Por Rudá Ricci (*)
Texto publicado nas redes sociais do autor no dia 07/01.
Rodou e roda na internet feito água girando no moinho um áudio onde Mônica de Bolle sugere que o mais importante para a política dos EUA no dia de ontem não foi a invasão do Congresso Nacional, o Capitólio, mas a vitória dos democratas na Geórgia. Sua hipótese é que durante mais de uma década o movimento por direitos civis armou esta virada ideológica naquele Estado, região racista, sulina, republicana.
Para mim, a análise de Mônica está desequilibrada. Não totalmente equivocada, mas desequilibrada. Imagino que a origem do desequilíbrio venha da sua leitura liberal e institucionalista. A leitura institucionalista, como o nome já indica, desconsidera a dinâmica fora do campo institucional. Assim, a vitória eleitoral, para esta vertente, cristaliza uma força e finca balizas para a luta política a partir desta vitória. Acontece que o mundo gira para além da Lusitana e do Congresso. E é aí que tenho a impressão que Mônica não compreendeu a extensão do estrago e insinuação de Trump e seus trumpistas amestrados.
Primeiro, compreendendo a cultura hiperindividualista dos EUA. Os libertários formam um segmento social amplo naquele país. Rejeitam a intervenção estatal e defendem suas propriedades com armas nas mãos e sangue nos olhos. Vinculam individualismo, propriedade privada e armas (violência, portanto) numa formação moral das mais extravagantes para o mundo civilizado.
Mas, não são apenas os libertários que fazem a festa. Citei-os porque dão luz à esta dimensão de valores e cultura política que os institucionalistas desconsideram. Ontem, vimos mais um agrupamento – que a grande imprensa norte-americana sugere que envolva milhões de cidadãos daquele país, como os milhões de brasileiros envolvidos com os valores bolsonaristas, a ideia da vacina comunista ou da terra plana -: trata-se do QAnon. Pode parecer coisa de louco varrido, mas eles sugerem que Trump está travando uma guerra secreta contra os pedófilos adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa. E que o dia do Juízo Final estaria perto. Maluquice ou não, o fato é que aquele rapaz com cabeça de bisão faz parte do QAnon. Aquele que todo mundo postou sua foto acompanhada de algum meme. Um estudo do instituto de pesquisa Pew Research Center em setembro de 2020 descobriu que quase metade dos americanos tinha ouvido falar do QAnon — o dobro do número de seis meses antes. Dos que ouviram falar, um quinto teve uma visão positiva do movimento.
A partir daí, o que parece que Trump fez ou esboçou?
Primeiro, sugiro eliminarmos a ideia de golpe de Estado. Não foi nem de longe algo parecido. Para ocorrer um golpe é preciso ter apoio de militares ou grupos armados. E, apoio empresarial e/ou popular. Mas, a força das armas é sempre um fator garantidor.
Não foi o caso. Penso que foi algo mais para acumular força – e para demonstrar força – para um passo mais adiante.
Foi uma demonstração poderosa, extremamente ofensiva, que ultrapassou limites morais da disputa política nos EUA. Trump jogou a sua galera contra o Congresso. Devassou o Capitólio. O que se viu foi um jogo midiático, de demonstração de força.
É aí que acho que o áudio de Mônica se torna desequilibrada porque desconsidera que Trump e sua trupe não jogaram com o campo institucional, mas contra o campo institucional. Vencer na Geórgia era página virada na estratégia de Trump. Ele já tinha retornado à campanha de rua, ao palanque. Algo que conecta com as estratégias de comunicação de alto simbolismo e carga emocional que o levou a se destacar no cenário político de seu país, que sustentou a ascensão do movimento 5 Estrelas na Itália, que deu musculatura para Orbán na Hungria e que fez Bolsonaro chegar onde nem ele, nem sua mãe, acreditavam que chegaria.
E é por aí que nossas antenas precisam estar ligadas: ao contrário de Trump, Bolsonaro tem apoio de parte expressiva das forças armadas. Meio que uma relação de tutela e tutelado, é verdade, mas parecem mais alinhados que Trump com o apoio de parte da defesa armada que estava lá no Capitólio. É verdade que os EUA possuem mais malucos-beleza que o Brasil. Mas, também é verdade que não temos tanta certeza sobre isso.
Portanto, não vejo como razoável descartarmos o trumpismo e sua invasão de ontem como um último suspiro de um mal perdedor. Acho que ele tem mais traques nos bolsos do que a Mônica tenha conhecimento.
(*) Rudá Ricci é cientista político