Um governo do ódio

Por Egydio Schwade (*)

 

“Odeio o partido comunista (chinês). Ele tá querendo transformar a gente numa colônia. (…) Odeio o termo “povos indígenas”, odeio esse termo. Odeio o “povo cigano”. (…) Acabar com esse negócio de povos e privilégios”. (Ministro Weintraub) “precisa ter um esforço nosso nesse momento de tranquilidade de cobertura de imprensa, só se fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas, unir esforços pra dar de baciada” (Ministro Ricardo Sales). Ninguém preocupado com a pandemia que avança sobre o povo brasileiro e os povos indígenas. Esta é a imagem mais evidente deste Governo do Ódio.

O mais grave da reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, com certeza, não é a constatação da interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, mas o ódio que vomitou contra o povo brasileiro, contra os povos indígenas. Afinal, ficou claro que o Ministro Sérgio Moro, que ali representou o Ministério da ‘Justiça’ deste governo do ódio, mentiu descaradamente quando, poucos dias antes (12/04/20), disse ao Fantástico: “o Governo está fazendo tudo o que pode para impedir a ação de invasores das terras indígenas do país”.

Esta reunião do Governo com seus ministros, evidenciou com clareza meridiana, o ódio cruel que acompanha a boca e a garganta do Bolsonaro, durante toda a sua carreira pública. Veja nota do CIMI de 17/06/99:

“As articulações contra as demarcações das terras indígenas no Brasil tomam força a cada dia que passa no governo de Fernando Henrique Cardoso. (…) O mais recente escândalo deste governo foi a nomeação, para diretor da Polícia Federal, de um delegado acusado de ser torturador no regime militar. A escolha do nome do João Batista Campelo foi do próprio presidente Fernando Henrique Cardoso. Coincidentemente, Campelo era secretário de Segurança no Estado de Roraima e vem sendo ferozmente defendido pelos parlamentares que conformam o que há de pior no Congresso Nacional, no que diz respeito aos Direitos Humanos e aos Direitos Indígenas: Elton Rohnelt (PFL-RR), Antonio Feijão (PSDB-AP), Jair Bolsonaro (PPB-RJ) e Mozarildo Cavalcanti (PFL-RR). A Polícia Federal é o órgão responsável por questões de segurança envolvendo conflitos em terras indígenas”.

É objetivo deste governo do ódio, dar sequência à marca principal da Ditadura Militar, o ódio contra o povo brasileiro mais vulnerável e contra quem o tenta proteger. Recordo-me de uma conversa entre funcionários da FUNAI, ocorrida no ano de 1986 na aldeia Yawará, dos Waimiri-Atroari, sul de Roraima. Um antigo funcionário da FUNAI que ajudara a construir o posto da FUNAI ali, recordava entre risos e gargalhadas dos seus companheiros:

“Um dia o Gal. Demócrito veio entregar um fuzil, para cada um de nós e falou: ‘Se agora ainda aparecer alguém ferido por flecha, eu vou acabar de matá-lo!” E o funcionário continuou o seu relato: “Gente, naquele tempo, (referia-se ao período de 1975-76, quando os militares estavam construindo a BR-174 naquele trecho), aqui tinha sempre uns 45 funcionários da FUNAI, fora os 15 que estavam de férias. Um caminhão cheio nos abastecia todos os meses. O rancho enchia aquele depósito ali (apontando para o depósito de madeira à frente). De manhã todo mundo levantava na mesma hora. E todos

armados de fuzil, hasteávamos a bandeira. Este posto Terraplenagem era considerado muito perigoso. Área do tuxaua Comprido. Quando os índios apareciam, isto aqui virava uma praça de guerra. Por toda a parte havia gente acantonada com seu fuzil. E duas viaturas do Exército em cada lado da estrada, prontas para entrar em ação. Os índios nada faziam porque não lhes dávamos chance nenhuma. Tinha dia em que vermelhava de índio. Apareciam de uma só vez mais de 300”.

Durante a construção da BR-174, os índios Waimiri-Atroari foram reduzidos de 3.000 para 332 pessoas. A propalada “Terra das Cachoeiras”, onde moramos, pertencia entao aos “privilegiados” Waimiri-Atroari. Cadê alguma indenização por este patrimônio?

Este ódio da Ditadura Militar contra os povos indígenas foi-se derramando Brasil afora. Lembro dos Tuxá de Rodelas na Bahia. Restava-lhes apenas a Ilha da Viúva, no meio do Rio São Francisco. Um oásis, onde ainda se praticava a economia da reciprocidade no Nordeste. De uma importância histórica especial. Foi o berço de uma das experiências mais marcantes da história pátria. Foi com este povo que Antônio Conselheiro conviveu e se inspirou para criar Canudos. A Ilha da Viúva merecia ser tombada como patrimônio nacional. Quando visitei este povo em 1978, estava sob a ameaça da construção da barragem de Itaparica pela Ditadura Militar. E a preocupação pelo seu futuro estava na flor da pele. Da. Gordolina, uma velhinha de 100 anos, guardava na memória a última visita que seus pais fizeram a Canudos, quando o Conselheiro com olhar carinhoso lhes recomendava: “Não voltem mais para Canudos, aqui vai ter uma grande guerra!”

A Ilha da Viúva foi a “única ovelhinha” que ainda restava ao povo Tuxá. Mas foi coberta pelas águas de Itaparica. Sem destino, os “privilegiados” Tuxá peregrinam pela região e sobrevivem de esmolas. Não me consta que já tenham sido indenizados, como manda a lei.

É esta Ditadura Militar necrófila que agredia os povos indígenas por todas as regiões do país que o dep. federal Jair Bolsonaro não se cansou de incensar. E lamenta que a Ditadura Militar não tenha matado pelo menos 30.000 brasileiros. E não encontrando uma motivação para o impeachment da Dilma, aproveitou a oportunidade para exaltar um dos maiores torturadores do Regime Militar. Em sua campanha presidencial ameaçou “fuzilar” os seus adversários políticos do PT.

Eleito, por astutos e por ingênuos, escolheu a dedo quem apoiasse a sua necrofilia, contra as populações mais vulneráveis: O Weintraub, por exemplo, para orientar a educação do ódio nas escolas, expressa bem o que representa a “liberdade” para quem tem o ‘dever’ de odiar. Para ele estão na mesma linha “acabar com privilégios” e acabar com a ideia de que existem povos indígenas no Brasil. Objetivo claro das políticas e declarações do Governo Bolsonaro é acirrar as disputas por terras que todo ano levam à morte lideranças indígenas e corroboram suas medidas contra a demarcação de terras em nome do agronegócio. Acabar com os “privilegiados” é tocar o agronegócio da Tereza Cristina, por cima dos últimos nichos de terra dos índios Kaiowá Guarani do Mato Grosso do Sul, matando ou acuando-os, sem cessar, por jagunços. É proteger os madeireiros que invadem a Reserva Araribóia no Maranhão e odeiam e matam seus donos, os Guajajara. É “unir esforços pra dar de baciada” as terras dos Oiampi aos grileiros. Só admira que este governo do ódio ainda não tenha convocado para seu ministério, o ex-presidente da FUNAI, Romero Jucá, cuja família é dona da Empresa de mineração mais representativa na invasão e exploração mineral do Parque Yanomami, “com o Supremo e tudo”.

Nenhuma autoridade do IBAMA, da FUNAI e do Judiciário pode lavar as mãos e dizer que não sabe dos prejuízos e crimes que agronegociantes, madeireiros e empresas de mineração estão cometendo e afirmar com a “cara de pau” do ex-Ministro Sérgio Moro: “o Governo está fazendo tudo para impedir a invasão das áreas indígenas”.

Por tudo isto, fora governo do ódio, fora gabinete do ódio, fora Bolsonaro! Fora milícia privada do ódio, fora ministérios do ódio que estão “passando a boiada” sobre as terras indígenas…

E vivam os povos quilombolas!, viva o povo cigano! vivam os povos indígenas! e viva a economia da reciprocidade e da solidariedade dos povos indígenas, ciganos e quilombolas!

(*) Egydio Schwade é filósofo, teólogo, indigenista e ativista social brasileiro. 

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