Por Valter Pomar (*)
Recentemente, o professor José Luis Fiori colocou o dedo na ferida: a responsabilidade das forças armadas, enquanto instituição, pelo governo Bolsonaro. E a coerência entre esta atitude e a história pregressa da instituição militar em nosso país.
O texto do professor Fiori pode ser lido aqui:
http://valterpomar.blogspot.com/2021/01/fiori-as-forcas-armadas-e-outras.html
Infelizmente, a posição do professor Fiori está longe de ser majoritária na esquerda brasileira. Um bom exemplo disso é o artigo do companheiro Tarso Genro, disponível no endereço abaixo:
http://www.ihu.unisinos.br/606373-governo-bolsonaro-atuou-para-disseminar-o-coronavirus-diz-estudo
No citado artigo, Tarso Genro afirma o seguinte: “Este artigo quer propor uma outra visão sobre a responsabilidade da instituição militar – não sobre os militares singularmente tomados – na matança que o Governo Federal proporciona com a sua política sanitária genocida”.
Segundo ele, “os militares do país – na sua ampla maioria – não querem que o país seja – no futuro – o que é o Rio de Janeiro hoje. Este é o meu ponto de partida. O golpe contra Dilma e a Constituição Federal pode ter tido a simpatia de uma parte das forças militares do país, mas não foi promovido por nenhuma delas”.
A pergunta que faço é: sem o apoio da cúpula das forças armadas, o golpe contra Dilma teria ocorrido? A prisão de Lula teria ocorrido? A candidatura Bolsonaro teria sido o que foi?
Não se tratou apenas de “simpatia”, mas de interferência aberta e direta, totalmente inconstitucional e ilegal. Os fatos são conhecidos. Negá-los é mais ou menos como negar a responsabilidade da cúpula da ditadura na prática de torturas, que eram uma política de Estado, não um assunto dos “porões”.
Por qual motivo Tarso nega aquilo que é público? Na minha interpretação, porque ele considera que “não é correto – nem tática nem estrategicamente – colocar todas as instituições no mesmo saco”.
Dito de outra forma: por acreditar que não é possível derrotar ao mesmo tempo Bolsonaro e as Forças Armadas, ele dissocia artificialmente ambos, reduzindo demasiado os vínculos e as responsabilidades.
Sobre a pandemia, Tarso vai além. Diz que não ser “correto, igualmente, outorgar responsabilidades “concentradas” sobre os militares, na mortandade em curso”.
Claro, a responsabilidade pode ser jogada sobre os negacionistas, sobre certos meios de comunicação, sobre o empresariado, sobre prefeitos, governadores, sobre o presidente…
Mas a questão concreta é: o presidente é militar, o vice é militar, o ministro da Saúde é militar. Portanto, existe uma responsabilidade “concentrada” neles, não por nós, mas por eles mesmos.
Novamente, o que Tarso está dizendo, na minha interpretação, é que não seria conveniente enfatizar esta concentração de responsabilidades.
E não seria conveniente “porque (…) a identidade guiada por esta aparência imediata pode levar a equívocos graves. No caso, esta atribuição aos militares do Exército pode contribuir para dar maior opacidade à política, amortecendo as responsabilidades principais do que ocorre aqui, que não foi provocado pela instituição que, no fundamental, respeitou os protocolos mínimos republicanos da nação”.
Como é? A instituição (no caso, ele fala do Exército) “respeitou os protocolos mínimos republicanos da nação”? Quando mesmo??
Não é preciso ir muito atrás na história, basta lembrar das manifestações públicas de inúmeros generais, inclusive de Villas Boas, pedindo a condenação, prisão e interdição da candidatura de Lula, para se dar conta de que a afirmação de Tarso não corresponde a verdade.
O mais curioso é o argumento seguinte, a saber: “No caso de fixar-se esta culpa, ficaria mal resolvida uma questão de fundo: por que um presidente, precisamente por não trair a sua sórdida mensagem eleitoral depois da eleição, conseguiu sobreviver como governante de uma nação, sem qualquer respeito à moralidade republicana e se fez o projeto das suas classes dominantes, emprestando a sua face ao corpo político neoliberal do país?”
Uma das respostas, que Tarso não quer ver e que Fiori apontou com todas as letras, é: o apoio armado. Não só das Forças Armadas, mas também das polícias, milicianos e particulares.
Tarso considera “errado, do ponto de vista político, e injusto, do ponto de vista histórico, identificar o Exército Brasileiro com a chacina sanitária. É errado, porque ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa e é errado porque Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA – nem sua vocação política que é positivista conservadora, mas não fascista -; e é errado, porque reduz a responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente e ainda lhe mantém no poder. Este é consórcio responsável pela crise política em curso e pela mortandade em escancarar o seu terror”.
Vamos nos focar primeiro na injustiça “do ponto de vista histórico”.
Historicamente, temos não apenas um ministro militar, mas um conjunto de militares no ministério da Saúde e noutras repartições públicas, cometendo desatinos propositais. Isto são os chamados fatos históricos. Tudo bem que estamos em tempos negacionistas, mas tudo tem limite.
Agora vamos ao tema do erro “do ponto de vista político”.
Segundo Tarso, “identificar o Exército Brasileiro com a chacina sanitária (…) ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa”.
Há um problema de tempo verbal neste raciocínio: a extrema direita já está reorganizada e controla a ativa. A questão, portanto, é oposta: para desmontar a extrema-direita, precisamos “colocar o dedo na ferida”. Entre outros motivos, pelo seguinte: se eles puderem fazer tudo o que estão fazendo e a instituição conseguir sobreviver incólume, que estímulo terão os setores hoje minoritários nas FFAA para lutar contra o predomínio da direita?
Tarso afirma, também, ser errado politicamente porque “Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA – nem sua vocação política que é positivista conservadora, mas não fascista”.
Não quero entrar em batalhas acerca do significado do fascismo, até porque não acho que o governo Bolsonaro seja propriamente fascista; se fosse o mais provável é que (na melhor das hipóteses) Tarso e eu estivéssemos usando pseudônimos.
Mas considero autoengano dizer que “Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA”. Quem tem contato com os militares sabe o quão entranhado está o bolsonarismo nos quartéis.
Ademais, ser “positivista conservador” não significa ser contrário à tortura, aos golpes, as ditaduras, a LSN e assim por diante.
Isto posto, Tarso tem razão no seguinte: os militares não estão sozinhos nessa. Como não estiveram sozinhos na ditadura militar.
Tanto lá quanto agora, não se pode nem se deve reduzir a “responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente”.
Isto tudo é verdade. Mas tampouco se deve reduzir a “responsabilidade objetiva e subjetiva” da instituição enquanto tal.
A rigor, Tarso sabe disso tudo. A questão é que ele considera “impossível construir República e Democracia no Brasil, sem que a maioria das Forças Armadas seja conquistada para um projeto de nação, cuja soberania estará depositada – em grande parte – nas mãos destas instituições (…)”.
Se eu entendi direito o que está escrito, Tarso afirma que a soberania da nação estaria depositada “em grande parte” nas mãos dos Forças Armadas. Se for isso mesmo, discordo frontalmente. Uma república e uma democracia que dependam “em grande parte” das forças armadas é algo muito distante daquilo pelo que lutamos. Mas quem sabe eu tenha entendido errado o que li e Tarso tenha querido dizer outra coisa.
Seja como for, penso que será impossível construir uma República e uma Democracia sem que a maioria do povo esteja convencido de que com estas Forças Armadas que temos hoje, não será possível construir uma República e uma Democracia que mereçam o nome.
Claro, espero que também convençamos a maior parte dos integrantes das forças armadas disto (1). Mas para “conquistar” a maioria das Forças Armadas “para um projeto de nação” diferente do atualmente perseguido por elas, é preciso entre outras coisas demarcar as diferenças.
A posição de Tarso, na minha opinião, passa o pano onde não deve.
Nota
(1) a esse respeito, vale citar o comentário de um companheiro: “no Nordeste, tem militar do Exército morrendo por Covid – oficiais inclusive – por estar atendendo a população pobre, dando assistência etc. Além disso, na minha conta já são 3 os generais mortos por Covid. Esses caras estão morrendo em grande medida pela conduta criminosa do Bolsonaro. Mas isso não livra a cara da corporação Exército. Até agrava em certo sentido”. Ao que eu acrescento: falar a verdade, atribuir as responsabilidades a todos que são responsáveis, a começar pela instituição, ajuda a dividir as águas, a separar quem pode estar conosco daqueles que nunca estarão conosco.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT