Setoriais em transição

Por Rafael Tomyama (*)

Ato do Movimento dos Atingidos por Barragens, em Brasília, contra PL da Devastação.
Foto: Gabriela Biló

No início de agosto, o presidente Lula sancionou com vetos o Projeto de Lei 2.159, mais conhecido como PL da Devastação. Os vetos, embora não tenham impedido totalmente a flexibilização do licenciamento ambiental, inclusive com situações previstas como autodeclaratórias, denotam o quadro das tensões que envolvem a luta de classes na atualidade no campo e nas cidades.

Tais tensionamentos se expressam no mundo material dos desmatamentos, soterramentos, contaminação e destruição dos bens ambientais e, ao mesmo tempo, no despreparo ou sucateamento proposital dos órgãos ambientais, além de ameaças a servidores e até execuções de lideranças comunitárias, ambientalistas e indígenas.

O avanço no Brasil e no mundo inteiro do capital financeiro e seu braço agroexportador sobre os biomas é a “saída” das corporações rentistas transnacionais para escalarem suas taxas de lucro frente à baixa tendencial e às pressões concorrenciais por mercados.

O pano de fundo desse ataque, no entanto, mais do que as condições específicas do capital hegemônico (banqueiro) e suas múltiplas ramificações, está na natureza de sua própria composição, ou seja, na financeirização de todas as dimensões da vida, nos planos de “austeridade fiscal” dos governos e no endividamento das aspirações de consumo e “empreendedoras” que balizam ideológica e materialmente o mundo do trabalho.

Apesar da evidência de que as ofensivas destrutivas sobre direitos — reforma trabalhista — e Natureza — PL da Devastação — sejam faces da mesma moeda dos interesses econômicos empresariais, há uma alienação profunda da maior parte da esquerda socialista, especialmente no meio sindical, para percepção da dimensão do desafio planetário colocado num outro patamar das lutas sociais e políticas.

Para tanto, é preciso superar a inversão do crescimento-econômico-a-qualquer-custo, que atinge mesmo o keynesianismo desenvolvimentista e que está no cerne da panaceia que associa o ‘progresso’ ao superávit no PIB e na balança de pagamentos.

Tal engodo prevalece como se a economia estivesse reduzida à esfera monetária e como se o capital não se gerasse a partir da exploração das possibilidades da base natural das forças produtivas. Enquanto passeiam pela fachada do ‘marketing verde’ bombado pela mídia golpista, os capitalistas protagonizam sua cruzada insustentável sobre o que consideram a ‘Natureza selvagem’.

Com qual objetivo? Durante a pandemia, por exemplo, a concentração de riquezas se intensificou ainda mais, tendo os bilionários adicionado US$ 5 trilhões às suas fortunas, segundo relatório da Oxfam. O que isso significou para a redução das mazelas no mundo? Nada.

Portanto, é imprescindível romper com modelo teórico burguês de “fazer crescer o bolo para depois dividir” que está na linha oposta, por exemplo, da luta pela redução da jornada de trabalho.

Trabalhar menos para viver mais e redistribuir o excedente de riquezas é uma bandeira central da ecologia política, pois com apenas uma pequena parcela se atenderia às necessidades básicas de sobrevivência de mais de um bilhão de pobres (segundo a ONU) ao redor do mundo.

É preciso colocar em discussão um modelo de crescimento que exalta o aumento do consumo — sintetizado no slogan “picanha e cerveja” — e passar a discutir por toda parte a qualidade da alimentação, da moradia, da saúde, dos acessos aos bens culturais etc.

A crítica à “desigualdade” é insuficiente porque não chega à sua raiz estrutural, que é o processo de exploração-acumulação, ou seja, é a conciliação que evita bater de frente com o sistema dos privilégios da ultraconcentração de riquezas.

Se não se constituir enquanto vanguarda desperta para esse alerta, incorporando-se a movimentos de jovens e ativistas periféricos(as), a esquerda será atropelada pelas massas excluídas, capturadas ou não pela extrema-direita.

Já que as megacorporações e seus governos associados inertes empurram a Terra para o genocídio climático, tendo sete de nove limites planetários sido ultrapassados, passa a ser exigido das organizações e lideranças não uma caricaturização “temática” da luta socioambiental e sim uma resposta organizada da classe trabalhadora.

Para a esquerda renovar seu repertório de ações diretas, é urgente inovar suas perspectivas utópicas realizáveis, desde uma nova bioeconomia de autogestão territorial comunitária até propor alcançar uma transição ecológica global.

“Des-organização” partidária

Frente a esses desafios no cenário, quais respostas o Partido se propôs a realizar mereceria um estudo mais detalhado. Especialmente ao lidar com as contradições dos governos ditos progressistas, nos estados e municípios em que o PT lidera ou compõe em aliança.

Mesmo no governo federal, o discurso oficial de compromisso com metas internacionais de reduções dos desmatamentos e das emissões de gases do efeito estufa é contraposto aos impactos de suas políticas de subsídio agrícola ou à exploração de petróleo na margem equatorial da foz do rio Amazonas, por exemplo.

A implantação de estruturas compartimentadas por setores no PT veio a ocorrer ao longo do processo histórico de sua vigorosa inserção na institucionalidade. Inicialmente como respostas orgânicas às necessidades de formulação de políticas públicas com a marca “jeito petista de governar”.

Evidentemente que os chamados setoriais foram revelando suas limitações com o tempo. Da incapacidade de suprir de fato as necessidades de vida orgânica democrática enraizada nas bases, pela burocratização ou pelo esvaziamento da vivência dos núcleos de base, até o aparelhamento por estruturas concorrentes, por exemplo dos mandatos ou de Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas — NAPPs, da Fundação Perseu Abramo.

Atualmente, o interesse no “repartimento” por dirigentes que gravitam em torno de personalidades ou forças internas do condomínio dos setoriais está mais relacionado a objetivos pragmáticos, menos de visibilidade política e mais de presença estatutária em reuniões de instâncias dirigentes e na destinação de recursos para candidaturas supostamente identificadas com as “causas” temáticas no período eleitoral.

Evidentemente que isso coloca como foco de tensão militantes que têm acúmulo real nos debates setoriais e que historicamente sempre estiveram carregando as bandeiras específicas e um turbilhão de adesistas enxertados de última hora por capas-pretas para realizar uma disputa política completamente artificializada e fraudulenta.

Isso, por sua vez, conduz a um estado, em geral, de inoperância desses setoriais, que se mantêm com um funcionamento pró-forma ou, por vezes, nem isso. Com raríssimas exceções (que confirmam o quadro geral), não conseguem responder à conjuntura, dialogar com a sociedade ou sequer direcionar a militância petista para alguma ação concreta.

Meio Ambiente e Des-envolvimento (sic)

Esse cenário não poderia ser diferente no que tange ao Setorial Nacional do Meio Ambiente do PT. Sem apoio ou recursos da direção partidária, fica evidente o absurdo de não se ter noção das crises humanitárias associadas aos desastres dos extremos climáticos em curso.

Em situações pontuais, no entanto, como no caso da inundação no Rio Grande do Sul, quando o Setorial é lembrado para chancelar o oportunismo descartável do uso político da tragédia para simular uma preocupação “verde” das estrelas midiáticas da legenda.

As poucas iniciativas do Coletivo nacional são sistematicamente boicotadas pela atual direção majoritária do PT, mesmo tendo seus aliados como integrantes da instância. Na verdade, não dão a menor importância ao debate ambiental, cancelam eventos programados em cima da hora ou abandonam projetos de mais longo prazo.

É certo que há a necessidade de uma avaliação mais aprofundada. O próprio Coletivo não tem tido um funcionamento adequado, nem tem se apresentado à altura dos desafios políticos colocados nas pautas socioambientais. A Secretaria Nacional tem sido omissa em quase todas as questões básicas. Seja no direcionamento de ações ou formulação política, diálogo com mandatos e governos e até em mobilizações sociais de grande monta, como a COP 30.

Uma das evidências mais ilustrativas dessa displicência na prioridade pelas forças políticas é o tratamento dado ao cargo do titular da pasta, que fora trocado três vezes por razões diversas, sem o menor processo amplo de discussão com a militância ambientalista, que não elegeu as pessoas que substituíram (a eleição de secretários é feita separadamente do Coletivo).

No máximo, há preocupações com questões internas de divisão de recursos para campanhas. Tampouco há pronunciamentos sobre as políticas desenvolvidas pelos governos de coalizão integrados pelo PT. Em suma, sem planejamento, não há nada politicamente relevante sendo tocado adiante pela atual gestão à frente da pasta.

Diante desse quadro e dos desafios colocados para o Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras no país, não há como a Articulação de Esquerda ser conivente com esse esvaziamento. É urgente candidaturas e chapas combativas que representem de fato o sentido de luta da militância por alternativas políticas ao descalabro socioambiental e pela edificação das alternativas populares ecossocialistas.

(*) Rafael Tomyama é membro do Coletivo da Secretaria Nacional do Meio Ambiente e Desenvolvimento do PT e da Executiva do Diretório Municipal do PT Fortaleza/CE.

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