Que IBGE queremos?

Por Carlos Vainer (*)

Imagem: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

Ao interromper o processo de criação do “IBGE+” e empresariamento do IBGE, o governo federal não recuou; pelo contrário, deu importante passo à frente

Em novembro do ano passado me manifestei contrário à criação do IBGE+. À época li toda a documentação disponível (notas oficiais, manifestos, pareceres jurídicos, etc) e conversei com vários servidores do órgão. Num pequeno restaurante no Catete, em encontro com Marcio Pochman, pudemos ter rica e respeitosa troca de ideias, que ajudou a esclarecer algumas poucas concordâncias e muitas divergências.

Como a polêmica continua, resolvi voltar ao tema.

Em primeiro lugar, penso que a discussão acerca do conflito no e sobre o IBGE deva ser conduzida tendo em vista o tipo de Estado, republicano e democrático, que queremos. Muitas vezes, lamentavelmente cada vez mais, ao invés de debate de ideias, assistimos contendores acionarem argumentos ad hominem. Ora, não se trata de discutir a biografia de Marcio Pochman, seu engajamento, o que fez, o que escreveu e o que tem dito sobre a realidade brasileira.

Pessoalmente, eu o respeito, concordo com algumas de suas ideias e discordo de muitas outras. Igualmente respeito a ASSIBGE, tendo participado da manifestação que organizou alguns anos atrás, na porta da sede do IBGE no Rio, contra a suspensão do Censo por Jair Bolsonaro. Não é isso, no entanto, que está agora em questão, nem o que deveríamos colocar no centro da discussão.

Não faz sentido deslocar o debate para acusações a servidores do FIBGE (lembremo-nos que esta instituição já é uma fundação) que seriam isso ou aquilo. Afinal de contas, penso que ninguém discordaria de que a imensa maioria dos servidores do IBGE é constituída de técnicos dedicados, comprometicos e qualificados, selecionados por concursos públicos. Também creio que há concordância geral que conflitos acerca de regimes e locais de trabalho são questões sindicais/corporativas normais, com as quais lidam e devem saber lidar todos os dirigentes e administradores públicos.

Um governo que consegue negociar com personagens abjetos da nossa vida política e com militares cujo compromisso com a democracia é, no mínimo, duvidoso, certamente não poderá ser incapaz de conversar e negociar com servidores públicos.

De minha parte, esclareço, sou totalmente favorável, salvo raríssimas exceções, ao regime de trabalho presencial, pois somente ele engendra relações de interação e cooperação impossíveis em regimes “home office”, favorecendo, inclusive, o diálogo e conhecimento mútuo que é condição mesma da organização dos trabalhadores nos locais de trabalho (alguém imagina a organização do movimento estudantil numa universidade a distância? Alguém acha possível organizar lutas e manifestações coletivas significativas sem a presencialidade?).

De outro lado, não posso entender que se pretenda proibir os servidores de ostentarem no título de seu sindicato, com orgulho, o nome da instituição pública a que servem, a exemplo de inúmeros sindicatos e associações de docentes e servidores universitários, do BNDES, Petrobrás, etc.

Estou convencido, insisto, que o tema central do debate deva ser outro: como (re)construir um estado e um serviço público republicanos e democráticos? O que devemos discutir é se a carência de recursos públicos em órgãos da relevância do FIBGE deve nos levar a: (i) encontrar “jeitinhos” para o financiamento; (ii) fazer da captação de recursos no mercado o melhor “jeitinho” para preencher as insuficiências financeiras decorrentes do arrocho orçamentário, decorrente por sua vez das políticas ditas de “austeridade fiscal”.

No governo de Jair Bolsonaro, o então Ministro da Educação Abraham Weintraub lançou o programa “Future-se”, que, em síntese, dizia às universidades federais que deveriam “se virar” e buscar recursos no mercado, pois os recursos públicos eram e seguiriam escassos. Algumas universidades enveredaram por este caminho, como a UFRJ, que está liquidando parte de seu patrimônio imobiliário e entregou 15.000 m2 do campus da Praia Vermelha para uma empresa privada de shows.

Há alguns anos, Fernando Haddad, como Ministro da Educação, promoveu o empresariamento dos hospitais universitários, com a criação da EBSERH – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Invocando a falta de recursos e as dificuldades de gestão, golpeou a autonomia universitária, aprofundou a celetização das universidades públicas e agudizou o processo de corrosão do sentido público e do compromisso dos hospitais universitários com o ensino, pesquisa e extensão … afinal empresas, mesmo quando públicas, têm vocação, objetivo e modus operandi distintos de universidades e outros órgãos públicos.

Ainda recentemente, o Hospital Federal de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, foi terceirizado, sendo sua gestão entregue ao Grupo Hospitalar Conceição, uma empresa pública de direito privado (como a EBSERH), numa lamentável aceitação tácita do mantra neoliberal de que empresas são mais “eficazes” que a administração direta para gerir serviços públicos.

A gestão deficiente e, sobretudo, a falta de recursos promovida em nome de ajustes e responsabilidades fiscais, a asfixia e sucateamento de empresas e órgãos, desde sempre, fazem parte das estratégias de destruição do setor público e sua entrega a empresas.

Os processos de empresariamento e privatização do Estado operam de múltiplas maneiras. Normalmente, são as privatizações de empresas estatais que mais chamam a atenção. Embora mais insidioso e nem sempre visível, há um outro mecanismo, que poderíamos chamar de “empresariamento branco”, que se concretiza através da penetração dos conceitos, visões e práticas empresariais no aparelho de estado.

Adotam-se modelos de planejamento empresarial, adere-se ao gerencialismo e ao competitivismo típicos da empresa privada. Como se empresas privadas, operando em mercados competitivos, constituíssem modelos universais e virtuosos a serem adotados em todas as instituições sociais — sejam organizações governamentais ou não governamentais. Para citar apenas um exemplo: cada vez mais o empreendedorismo e o competitivismo acadêmicos são estimulados, e mesmo impostos, a universidades, professores e pesquisadores, que devem competir para ocupar posições de destaque em rankings disso e daquilo.

Outro exemplo: cobra-se de empresas públicas que tenham lucros elevados, como se sua finalidade principal, senão única, fosse, como na empresa privada, a obtenção de lucro, ao invés do atendimento a alguma necessidade pública — isto é, social, coletiva.

No dia 6/11/2024 passou quase despercebida a decisão da plenária do STF que rejeitou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2135, impetrada em 2000 pelo PT, PCdoB e PSB contra a PEC 19/1998 – Reforma Administrativa de Bresser Pereira no governo FHC. Entre outras coisas, a emenda constitucional eliminava (e, agora validada pelo STF, eliminou) a obrigatoriedade de que servidores públicos sejam regidos pelo Regime Jurídico Único, conquista da Constituição de 1988 que acabou com a convivência de diferentes regimes de trabalho no serviço público.

Não tive notícia de que o PT, o PCdoB, o PSB ou o Ministério de Gestão e Inovação tenham protestado contra, ou ao menos lamentado, essa derrota da constitucionalidade do Regime Jurídico Único. Em outras palavras: assistiram silentes (com satisfação?) mais esta vitória da concepção de estado gerencialista neoliberal levada a cabo pela reforma da dupla FHC-Bresser Pereira que combatiam em 2000. (Observação: esta reforma foi bem mais ampla que o fim do Regime Jurídico Único e não caberia aqui discuti-la em todas as suas perversas consequências).

Na verdade, o ataque ao caráter público dos serviços públicos e ao Regime Jurídico Único não esperou a decisão do STF, uma vez que a celetização já vinha avançando em várias áreas, com múltiplos e diferenciados processos de terceirização — postos de saúde, hospitais, serviços no interior das próprias instituições públicas e, mais recentemente, cada vez mais, em vários estados, a educação.

Mas voltemos ao IBGE. Criado em 1936, dois anos antes da criação do DASP que viria implantar o concurso público obrigatório para ocupar cargos públicos (cf. Artigos 170 156, respectivamente, nas constituições de 1934 e 1937), o IBGE atravessou seus 90 anos de existência prestando enormes serviços ao Estado e à sociedade brasileira. Em vários momentos passou por dificuldades financeiras, técnicas, pressionado por prefeitos contra os resultados censitários e assediado politicamente pelos que sempre viram o estado e o setor público como inimigos a serem abatidos, distribuindo o botim de forma a atender interesses privados.

E também, claro, por aqueles para quem a ocupação de cargos públicos sem concurso é o caminho para alimentar redes de patronagem-clientela, em que se locupletam parcelas relevantes da nossa “classe política”, reproduzindo apropriações privadas da máquina pública e relações notoriamente perversas entre poderes executivo e legislativo.

O argumento acionado pela diretoria do FIBGE não é novo: faltam recursos. Vemos repetir-se a mesma história de sempre: asfixia-se financeiramente o órgão ou empresa que é o alvo do momento, sucateiam-se os serviços, precarizam-se as condições de trabalho… e a solução é a privatização, ou, como no caso do Future-se de Abraham Weintraub e, agora do FIBGE: busquem recursos no mercado. Não quero dizer nem sugerir que a asfixia do IBGE teve início na gestão de Marcio Pochman e sob o governo Lula, mas, sim, que o desmonte herdado de Michel Temer-Jair Bolsonaro não pode ser superado com a cartilha dos que propugnam a austeridade fiscal e o encolhimento do setor público.

Penso que ao invés de defender e atacar Marcio Pochman ou o sindicato do IBGE, deveríamos nos unir, associações científicas e sociedade civil para, junto com dirigentes e servidores do órgão, exigir que o governo federal, o Ministério do Planejamento, da Gestão Pública e Inovação e da Fazenda assegurem recursos públicos orçamentários para que o FIBGE cumpra suas funções. É sabido que os recursos são abundantes. O pagamento da dívida pública (juros e amortizações) engoliu em 2024 R$ 2,5 trilhões, (45% do orçamento total); isso para não falar de subsídios e isenções ao capital, que chegaram a R$ 544 bilhões (O Globo, 13/10/2024).

Ao interromper o processo de criação do IBGE+ e empresariamento do IBGE, o governo federal não recuou; pelo contrário, deu importante passo à frente. E devemos saudar esta decisão. Trata-se agora dar o segundo passo e dotar o órgão dos recursos orçamentários de que necessita para que seu caráter público e sua excelência técnica sejam assegurados e aprimorados.

(*) Carlos Vainer é Professor Emérito do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Publicado originalmente em: https://aterraeredonda.com.br/

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