Um joelho, um pescoço e um selo

Por  Gilson de Góz (*)

Nos últimos dias o Brasil e o mundo têm assistido fatos e imagens estarrecedoras. Não bastassem as covas, as filas e as dores provocadas e estampadas no universo midiático em razão da crise sanitária, outras imagens viralizadas demonstrando as posturas violentas e transgressoras praticadas pelos agentes da lei em ações policiais, somam-se numa explosão vulcânica cujo alvo na maioria absoluta dos casos têm endereço e nome.

Na semana comprimida entre os dias 20 e 28 de maio, fatos e fotos adentraram nossos lares provocando dores e revoltas. Não as mesmas provocadas pelas perdas diretamente relacionadas com a  covid 19, que aliás encontra no nosso caso e mais ao norte do nosso continente,  governos centrais aliados e submissos ao capital financeiro que enxergam na grande maioria da população um amontoado de descartáveis  que em caso mortis, facilmente serão substituídos e que portanto as diretrizes e orientações cientificas precisam ser rejeitadas.

Não. Falo de gente cuja cor à luz revela-se negra. Homens, mulheres e crianças alvos de balas de fuzis, falas e escritas encorpadas de vômito a se espalharem e se reproduzirem como vírus a dizimar uma população que escravizada em tempos idos, dia a dia mantem-se sobrevivendo como que ajudada, auxiliada por respiradores mecânicos virtuais procurando romper a infernal condição escrava que tentam de forma sufocante eternizar a sua condição de negros e negras.

João Pedro, 15 anos, negro, jaz em seu lar fuzilado durante operação policial. Ndeye Fatou Ndiaye, 15 anos, negra, fuzilada por postagens racistas de colegas da escola. George Floyd, 46 anos, negro, depois de imobilizado, colapsado por um joelho extremista branco. Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, anuncia, na noite de segunda-feira (25), a decisão de lançar o selo “não-racista” onde reluz a cor dourada, sendo ele mesmo vítima dos vitimistas e, portanto, com direito a sua própria criação, o selo.

Pasmem, na versão do idealizador deste maldito selo, os premiados seriam ou será aqueles que cometeram os crimes, não os que foram as vítimas, pois “esse pessoal sofre de  vitimismo ” na fala dele. E é nessa condição entre um joelho, um pescoço e um selo, que caminha a humanidade de volta ao túnel obscuro da História.

Felizmente, nós que condenamos de forma veemente esse rastro putrificado, ainda somos maioria e precisamos agir de forma enérgica e consciente. Precisamos nos organizar a partir das mais diversas instituições sociais e políticas que estejam conectadas com a causa para elaborarmos ações conjuntas cujo objetivo estratégico seja provocar o cessamento imediato desses atos e assassinatos a partir não só mais de letras repulsivas, mas de atitudes que levem esses elementos neofascistas a pagarem na forma da lei por seus crimes e arbítrios.

No caso brasileiro o combate ao racismo e ao neofascismo cujos atos e atitudes dialogam entre si, só teremos algum êxito inicial a partir de um novo governo que seja eleito democraticamente pela população brasileira, cujas farsas que em 2016 culminaram no golpe contra a presidente eleita Dilma Roussef e consequente prisão do ex-presidente Lula sejam desmascaradas e desmontadas e que garantam o reestabelecimento dos direitos políticos deste. Para isso, não só o Bolsonaro, mas todo seu governo, que tem representado a morte e o genocídio da nossa população, precisam sair, responderem e pagarem pelos crimes e delitos que têm praticado.

Todavia, não podemos ter ilusão de que os processos eleitorais são suficientes para o reestabelecimento da democracia e instituições do estado que as garantam. Tampouco podemos nos iludir quanto a pauta anti-racial estar automaticamente inserida nesse processo. Ela precisa ser elaborada e incorporada a partir da organização dos diversos mecanismos sociais já existentes e outros a serem definidos pelos seus próprios protagonistas. Os retrocessos políticos, trabalhistas, culturais, ecológicos, científicos, sociais, etc. causaram e continuam causando danos profundos à maioria da população e ao país, os quais precisam ser reestabelecidos, ampliados, reformados e reestruturados para que não sucumbam e retornem às estruturas dos anos trinta do século passado.

A retomada do crescimento econômico, a reestruturação, fortalecimento e ampliação da indústria nacional e dos mais diversos setores da economia, em especial do petróleo, permitirá ao país o retorno do protagonismo político, econômico e social do início deste século, com uma vantagem: a identificação e correção de erros praticados. Para tanto uma agenda política que aponte uma saída socialista, que unifique as esquerdas partidárias e sociais, com pautas definidas para o enfrentamento, urge e o tempo demonstra não haver espaço pra vacilação.

(*) Gilson de Góz é integrante Coordenação Nacional Sindical da AE- PT e Secretário de Combate ao Racismo da CUT-PE

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