Por Gezilda Lima (*)
2015, edifício residencial danificado por um ataque das forças armadas ucranianas em Donetsk.
Texto publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista
É demasiado complicado simplesmente acreditar que tudo se iniciou em 24 de fevereiro do ano passado, quando a Rússia, depois de ter esgotado todas as tentativas de solução pacífica da guerra civil ucraniana deflagrada em 2014, e que vinha provocando um verdadeiro genocídio aos povos russos que ali viviam e ainda vivem, decidiu montar uma operação militar na defesa dos russos na região de Donbass (Donetsk e Lugansk).
Naquela ocasião, a Rússia decidiu reconhecer a independência desse território que, democraticamente, através de referendum popular, decidiu se tornar independente do Estado Ucraniano, por não concordar com a instalação do regime neonazista. Se não tivermos o cuidado de analisar os motivos que levaram a tais procedimentos, poderemos estar incorrendo em inúmeros erros de avaliação.
Só reavivando a memória, vejamos alguns elementos que antecederam a deflagração da, assim chamada, Operação de Desmilitarização e Desnazificação da Ucrânia pela Rússia.
O marco zero do atual conflito é marcado pela chamada “Revolução Laranja” na Ucrânia em 2014, que gerou uma guerra interna civil com a matança desenfreada de ucranianos. Naquele momento, a Crimeia, uma região de população marcadamente russa, decidiu fazer um referendum popular, onde requeria o retorno desse território ao seu berço natural, a Rússia, com um resultado de mais de 97% dos votos favoráveis ao retorno. Vale lembrar que a Crimeia foi anexada ao território ucraniano, durante a União Soviética, pelo então Secretário Geral da URSS, Nikita Kruschev, em 1954, apenas para otimizar questões logísticas de escoamento de produção.
Então, a reincorporação da Crimeia à Rússia passou a ser o motivo da discórdia entre Moscou e Kiev. Para solucionar a crise, ocorreram negociações que geraram um primeiro acordo para cessar a Guerra Civil na Ucrânia – o Acordo de Minsk número 1, que não foi cumprido pelo governo da Ucrânia, então sob o comando do presidente Poroshenko. Com a ascensão de Volodymyr Zelensky, uma nova tentativa de acordo de paz levou à assinatura de um novo acordo – o Acordo de Minsk número 2. Porém, Zelensky também não atenta a esse novo acordo e vai muito mais além: inicia tratativas para ingresso da Ucrânia à União Europeia.
Tudo estaria tranquilo, caso a Ucrânia não exigisse a manutenção de todos os privilégios até então recebidos da Rússia, por tratar-se de uma ex-república soviética. Obviamente que o Kremlin não atenderia a tais demandas, já que não está dado que a Rússia desenvolva tratamento diferenciado nas relações com países europeus.
Não bastasse isso, Zelensky ainda acena com a vontade de ser membro da OTAN. É aí que têm início as maiores tensões, pois a Ucrânia, país limítrofe da Rússia, estaria abrindo suas fronteiras para instalação de bases militares estadunidenses. Alguém duvida que a Rússia admitiria tal façanha?
Nesse intermédio, outras duas regiões que vêm sendo massacradas desde 2014, a região de Donetsk e de Lugansk, também se rebelam e se autodenominam Repúblicas Independentes e Livres. Essas regiões também reivindicavam serem incorporadas ao território russo, porém, Vladimir Putin, não levou adiante tais pretensões.
Fato é que, desde 2014, estas regiões vêm sendo massacradas pelos governos de Kiev, inicialmente por Poroshenko, e intensificadas por seu sucessor, Zelensky, que, aliás, foi eleito sob a bandeira de pacificar a Ucrânia e acabar com a guerra civil, dando luz aos acordos de Minsk. Doce Ilusão. Foram mortos mais de 14 mil civis desde 2014 até 2021.
Pois bem, no final de 2021, foram feitas dezenas de reuniões com representantes da Europa e dos Estados Unidos na busca de uma solução pacífica, infelizmente sem resultados satisfatórios. De um lado, a Rússia alertando para os perigos da aproximação de bases da OTAN e, de outro, a Ucrânia apostando na guerra, tendo seus delírios acariciados pelos aliados americanos e europeus.
Em nome da defesa de seu próprio território, garantia da própria soberania e em defesa da população de língua russa dessas regiões em conflito, a Rússia, então, em 22 de fevereiro, reconhece a soberania das Repúblicas Independentes de Donetsk e Lugansk. E, ato contínuo, em 24 de fevereiro leva suas tropas para estes territórios, agora, já soberanos.
O impacto da guerra no consumo do povo russo e nas gerações que não conheceram o socialismo
Desde 24 de fevereiro de 2022, os russos começam a entender que haverá muitas mudanças em seu cotidiano. Pensar no retorno ao período soviético não é exatamente um novo projeto russo. Mas, de algum modo, muita coisa voltará a ser como antes.
Evidentemente, não está colocada na ordem do dia uma perestroika que os faça sonhar com um retorno ao socialismo, qualquer que fosse ele. Mas, sem dúvida alguma, essa nova “perestroika” trará de volta aos russos a necessidade de viver sem grifes famosas europeias ou americanas. Talvez isso traga algum desconforto à nova geração desses últimos 30 anos, que não viveu o socialismo e que cresceu à luz da ilusão capitalista, sob a falsa retórica de liberdades plenas. O que essa nova geração não consegue responder é como dar conta dessas supostas liberdades que o capitalismo lhe apresenta, quando não estão dadas condições financeiras para sobreviver neste mundo onde não existe a garantia de moradia, a garantia de educação pública e gratuita, assistência médica plena gratuita, e outras benesses daquele socialismo outrora criticado. Sim, tudo isso lhes falta desde que nasceram. Mas, assim nasceram, diferentemente de seus pais e avós, que hoje começam a acreditar que um mundo melhor estaria de volta.
Com a eclosão do conflito e a implementação de um sem-número de sanções contra a Rússia, vivemos hoje uma nova era. A possibilidade de rompimento da dominação mundial pelo dólar desenha o fim de uma era, abrindo uma janela para a multipolaridade. Gostem ou não, a partir de agora, os russos estão fadados a sobreviver basicamente do que é possível produzir em seu próprio território, tendo, no máximo, a possibilidade de acesso a produtos de países amigos, que nem sempre são capazes de suprir as necessidades russas.
A equipe econômica e administrativa do governo russo tem trabalhado arduamente na reorganização de sua economia e seu parque produtivo. Trata-se da volta à antiga economia planificada, agora, dentro dos moldes capitalistas.
É claro que a indefinição do fim do conflito que ainda não aponta para um final, aliada a um sentimento de escassez já muito conhecido do povo russo, num primeiro momento, levou a população à tentativa de se precaver e buscar provimentos para longo prazo. Mas, de outro lado, o governo, sabiamente, conteve essa corrida, tranquilizando e criando instrumentos de contenção da especulação.
Exemplo disso, foi a corrida, embora nada que saltasse aos olhos, às lojas de marcas estrangeiras que, logo na primeira semana após as sanções, anunciaram sua saída do mercado russo, ou às redes bancárias para saques de suas economias. Um setor que ainda chama a atenção é o mercado de medicamentos, já que o povo russo se acostumou a se medicar com remédios em geral vindos da Europa, embora haja similares russos, muitas vezes até mais eficientes. Evidentemente, aqueles que não sumiram das prateleiras tiveram seus preços aumentados de forma exorbitante, em que pese o governo ter garantido que não haveria qualquer problema na fabricação de análogos e mesmo ter feito marcação cerrada a esses distribuidores, com aplicação de multas, exigência de retorno ao preço inicial e até o fechamento de farmácias infratoras. Nas prateleiras dos supermercados, os produtos alimentícios e de higiene pessoal importados foram, literalmente, substituídos por produtos nacionais.
Em geral, não houve um frenesi que modificasse a rotina e, aos poucos, o povo começou a assumir uma postura de esperar até que essa nova ordem se acomodasse no mercado nacional.
Empresas vêm se reorganizando para suprir a necessidade de componentes importados e, de um modo geral, naquilo onde hoje ainda não se tem similar russo, esses componentes vêm sendo adquiridos de países vizinhos e parceiros como a China, Índia, Turquia e outros, ou começam a ser produzidos com tecnologia russa. Eu, particularmente, vejo com bons olhos essa nova industrialização. Certamente será um novo pilar de crescimento para a economia russa.
O setor financeiro, o mais atingido com as sanções, ainda sente o bloqueio ao sistema SWIFT de pagamentos, remessas e recebimentos via dólar ou outra moeda estrangeira, mas a resposta de Putin se mantém taxativa: “manteremos o cumprimento de todos os nossos compromissos e mesmo não nos furtaremos a fornecer nossos produtos, em especial gás e petróleo, aos países que decidiram nos isolar, impedindo-nos do uso do dólar e do euro, mas temos a nossa moeda e, por conta das sanções, nossos negócios somente serão realizados a partir do nosso rublo”. Quando desse pronunciamento, tanto o dólar como o euro imediatamente sofreram uma queda brusca e, por conseguinte, o fortalecimento do rublo foi estampado na bolsa de valores.
Para o russo comum, em pouco isso influencia, talvez apenas no verão, quando se preparam para as férias e viagens, aí, sim, essas mudanças são sentidas, posto que, para os russos, verão é sinônimo de viagens ao exterior, em busca do mar. Já para a oligarquia, a distância das “verdinhas” provocou um verdadeiro choque.
Enquanto a vida prossegue na busca de um novo modelo circunscrito ao território russo, assistimos a manifestações populares de toda sorte na Europa e Estados Unidos por conta do aumento da inflação e custo de vida provocados pelas próprias sanções impostas à Rússia. Visivelmente, os europeus e americanos deram um tiro em seus próprios pés.
Mas, obviamente, ao contrário de assumir seus erros, o Ocidente prefere continuar fomentando uma guerra suicida, com fornecimento de armas aos ucranianos e mantendo uma rede insólita de fake news ao redor do mundo, buscando caracterizar a Rússia como um monstro insaciável. E, ainda pior, alimentando o crescimento de uma rede neofascista que, certamente, não se circunscreverá apenas ao território ucraniano.
Sob a máscara da democracia americana, o mundo assiste à destruição de mais um país, e ainda coloca a Europa de joelhos à sua política de dominação. Quem não se recorda da famigerada guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética? O desmonte do Estado Soviético não trouxe a paz para a Rússia. Os acordos criados desde 1989, quando da queda do muro de Berlim, a exemplo da dissolução do Tratado de Varsóvia, pela lógica, deveriam ter resultado na aniquilação do Tratado Atlântico Norte (a OTAN), porém, enquanto a Rússia cumpria sua promessa, os Estados Unidos traziam suas bases militares mais e mais próximas às fronteiras russas. Está aí a essência do conflito hoje na Ucrânia. Não nos iludamos, a Ucrânia é apenas a bucha do canhão norte-americano da vez.
(*) Gezilda Lima é jornalista.