Necropolítica e produção de mortes no Brasil

Por Suelen Aires Gonçalves*

Sobre o decreto que “não passa por cima da lei”? Necropolítica e produção de mortes no Brasil

O decreto assinado e publicado hoje é a síntese de um Estado que produz morte em larga escala, como diria o filósofo camaronês Achile Mbembe: Eis o Estado da Necropolítica. Neste decreto, o governo central, amplia o porte de armas para um conjunto de profissões.

Algo chama a atenção neste decreto, servidores inativos compõem o rol de servidores com autorização para o porte, como justificar tal feito? Para fins de registros históricos, a lista segue por exemplo com: servidores públicos que trabalham na área de segurança pública, advogados em atuação pública, caminhoneiros, oficiais de Justiça, profissionais de imprensa que atuam em coberturas policiais, agentes de trânsito, entre outras categorias. Também são contemplados no decreto presidencial os moradores de propriedades rurais e os proprietários e dirigentes de clubes de tiro.

A lista de categorias não para por aqui, segue com a possibilidade de autorização para políticos detentores de mandato eletivo nos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando no exercício do mandato. De acordo com o texto, tais categorias terão que justificar a necessidade e a solicitação está sob o comando da Polícia Federal.

Tal medida é um ataque ao Estatuto do Desarmamento de 2003, em que estava previsto que tais pedidos deveriam ser acompanhados de comprovação de aptidão técnica, capacidade psicológica, ausência de antecedentes criminais e comprovação de necessidade “por exercício de atividade profissional de risco” ou que representem ameaça à integridade física. A fala de Jair Messias Bolsonaro (PSL) durante a assinatura do decreto foi enfática em afirmar que o governo foi “no limite da lei” pois supostamente o decreto “não passa por cima da lei” e “não inventa nada”, mas foi até o limite máximo englobado pelo Estatuto de 2003.

Na contramão do debate, pesquisas recentes divulgadas em abril do corrente ano pelo Instituto Datafolha mostrou que a maioria da população não é favorável à flexibilização da posse de armas. Na pesquisa, foram ouvidas 2.077 pessoas pela instituição, em 130 municípios brasileiros. Destas, 64% avaliaram que a posse deveria ser proibida no Brasil, enquanto 34% afirmaram que ela deveria ser um direito. Uma pequena parcela, de 2% optou em não opinar sobre o tema.

Precisamos também estar atentas(os) acerca da diferença conceitual de posse e porte. No decreto, o governo altera o porte. A posse já foi objeto de alteração em decreto assinado em janeiro do corrente ano. Mesmo com tal alteração da flexibilização para a posse de armas, a pesquisa apresentou que 80% dos entrevistados disseram que não pretendiam comprar uma arma.

Necessitamos dialogar com a população sobre os efeitos nefastos de tais produções, via decreto, do “Ocupante do Palácio do Planalto”. Tais produções são uma declaração de guerra contra a população periférica, sobretudo, a população negra, vítima diária de homicídios no Brasil. Contamos com uma cifra anual acima de 62 mil homicídios, sendo que deste valor temos 23 mil casos contra a juventude negra. A cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. São vidas negras perdidas nas mãos de um Estado na necropolítica.

Neste bojo, verificamos a criminalização dos movimentos populares do campo e da cidade e o acesso dos ditos “proprietários de terra” às armas no Brasil. O que também significa, uma guerra contra as mulheres, pois hoje contamos com 71% dos casos de feminicídio e tentativas efetuados com armas de fogo pelos atuais ou ex-companheiros. Somos o 5º país do mundo em casos de feminicídio, crime de ódio contra as mulheres.

Precisamos existir para resistir e como diria Sueli Carneiro: “Em legítima defesa, viveremos!”

*Suelen Aires Gonçalves é do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania e doutoranda em Sociologia / UFRGS

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