a corte de exilados brasileiros, cubanos e venezuelanos. Por essas e outras, Biden esteve entre os primeiros governantes a reconhecer e saudar a eleição de Lula e a condenar a intentona golpista de 8 de janeiro.
Nem por isso seria prudente tomá-lo por aliado ou — pior — ignorar que também os EUA fazem o próprio jogo. Nos planos estratégicos daquela que é, ainda hoje, a potência mundial dominante, aquilo que chamam de Hemisfério Americano segue sendo “o quintal”. Dessa perspectiva, o aceno à aproximação com o governo Lula é real, mas traz embutida uma jogada com múltiplos alcances.
Já no primeiro mandato, e a despeito da oposição estridente que fez à invasão do Iraque, Lula cultivou uma relação pessoal fluida com Bush. Adiante, chegou a ser festejado como “o cara” por Barack Obama. Celso Amorim tinha interlocução frequente com as contrapartes no Departamento de Estado e outras instâncias de Washington relacionadas à política externa, como a conselheira da Casa Branca para Segurança Nacional no governo Bush, Condoleezza Rice.
Da perspectiva de Washington, os governos petistas funcionaram então como peça conveniente para “administrar” as crises com a Venezuela bolivariana, em especial no governo de Hugo Chávez. A diplomacia brasileira e a própria figura do presidente foram acionadas para mediar uma solução para o impasse em torno do programa nuclear do Irã, já no governo Obama — ainda que o acordo fechado em Teerã, com o concurso também da Turquia, tenha sido detonado na ONU pela secretária de Estado Hillary Clinton.
Coincidências pontuais e pragmáticas com os EUA não devem ser desprezadas, mas têm de ser vistas e exploradas na perspectiva da estratégia própria do Brasil, como ensina o jogo chinês do weiqi. O interesse de Washington em ter em Lula um interlocutor e facilitador de soluções deve ser enxergado e aproveitado, na medida das oportunidades e possibilidades, como um trunfo, uma “carta de mão”, na linguagem do carteado.
Com apenas um mês de empossado, o novo governo tem por diante, na frente externa, um horizonte amplo e profundo. Mas tem de ter sempre presente que navegará em águas praticamente desconhecidas. O bom curso dependerá da capacidade para recalibrar as bússolas, redesenhar os mapas e, sobretudo, aferir os instrumentos para detectar no tempo devido os ventos favoráveis e as intempéries.
(*) Silvio Queiroz é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, militante petista e da tendência Articulação de Esquerda/DF.