Resposta a Vladimir Safatle: a esquerda não morreu!

Por Valter Pomar (*)

 Vladimir Safatle

El Pais publicou, no dia 11 de fevereiro de 2020, um artigo intitulado “Como a esquerda brasileira morreu”.

Ao contrário do que sugere o título, o artigo não é assinado por alguém da direita, mas sim por Vladimir Safatle.

Vejo quando posso os artigos de Safatle, tendo polemizado com alguns, como se pode ler nos endereços abaixo:

http://valterpomar.blogspot.com/2014/06/sequestraram-safatle.html?m=0

http://valterpomar.blogspot.com/2014/08/comentario-complementar-ao-texto-do.html

Desta vez, Safatle começa explicando ter cometido “um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título”.

Entretanto, diz ele, “talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores”.

Se entendi direito, teriam bastado um ano de governo da extrema direita e um terço dos eleitores para Safatle declarar morta a esquerda brasileira.

Que aconteceria se este tipo de “peso e medida” tivesse prevalecido em inúmeras outras situações de derrota, no Brasil e mundo afora?

Um século de existência, quatro vitórias presidenciais seguidas desde 2002, 47 milhões de eleitores em 2018, centenas de milhares de militantes distribuídos em inúmeros partidos e movimentos sociais, uma imensa tradição cultural, tudo isto teria morrido??

O absurdo é tão grande, que Safatle logo explica que “não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora”.

Então tá: a esquerda não morreu, foi um “longo ciclo” que “termina agora”. Mas, complementa Safatle, se “a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites”.

Nem sempre um fim de ciclo equivale a morte. Portanto, é justo perguntar: qual a origem desta equivalência sugerida por Safatle? O governo Bolsonaro??

A primeira vista, parece ser isto mesmo. Nas palavras de Safatle, “aqueles

que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia foi chamado de ‘a esquerda brasileira’ enquanto força opositora”.

Certamente quem acreditava naquela besteira do “colapso”, precisa mesmo rever suas análises. Acontece que: 1) esta nunca foi a única posição existente na esquerda brasileira; 2) as esquerdas brasileiras já incorreram em erros analíticos maiores e já sofreram derrotas paralisantes por mais tempo, sem que isto tenha significado sua morte.

O uso da expressão “morreu”, mesmo atenuado, revela um pessimismo que talvez nem Freud explique. Pessimismo que está relacionado, penso eu, às ilusões de quem achava que, necessária e rapidamente e definitivamente, uma determinada estratégia seria superada por outra.

Safatle cita, entre os “signos” do tal “diagnóstico terminal”, a aprovação da “reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo atropelamento”.

Não subestimo o tamanho da derrota sofrida na reforma da previdência. Mas as afirmações feitas por Safatle e transcritas no parágrafo anterior são incorretas, por vários motivos.

O principal motivo de erro é a ideia de que a reforma previdenciária teria sido “a maior derrota da história da classe trabalhadora”. Não foi a maior (o golpe em si e a reforma trabalhista foram, estruturalmente falando, muito mais graves) e, além disso, derrotas maiores podem vir por aí.

Achar que chegamos ao fundo do poço apenas prepara o terreno para novas e piores crises depressivas. Afinal, tudo indica que as coisas vão piorar muito antes de começar a melhorar.

Outro motivo pelo qual as afirmações acima citadas são incorretas é que sabemos, sim, quem são os responsáveis pelo atropelamento: diretamente, a coalizão que sustenta o governo Bolsonaro; indiretamente, os setores oposicionistas que, desde o início, flertaram com aspectos da reforma, criando dificuldades para que a esquerda tivesse uma tática coesa e consistente.

Acontece que nada disso é novo. Desde os anos 1990, um setor da esquerda brasileira vem assumindo posições social-liberais. E, especialmente depois de 2014, isto tem contribuído para derrotas gravíssimas. Portanto, se há novidade, ela reside em Safatle falar em morte de toda a esquerda.

Como já disse, ele usa a palavra “morte” de forma, digamos, um pouco criativa. Por exemplo, copio a seguir outra frase dele: “a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político”.

Ou seja: segundo Safatle, não se trata de um setor da esquerda que traiu, que está equivocado, que adota uma linha inadequada etc. Nem se trata de algo temporário, passageiro, momentâneo, que possa ser superado.

Não! Segundo Safatle, seria toda a esquerda que “não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político”.

Aqui há uma pegadinha: para “impor” outro horizonte, é preciso lutar por ele, acumular forças, conquistar vitórias parciais etc. E quanto se está saindo de uma derrota, como é o nosso caso agora, é preciso lamber as feridas e corrigir rumos. No caso concreto, é preciso compreender, derrotar e superar as posições que contribuíram para a derrota brutal que experimentamos entre 2015 e 2018.

Quem disse que isso ia ou vai ser fácil? Quem disse que isso ia ou vai ser rápido? Quem disse que ia ou vai ser linear? E quem disse que nosso realinhamento seria garantido?

Safatle diz que “durante todo o ano de 2019”, “não foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora”.

Embora não explicite, a crítica de Safatle toma como parâmetro o ocorrido no período 1982-2002. E o que ele não percebe é que este período não serve como parâmetro para o que precisamos fazer agora.

Explico: Safatle expressa no parágrafo citado anteriormente o desejo de que a esquerda, a partir dos locais que governa, saiba e consiga construir alternativas.

Isto foi parcialmente possível, entre 1982 e 2002: a esquerda, a partir de prefeituras e governos estaduais, conseguiu “indicar a viabilidade” de políticas alternativas. Mas isto não é possível hoje, exatamente porque o período histórico mudou e, portanto, nossa estratégia não pode ser a mesma que adotamos antes.

É paradoxal, mas neste ponto Safatle parte da mesma premissa adotada por alguns setores moderados do petismo, que gostariam de derrotar Bolsonaro da mesma forma como derrotamos FHC. O ponto de apoio de um e de outros é, principalmente, a institucionalidade. Além de tudo, não percebem que existe uma relação direta entre a derrota que sofremos e a via principalmente institucional de acúmulo de forças.

Depois de Freud, Safatle cita Maquiavel: “não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo”.

Confesso que tenho certa dificuldade de acompanhar o raciocínio de Safatle. Ele diz que Bolsonaro tem “certa adesão popular”, ou seja, reconhece que há uma parte da população que não adere. Esta não aderência decorre, ainda que parcialmente, da ação da esquerda. Noutra passagem, Safatle dá a entender que os não aderentes seriam dois terços da população. Pois bem: entre outros fatores, esta outra parte da população torna perfeitamente “crível” a construção de uma alternativa. Que, claro, também depende de construir, tanto intelectual quanto praticamente, uma política globalmente alternativa e adequada.

Segundo Safatle, sua crítica “vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação”.

Pessoalmente, acho que o “melhor” a fazer seria começar não considerando que a intelectualidade seja uma “classe”. Sugiro, também, afastar a ansiedade. O fato de que “nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos” pode significar, 1) ou bem que nossas ações são mal orientadas, 2) ou bem que (mesmo com a linha adequada) certas mudanças demoram tempo mesmo, 3) ou pode significar (esta é a minha opinião) ambas as coisas em doses diferentes.

Safatle parece adepto da primeira variante, propondo como “hipótese de trabalho” a seguinte: “a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação”, o “populismo de esquerda”. E teria sido ele “que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar” o que poderia ser a tal “outra fase”.

Safatle não é o primeiro, nem será o último uspiano a desancar e depois declarar morto o “populismo”. Assim, o que surpreende mesmo é que Safatle parece acreditar que no Brasil existiu e existe uma única esquerda, que teria apenas uma única estratégia. Por decorrência, a derrota desta esquerda e desta estratégia, se converteria em derrota de toda a esquerda.

Esta visão é equivocada. A história da esquerda brasileira é, entre muitas outras coisas, também a história da luta entre diferentes estratégias, que por sua vez expressam a existência, dentro da própria esquerda, de diferentes classes e setores de classe.

O PT, por exemplo, surge por iniciativa daqueles setores da classe trabalhadora que rejeitavam a conciliação. O fato de que, anos depois, o próprio PT tenha majoritariamente se inclinado por uma estratégia de conciliação, também resulta das peripécias da luta de classes, não apenas da desorientação desta ou daquela liderança.

Hoje, nos dias que correm, é necessário construir uma nova estratégia e será preciso certo tempo para construir a correlação de forças necessária para que esta nova estratégia possa ser vitoriosa. Deste ponto de vista, a referência que Safatle faz a Carlos Marighella pode se prestar a todo tipo de confusão.

Marighella é um herói do povo brasileiro. Como tantos outros heróis daquela geração, foi durante muito tempo corresponsável pela política de conciliação adotada, majoritariamente, pela esquerda, estratégia que naquela quadra foi derrotada pelo golpe de 1964.

Entretanto, a estratégia alternativa que Marighella e tantos outros tentaram construir, logo após o golpe de 1964, também não foi vitoriosa. E isso precisa ser lembrado, para que não se incorra no mesmo erro.

Safatle diz que “a lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças ‘graduais e seguras’ que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional”.

Safatle que me perdoe, mas isto simplesmente não é verdade. Em primeiro lugar, não é exato que Marighella tenha rompido completamente com a estratégia predominante no Partido Comunista, estratégia que estava presente tanto no Manifesto de agosto de 1950 quando na Declaração de março de 1958, assim como persistiu em inúmeras organizações da luta armada posterior ao golpe militar.

Em segundo lugar e mais importante, a rejeição ao “reboquismo” levou uma parte da esquerda brasileira a criar o Partido dos Trabalhadores em 1980 e a quase conquistar, pela esquerda, a presidência da República em 1989. Por sinal, Safatle parece desconsiderar, em sua digressão histórica, o PT dos anos 1980 e meados dos anos 1990.

E por falar em digressão histórica: Safatle, corretamente, elogia a atitude dos argentinos frente aos crimes da ditadura. E reclama que “no Brasil, ninguém foi preso”. Mas daí ele deduz que “a resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós”.

Penso diferente: as ressureições periódicas do peronismo têm várias origens, entre as quais o fato de que o peronismo conseguiu se estender da extrema direita à extrema esquerda. Foram peronistas o Menem neoliberal e o Kirchner nacional-popular. E a “deriva militar”, assim como a emergência de um “corpo fascista”, é um risco permanente em quase toda a América Latina: as linhas de contenção geralmente são temporárias.

Voltando ao Brasil, Safatle encerra seu texto afirmando que a esquerda estaria “sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita” ter, enfim, “produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo”.

Numa situação como essa, completa Safatlle, “a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo”.

Para não esticar a conversa, deixo para outro momento a discussão sobre a influência dos “ditames antirrevolucionários do Soviete Supremo”, apenas registrando que se isso fosse verdade, não haveria como explicar o ocorrido, por exemplo, em 1935.

Seja como for, não importa tanto a maneira como Safatle vê a influência soviética, no passado da esquerda brasileira; o que realmente importa é como ele vê a esquerda brasileira hoje.

Por exemplo: que conclusão prática tirar da afirmação segundo a qual toda a esquerda brasileira foi “formada para a coalizão e para a negociação” e, por isso, “não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo”, pois “sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido”.

(“Classe intelectual”, “classe política”, que classe de marxista é capaz de cometer este tipo de conceitos???)

Voltando ao ponto: qual a conclusão? A de que esta esquerda precisa ser destruída? A de que a destruição desta esquerda deve ocorrer rapidamente, para assim abrir caminho para uma “verdadeira” esquerda, quimicamente pura e livre de todo o mal??

Safatle não tira esta conclusão “peregrina e monstruosa”, talvez porque mentalmente a julgue desnecessária. Afinal, para ele a esquerda já estaria morta: “seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de médio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim”.

Como já disse alguém, estas notícias de nossa morte são um pouco exageradas. As esquerdas brasileiras não estão mortas. O PT não está morto. Claro que podemos vir a morrer, até porque tudo que é vivo algum dia morre. E claro que podemos nos suicidar, se persistimos em orientações políticas e atitudes práticas equivocadas. Mas não estamos mortos.

E neste ponto devemos lembrar do poeta segundo o qual deveríamos sempre perguntar, a uma ideia, a quem ela presta serviços.

Pergunto: na prática, nos dias que correm, a quem serve afirmar que a esquerda “morreu”, “tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo”?

Serve aos que lutam para alterar a estratégia hegemônica na esquerda brasileira? Ou serve aos que lutam para destruir toda a esquerda brasileira?

Serve aos que lutam para derrotar Bolsonaro pela esquerda? Ou serve aos que argumentam que o caminho para derrotar Bolsonaro é pelo centro?

Derrotar a coalizão golpista (que é algo mais amplo do que o governo Bolsonaro) certamente vai exigir uma mudança de estratégia e vai demorar certo tempo. E também é correto dizer que corremos contra o tempo. Mas ansiedade não ajuda. E pessimismo só atrapalha.

(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do Diretório Nacional do PT

 

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Segue o texto criticado:

https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html

Como a esquerda brasileira morreu (Vladimir Safatle, 11/2/2020)

Este é um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira” enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.

Signos não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao discurso de que o Governo Bolsonaro estaria paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo impensáveis, como a reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está a tentar ser imposta na França. O resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já para o seu terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy.

Isso é apenas um sintoma de que a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político. Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora.

Talvez seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel, o povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.

Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político.

No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.

Este é o modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o golpe militar contra o Governo João Goulart. Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda. Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam.

A lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras” que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional.

Nesse sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós.

Mas há ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da criação de uma espécie de antídoto à reemergência do corpo político populista. O que vimos, e agora isto está cada vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de transformação social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já se disse que todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.

Theodor Adorno um dia descreveu o líder fascista como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente pensando no Chaplin de O grande ditador). Essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação social.

Dessa forma, tudo se passa como se Bolsonaro fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula. Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real, criando um duplo imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas se não compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.

O fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os processos de incorporações populistas que foram, até agora, a alma da esquerda brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).

Numa situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de medio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.

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