Por Douglas Martins (*)
Vista aérea da cidade de Santos e do porto (canal do lado direito da foto)
A cidade de Santos tem peculiaridades importantes para se entender os efeitos das mudanças no mundo do trabalho, sua alteração no perfil político da classe trabalhadora e o impacto desses fatores na política. Como cidade sede da Baixada Santista e do maior porto do país contígua ao Polo Industrial de Cubatão, era impensável o funcionamento da cidade desconsiderando a presença da classe trabalhadora organizada na agenda política.
A principal forma de participação organizada era a sindical. Inúmeros sindicatos representativos das múltiplas categorias do polo industrial e do porto legitimavam-se como interlocutores de classe. Petroleiros e metalúrgicos em Cubatão e os estivadores em Santos foram o carro-chefe dessa corrente. A atmosfera política era fortemente influenciada, de sorte que as camadas médias sofriam impacto direto das lutas sociais.
A esquerda tinha nesse universo sua principal base social e o movimento estudantil era aliado natural desse segmento. Partidos Comunistas tinham inúmeras células de organização e formavam quadros para o embate político. Santos elegeu o advogado e jornalista Esmeraldo Tarquínio vereador em 1959 e fez dele o primeiro prefeito negro em 1968. A ditadura militar cassou Tarquínio e, com o AI-5, destroçou as organizações comunistas.
A cidade perdeu sua autonomia, permanecendo no índex da ditadura militar por uma década e meia. A força política de resistência, mesmo dilacerada, operou na clandestinidade e teve papel importante no período da redemocratização, sobretudo quando as lutas sociais ressurgiram no ABC no final da década de 1970. A reorganização sindical, dos movimentos sociais, e partidária da classe trabalhadora, em especial no PT, alcançaria a Baixada Santista.
Em 1988, a cidade elegeu Telma de Souza prefeita pelo PT, uma das primeiras administrações do Partido em seu oitavo ano de existência. O primeiro ano de gestão ocorreu em meio à campanha presidencial de 1989 e à votação da Lei Orgânica do Município, tarefa complementar da recuperação da autonomia. Administração “democrática e popular” não era mero slogan. O PT interveio em favor do povo no transporte público, na saúde, na educação municipal etc.
A gestão do PT enfrentou com coragem apoiadores da ditadura e o neoliberalismo de Collor. Opôs-se à demissão em massa no Porto de Santos quando portuários foram à greve contra a perda salarial de 150% no Plano Collor 2, em 1991. Collor respondeu com a demissão de 5 mil trabalhadores. O governo do PT aliou-se aos portuários, transformando as escadarias do Palácio José Bonifácio em palco de assembleias contra os efeitos da política antissocial do governo federal na cidade.
O governo do PT também encarou corajosamente a devastação do HIV/AIDS distribuindo seringas aos usuários para conter a pandemia. Elegeu o sanitarista e secretário municipal de saúde David Capistrano sucessor de Telma. David prefeito aprofundou as políticas públicas com o povo no orçamento. Consolidou o modelo revolucionário das policlínicas e deu início à desfavelização do Dique, maior favela de palafitas do país.
O fim do segundo governo e a crise interna do partido coincidem com a ofensiva da primeira onda neoliberal com efeitos deletérios à classe trabalhadora santista. Em agosto de 1993, o governo federal privatizou a Companhia Siderúrgica Paulista. Um ano depois, o número de empregados caiu de 13.413 para 8.360, 38% a menos. Com 1.200 empregados, a atual Usiminas emprega 9% do que a Cosipa já empregou. Grande parte dos metalúrgicos residia em Santos.
No mesmo ano de 1993, após a greve histórica, o governo federal aprova no Congresso Nacional a Lei de Modernização dos Portos, privatizando a Codesp (Companhia Docas do Estado de São Paulo). Em 1998, cria-se o Órgão Gestor de Mão de Obra – OGMO. A maioria dos berços de atracação passou a operadoras privadas. O Sindicado da Estiva perde a prerrogativa de escalar isoladamente trabalhadores avulsos. O Porto que respondia por 27 mil empregos em 1979 empregaria apenas 1.977 (7%) funcionários em 1999.
Em 1996, a cidade elege Beto Mansur prefeito pelo PPB derrotando a candidata do PT, que tentava a volta ao Executivo. Inicia-se o longo ciclo de hegemonia política das forças de direita na cidade, mantido ininterruptamente até os dias atuais. O ciclo expressa simultaneamente a desarticulação da classe trabalhadora precarizada e a consolidação da privatização do orçamento público pela direita via coronelismo político.
As administrações federais do PT (Lula I, Lula II, Dilma I e 1/2) não reverteram o processo de desindustrialização em curso na região a despeito de relevantes iniciativas em outras áreas, como a criação dos campi da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em Santos e o Instituto Federal de Cubatão. O cerco golpista em curso resultou, mesmo em nossos governos, em perdas como a cassação do poder deliberativo do Conselho de Autoridade Portuária – CAP, durante o governo Dilma, ainda não recuperado.
Santos também viveu um surto de especulação imobiliária com a perspectiva do pré-sal. A região seria um dos polos para investimento de infraestrutura logística para a bacia petrolífera que se estende de Santa Catarina ao Espírito Santo. Com o golpe de 2016, inicia-se o plano de “desinvestimento” com desmonte das estruturas projetadas, resultando na transferência de 937 funcionários para o Rio de Janeiro e no encerramento da Unidade de Negócios da Bacia de Santos.
As perdas da classe trabalhadora não foram percebidas como resultado das políticas antissociais adotadas pelo neoliberalismo. As sucessivas administrações antipetistas e reacionárias se consolidaram em Santos por 28 anos, criando uma força eleitoral que pende da direita para a extrema-direita. Com o surgimento do bolsonarismo no pós-golpe, Santos deu 71,35% dos votos ao candidato neofacista nas eleições presidenciais de 2018.
Sob Bolsonaro, se inicia um novo ataque ao Porto com sua inclusão no Programa de Desestatização. A ideia era entregar a autoridade portuária à iniciativa privada com a venda das ações em bolsa de valores. A iniciativa transformaria a cidade de Santos em servidão de passagem do porto privatizado, cujo plano de desenvolvimento e zoneamento virtualmente o converteria em território exclusivo do agronegócio.
Tarcísio de Freitas, então ministro da Infraestrutura, foi o corifeu da desestatização, contando com apoio das forças políticas de direita locais para o projeto, que foi impedido pela ação contínua da frente antidesestatização mobilizada pelo PT e pelos trabalhadores portuários. Inúmeras ações políticas de rua, na Câmara Municipal e na Justiça, sob a palavra de ordem “O Porto de Santos é do Brasil”, embaraçaram os planos de aniquilação.
A luta contra a nova onda de privatização do Porto de Santos contou com destacada atuação do PT na defesa do interesse dos trabalhadores. Na Câmara Municipal, também se organizou a resistência pela Comissão de Portos, presidida pelo vereador e dirigente sindical Francisco Nogueira, do PT. Na campanha de 2022, Haddad incluiu a defesa da gestão estatal no programa de governo, contrapondo Tarcísio de Freitas, que daria ao Porto o mesmo destino da Sabesp.
A vitória eleitoral nas últimas eleições presidenciais com Lula, bem como a indicação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda puseram fim ao terceiro ataque privatista ao Porto de Santos. Tarcísio chegou a plantar várias fake news de que Lula iria manter o plano de Paulo Guedes, então ministro da Economia. Ainda que pareça absurdo, o plano alimentava a expectativa de converter Lula ao pragmatismo dos negócios por ele capitaneado.
Márcio França (PSB), titular do recém-criado Ministério de Portos e Aeroportos, reiterou a manutenção da autoridade portuária pública, embora o governo federal a mantivesse na relação das empresas privatizáveis. Foram necessárias sucessivas tratativas até a final exclusão. O Ministério de Portos e Aeroportos ocupa o lugar do antigo Ministério da Infraestrutura, dirigido por Tarcísio de Freitas durante o governo Bolsonaro.
Márcio França foi sucedido por Silvio Costa Filho (Republicanos). Embora do mesmo partido de Tarcísio de Freitas, Costa Filho reiterou a posição antiprivatista e anunciou inúmeras ações de investimento sob a autoridade portuária estatal, inclusive a obra de ligação seca via túnel submerso entre Santos e Guarujá. O túnel figura como a maior obra do Novo PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) do governo Lula III.
Em visita a Santos no dia 2 de fevereiro, por ocasião do aniversário de 132 anos do Porto de Santos, Lula se dirigiu no palanque a Tarcísio, governador de São Paulo, dizendo que democracia se faz com respeito aos divergentes. “Respeitosamente”, reiterou sua posição antiprivatista, informando que a Autoridade Portuária de Santos permanecerá pública. Tarcísio, antes vaiado, sorriu amarelo diante dos aplausos a Lula.
O palanque do Porto foi didático quanto a alianças. Adversários históricos e atuais estavam ali para celebrar o aniversário do Porto mais importante do país e chancelar a autoridade pública. O episódio reafirma a importância de o PT não se prestar à linha auxiliar da direita. É certo que a dificuldade é imensamente maior diante das amarras introduzidas no orçamento e na gestão pública pelo golpe de 2016.
Voltando ao PT de Santos, em meio a tantos percalços, é possível compreender a atual situação. O Partido é detentor de duas posições na Câmara Municipal de 21 vereadores conquistadas em 2022 pela vereadora Telma de Souza, liderança histórica, e pelo vereador Francisco Nogueira, dirigente sindical portuário em segundo mandato. São mandatos de oposição que, juntamente com o PSOL, representam os interesses populares contra-hegemômicos.
A batalha contra a privatização demonstra a importância da intransigência na defesa dos interesses da classe trabalhadora no contexto que ainda é de resistência à hegemonia político-eleitoral de direita. Nossa tática nas próximas eleições municipais deve preservar essa orientação sem colocar em risco o que já temos. Diz a sabedoria popular que a condição de observar com atenção a vida real é um bom parâmetro para realizar nossos sonhos.
(*) Douglas Martins é advogado, jornalista e vice-presidente do PT em Santos.