Por Valter Pomar (*)
Uma parte da esquerda está debatendo com paixão os rumos da eleição paulistana. Os motivos são vários e óbvios, dada a importância do resultado eleitoral na maior cidade do país. Mas para além dos motivos nobres, existem outros, nem tanto.
Entre os que são de esquerda, mas não são petistas, há o legítimo desejo de superar o PT no maior eleitorado do país. Desejo que é compartilhado pela direita, que não de hoje estimula alternativas que pretendem superar a influência do petismo nos setores populares. Quem não lembra da capa da IstoÉ em que um flamejante Ciro Gomes expulsa Haddad e Gleisi do paraíso???
A novidade, desta vez, é a quantidade de petistas que estão cedendo à pressão. Alguns, por cansaço de material (cansaço que levou um bom número a só se manifestar agora, pouco ou nada participando no momento em que era possível construir outro rumo para a tática e para a chapa do PT nas eleições municipais). Outros, por não se verem moralmente obrigados a respeitar uma decisão adotada num diminuto colégio eleitoral, por apertada diferença. Há os que rejeitam o candidato, por variados motivos, que em alguns casos cresceram depois do anúncio do vice, que muitos de nós esperávamos que ampliasse a diversidade de gênero e étnica da chapa. Mas o que me parece ser a razão fundamental do crescimento do número de petistas e simpatizantes capturados pelo discreto charme da chapa Boulos-Erundina é de natureza político-eleitoral.
O fato é que as pesquisas (tanto as pesquisas profissionais, quanto aquela “pesquisa” individual que cada um de nós faz todo dia) são até agora negativas. Não negativas apenas para o PT, mas para a esquerda como um todo. Cresce a chance de a esquerda ser excluída do segundo turno das eleições de São Paulo capital. Assim, influenciados por estas pesquisas, muitos petistas olham para Boulos, na crença de que ele seria capaz de ir além de seu eleitorado atual (que os dados das pesquisas oficiais indicam estar concentrado nos setores médios de esquerda) e chegar ao segundo turno.
Não compartilho desse olhar, nem dessa crença. Mas antes quero lembrar que não voto em São Paulo capital, mas em Campinas, onde temos uma chapa PT-PSOL encabeçada pelo PT. Lembro, também, que lutei até o limite formal (no meu caso, um recurso ao Diretório Nacional do PT para que o companheiro Haddad fosse convocado a assumir a candidatura a prefeito). Entretanto, se estivesse em São Paulo, eu estaria fazendo campanha pelo PT (e, portanto, pela chapa Jilmar-Zaratini, com zero de chance de votar em qualquer outro partido ou candidatura). Entre outros motivos, porque nesse tipo de questão não coloco em primeiro plano as pesquisas, nem os cenários eleitorais.
Sou petista e não passa pela minha cabeça a hipótese de “cristianizar” uma candidatura petista. E fico deveras impressionado com a leveza com que alguns fazem isso, talvez por não perceber a relação que existe entre a destruição das liberdades democráticas e o desmonte (por dentro ou por fora) dos partidos de esquerda.
Entretanto, mesmo quando estudo as pesquisas, assim como os cenários eleitorais, não consigo me convencer do raciocínio feito pelos petistas que estão, na prática, apoiando Boulos. Apoiando ou “deixando apoiar”, como fazem muitas lideranças e até candidaturas a vereador. Para explicar o porquê, gostaria de apresentar dois cenários.
Cenário 1. O PT mantém a candidatura, mas parte de sua militância e de seu eleitorado migram para a candidatura do PSOL. Boulos cresceria (não se sabe quanto), mas a divisão do eleitorado da esquerda faria com que a disputa de segundo turno fosse resolvida entre as candidaturas de direita. Os que pensam assim deduzem, por óbvio, que não basta fazer campanha por Boulos, seria preciso também fazer campanha contra Tatto, para fazer com que quase todo o seu eleitorado migrasse para Boulos. Ou seja: partindo da tese de que deveríamos unificar a esquerda, acabam desembocando numa operação de sangrar o PT. Se o cenário político geral estivesse favorável à esquerda, poderia ser feio, mas ainda assim poderia dar certo. Mas num cenário político geral tão difícil para a esquerda, não consigo compreender como, de uma operação autofágica deste tipo, possa resultar uma vitória da esquerda.
Cenário 2. O PT retira sua candidatura a prefeito e orienta seu eleitorado a votar na candidatura do PSOL. Do ponto de vista prático, o PT deixaria de ter espaço de TV e rádio. Mesmo que houvesse alguma redistribuição, isso não ampliaria significativamente o tempo reduzido de TV&Rádio da candidatura de Boulos, nem seus recursos financeiros. Portanto, tudo dependeria da campanha militante. De qual militância? A do PSOL, a da esquerda em geral e, principalmente, dependeria da campanha da militância do PT!!! Esta militância (supostamente) não estaria disposta a se engajar por Tatto, mas (supostamente) compareceria para fazer campanha por Boulos, movida (supostamente) pelo entusiasmo provocado pela unidade da esquerda e pela possibilidade de levar Boulos ao segundo turno.
Os que pensam assim, no fundo reconhecem que a militância e o eleitorado do PT existem e têm força suficiente para levar uma candidatura ao segundo turno, mas acrescentam dois senões: 1/desde que não seja uma candidatura do PT e/ou 2/desde que não seja a candidatura Tatto.
O primeiro senão é parente daquele sustentado por Ciro em 2018. Mas, e o segundo senão? Será que o problema é o Tatto? Se tirarmos o Tatto, tudo se resolveria?
Como é público, eu não apoiei a candidatura Tatto na disputa interna; e defendi, no Diretório Nacional do PT, que Haddad fosse convocado para ser candidato. E acho que a campanha vem subestimando os problemas. Apesar disso, considero inacreditável qualquer raciocínio que subestime a força da direita na cidade de São Paulo, que subestime o conservadorismo de uma parcela do eleitorado, que subestime a força do próprio PT, imputando todos os nossos problemas e dificuldades às características de quem foi escolhido para ser o candidato do PT.
Como é óbvio, a esquerda pode ir ao segundo turno das eleições em SP capital, ou por conta da força orgânica, da capilaridade, da presença real; ou por conta do voto de protesto; ou por uma combinação de ambos motivos.
O PSOL tinha e tem todo o direito de achar que pode atingir este objetivo, o que passa necessariamente por atrair eleitores que, em 2016 e 2018, votaram no PT. Aliás, vamos lembrar que o PSOL paulistano nunca propôs uma aliança com o PT.
O PCdoB também tem todo o direito de achar que pode atingir este objetivo, sozinho (igual ao PSOL, o PCdoB tampouco procurou fazer uma aliança com o PT na capital). Assim como é compreensível que o PCdoB lance candidatura própria a prefeito na capital paulista, para contribuir na defesa da sobrevivência futura do Partido, em parte ameaçada pelos rigores da legislação.
E o PT? O PT não teria o direito de lutar por reconquistar o voto de quem já votou nele? O PT não poderia defender sua sobrevivência? Considero espantoso que militantes do PT tenham dúvida a respeito, exigindo do PT algo que não exigem dos demais partidos, as vezes sob o pretexto de que o PT é um grande partido e por isso deveria “demonstrar grandeza”, desconsiderando ou subestimando o processo de cerco e aniquilamento que está em curso contra o PT.
Tal atitude, vinda inclusive de importantes petistas, é um sinal dos tempos, é certamente um sinal de uma justa preocupação com as consequências de mais uma vitória eleitoral da direita em SP capital, mas –em alguns casos – também é um sinal de que a insistência em uma estratégia esgotada começa a causar danos colaterais, incluindo engolir alguns dos espertos que a defendem.
Explico: entre 1989 e 2014 o PT apostou grande parte de suas fichas no acúmulo eleitoral. E pouco a pouco começou a acreditar que sua força eleitoral derivava principalmente dos votos obtidos na última eleição (e do desempenho de seus mandatos). Colocando em segundo plano o que constitui a força real do Partido, a saber: a força organizada na classe trabalhadora, inclusive no terreno da cultura política.
Em 2014, depois de quatro derrotas eleitorais presidenciais seguidas, a classe dominante decidiu mudar de estratégia e foi para o golpe. Golpe que foi vitorioso, entre outros motivos, porque, além das ilusões republicanas, ao longo de anos se subestimou a necessidade de organizar nossa base social. Desde então, o PT está diante de uma disjuntiva: ou adotar uma nova estratégia, ou insistir na estratégia antiga. Desta segunda alternativa, decorrem as ilusões na “frente ampla”. Mas decorre, também, o efeito meio déjà-vu, a ilusão de que se poderia fazer tudo de novo do mesmo jeito, mas agora resultando em algo diferente. Um dos problemas é que o PT realmente existente, duramente atingido pelo golpe e tudo-o-mais, tem dificuldade de fazer-tudo-de-novo-do-mesmo-jeito. Mas, ao invés de reconhecer isso, parcela do petismo insiste nas velhas fórmulas. Em alguns casos, fazendo alianças com partidos de direita, inclusive bolsonaristas.
Mas, paradoxalmente, no caso de São Paulo, alguns enxergam que a velha fórmula seria materializada na candidatura do PSOL, ilusão para a qual contribui bastante a presença de Erundina na chapa encabeçada por Boulos, assim como contribuem – não posso provar, mas estou convicto disto – os ensinamentos de Stanislavski.
Do meu ponto de vista, de quem defende enfaticamente a necessidade de outra estratégia, considero que a essa altura do campeonato, a pressão pública de setores da esquerda contra o PT em São Paulo é um desserviço, não apenas para o PT, mas para toda a esquerda. Pois se é verdade que não haverá nova estratégia, sem a construção de uma frente de esquerda; também é verdade que não haverá frente de esquerda, sem o PT, contra o PT ou apesar do PT.
Noutras cidades, mais por iniciativa do PT do que de outros partidos, foi possível construir a unidade da esquerda. Noutros lugares, apesar da iniciativa e disposição do PT, a unidade foi parcial (é o caso da cidade do Rio de Janeiro). Na maioria das cidades, entretanto, a unidade da esquerda não se materializou no primeiro turno.
O fato é que a unidade da esquerda é essencial, mas uma frente não pode ser imposta artificialmente, nem a “golpes de mídia”; além do que, a vida não acaba em 2020, muito menos no primeiro turno. Sendo preciso compreender que a construção de uma nova estratégia para toda a esquerda brasileira é uma tarefa de médio prazo, que inclui a defesa, a reorientação estratégica e a revitalização orgânica do Partido dos Trabalhadores.
Isto posto, o risco de uma derrota catastrófica em São Paulo (e noutras cidades importantíssimas) existe. E, salvo a alternativa que já foi rechaçada pela direção nacional do Partido dos Trabalhadores, só vejo um caminho para tentar evitar esta catástrofe: fazer uma campanha pela esquerda, de classe, politizada, que demarque com Bolsonaro, com Doria, com Covas, com a direita, com a classe dominante. Se fizermos isso, podemos conseguir não apenas uma vitória política, mas também eleitoral. Com o perdão do trocadilho infame, num certo sentido será necessário que Jilmar tenha muito pouco tato.
(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do diretório nacional do PT