Por Marcos Jakoby (*)
Na última edição do Página 13, busquei demonstrar por que a centro-esquerda não quer o PT por perto, que existe uma tentativa de compor uma frente de centro-esquerda que exclua o PT, ou que, no mínimo, retire o seu protagonismo. A lógica é de que é impossível derrotar a extrema direita sem atrair setores mais ao centro e conservadores; e é impossível atrair estes setores, tendo o PT na linha de frente. Às vezes, isso ganha contornos de ataques ao PT e aos seus dirigentes, sobretudo a partir da principal liderança de hoje da centro-esquerda que é Ciro Gomes.
A tática desse campo ( PDT, PSB, Rede e, por vezes, o PC do B), grosso modo, é de um estilo etapista, primeiro uma luta política onde o centro é a defesa da democracia contra os ataques da extrema-direita e a derrota do governo Bolsonaro, e outra etapa então em torno dos interesses populares. Outra variante, é uma separação mecânica dessas lutas. Ocorre que para o PT, a luta por afastar Bolsonaro está intrinsecamente ligado à luta contra as desigualdades, em defesa dos direitos sociais, do trabalho e da renda.
A luta em torno desses direitos é uma luta crucial para imensas parcelas da população e vital num cenário de crise social aguda e de uma crise sanitária sem precedentes, mas é fundamental também porque acumula forças para derrotar Bolsonaro. E essa luta, que necessariamente precisa contar com uma forte mobilização social para ser vitoriosa, deve colocar em movimento amplos setores da classe trabalhadora, porém isso não acontecerá se a luta por direitos sociais não for um eixo estruturante.
A questão se torna ainda mais complexa quando percebemos que a centro-esquerda não tem unidade na luta contra a agenda neoliberal. Parte dela tem dado, na prática, apoio à parte dessa agenda. Na votação da Reforma da Previdência, na Câmara dos Deputados, em julho de 2019, parte das bancadas de PDT e PSB votaram favoravelmente, embora os partidos houvessem fechado questão contra a reforma. No PDT, de 27 deputados, 08 votaram pela reforma, no PSB, de 32 deputados, 11 apoiaram o projeto.
O mesmo aconteceu com Medida Provisória 881/19, a “minirreforma trabalhista”, votada em agosto também do ano passado. O PSB rachou: dos 31 deputados, 13 votaram a favor do governo. No PDT, houve mais votos favoráveis à MP do que contrários, com 15 parlamentares votando pela minirreforma. E mais recentemente, no último 24 junho, na votação do novo marco legal para o saneamento básico, que pavimenta o caminho para uma ampla privatização do setor, onde PDT, PSB e REDE liberaram as bancadas e, entre os três partidos, houveram senadores votando favoravelmente ao projeto de lei, entre eles Cid Gomes (PDT /CE).
Como é que num cenário desses o PT, maior partido de esquerda e da oposição, deveria abrir mão de estar na linha de frente? Para além disso, a centro-esquerda tem feito um esforço de aproximação com a oposição liberal, como fica evidente em diversos movimentos e no III Atos dos Direitos Já, onde desfilaram muitas lideranças tucanas e conservadoras. Direita, aliás, que tem declarado que não quer o impeachment de Bolsonaro. Para compor essa frente, vale ressaltar, abre-se mão da crítica às reformas neoliberais e do fora Bolsonaro, como ficou visível na fala de diversos porta-vozes da centro-esquerda presentes e no tom geral do ato.
E, embora o PT não estivesse presente oficialmente, houve lideranças petistas que participaram e uma delas mencionou a luta pelo restabelecimento dos direitos políticos de Lula, o que foi suficiente para que lideranças da centro-esquerda criticassem a fala por ser “antipática”. Ou seja, esvazia-se a luta contra o ultraliberalismo, a luta por afastar o governo Bolsonaro transmuta-se na verdade em oposição parlamentar, visando as eleições de 2022, e as lutas democráticas não podem combater o golpe em curso desde 2016.
Todos esses traços da política da centro-esquerda a levam para um plano, nem sempre explícito, mas que vai se conformando na vida real, como uma “união nacional”, mirando as próximas eleições. Ou seja, uma aliança entre a centro-esquerda e a direita não-bolsonarista em torno de um projeto, não muito bem delineado pela centro-esquerda, mas já mais definido pela direita, com algumas política sociais focalizadas, mas essencialmente neoliberal.
Uma “união” capaz de vencer a polarização no país e de derrotar os “extremismos”. Em suma, uma política de conciliação em benefício, na prática, da direita e de amplos setores da classe dominante, uma vez que não construirá as condições políticas para derrotar o neoliberalismo. Essa aproximação poderá desembocar em uma ou mais candidaturas nas próximas eleições presidenciais, mas o certo é que a direita neoliberal, não-bolsonarista, terá a sua. Mas Ciro quer conquistar apoio de parte dessa direita e de frações da classe dominante, por isso se vale do antipetismo mais desqualificado, com direito a ataques grosseiros.
Como PT e PSOL, especialmente, tem adotado outra linha, são considerados obstáculos por setores da centro-esquerda, principalmente, por Ciro Gomes, sobretudo quando a tática desses partidos for no sentido de construção de uma frente de esquerda e de uma política em torno de uma alternativa popular e autônoma para a crise. Enquanto perdurar a linha da centro-esquerda descrita nesse texto e/ou não houver mobilizações de grande envergadura, é provável que o conflito se mantenha ou se amplie, pois a crise social e política colocará a centro-esquerda diante de contradições cada vez maiores, o que envolve, de um lado, a sua tentativa de compor uma frente com a direita-neoliberal-não-bolsonarista e, de outro, a insatisfação social crescente, a luta da esquerda pelo afastamento do governo Bolsonaro e o combate ao programa ultraliberal.
(*) Marcos Jakoby é professor e militante do PT