Um mandato gaúcho com jeito e cara de mulher preta

Por Reginete Bispo (*)

Com meu black power crespo e meu corpo preto andando pelos corredores até o meu direcionamento para a fila de visitantes, quando a equipe de segurança da Casa “não percebe” o meu bóton parlamentar, elemento de identificação exclusivo dos deputados e deputadas no exercício do mandato, meu caminhar aqui na Câmara dos Deputados tem sido uma quebra de paradigmas. O bóton, de fato, é pequeno, assim como a participação de mulheres negras no poder. Como socióloga, encaro a convivência social como uma ferramenta de mudança de comportamento. Mesmo com todas as barreiras impostas por mais de 300 anos de escravatura no Brasil, acredito no poder de incidência da presença negra nos espaços de poder, como uma peça chave para reconstrução do imaginário coletivo acerca das hierarquias sociais mantidas à gosto da classe dominante e à contragosto da população mais pobre e em maior parte negra do nosso país.

Sabemos de todos os entraves envolvidos no acesso de mulheres ao poder, sobretudo de mulheres negras. Me enquadro nesses dois lugares não prestigiados em nossa sociedade racista, patriarcal e capitalista. Logo, minha trajetória até chegar a esta cadeira que ocupo hoje na Câmara dos Deputados foi enfrentando muitas batalhas e construindo projetos e políticas longe dos holofotes. Sou filha de Petronilio Bispo dos Santos e Idalina Souza dos Santos, nasci em Marau-RS e iniciei minha militância na Pastoral da Juventude. Antes do ativismo político, ainda na infância, trabalhei com minha família no campo e sei do valor do alimento e de todo o trabalho árduo na terra para fazer chegar a comida no prato. Faço parte do Movimento Negro desde 1990 e pauto minha atuação política no combate à fome, ao racismo e ao machismo. Sem esses três pilares é impossível alcançar uma sociedade equânime.

Junto desses pilares norteadores da minha atuação política e parlamentar, tenho usado meu tempo na tribuna para pautar o combate ao feminicídio, com números alarmantes em nosso estado e reivindicar do governo estadual um verdadeiro comprometimento com o povo. Nosso mandato pleiteia a participação e titularidade em comissões com espaço para discutir a paridade de gênero e raça e ações afirmativas no ensino superior e no serviço público para atender demandas urgentes para transformação da nossa conjuntura social em prol de mais equidade.

Assim como o chimarrão, bebida tradicional do meu estado, degustada coletivamente, tenho feito do mandato uma construção coletiva capaz de fazer alcançar a cada vez mais pessoas os benefícios concedidos a um mandato de deputada federal como o de ampliar a voz na tribuna para reivindicar e propor medidas para melhorar a vida de nossa população, que por tantos anos, principalmente desde o golpe contra a presidenta Dilma, clama por uma vida digna com acesso ao trabalho, à educação e à saúde.

Trago da vivência política no meu estado muita resiliência e combatividade. Foi no Rio Grande do Sul onde disputei eleições em 1988, 1994, 2014, 2018, 2020 e 2022, e fui eleita 1ª suplente do senador Paulo Paim, vereadora numa chapa coletiva, em 2020 e, agora, eleita 1ª suplente para a Câmara pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual sou filiada desde 1986, quando iniciei minha militância partidária. Vejo a minha posse como uma conquista coletiva de mulheres negras de todo o país, por entender a importância do protagonismo negro na disputa política, na proposição de legislações e na defesa daqueles que nos confiaram seus votos.

No estado dedico meu trabalho na luta antirracista e pelo direito à terra e pude contribuir na defesa e garantia de acesso de direitos de imigrantes e refugiados e na luta pela regularização dos territórios tradicionais quilombolas da Região Sul. Permaneço comprometida com os territórios tradicionais especialmente os quilombolas, indígenas e povos de matriz africana com acesso mais dificultado aos seus direitos.

Como representante do povo, tenho como atribuições principais, instituídas na Constituição Federal: legislar e fiscalizar. Já tenho exercido essas funções trazendo para centralidade a questão racial. Como mulher preta, entendo que o combate ao racismo deve atravessar todas as instâncias da nossa sociedade. Na definição do orçamento, nas proposições legislativas no âmbito da segurança pública e nas políticas públicas de saúde. Esses campos carecem de um olhar especial voltado para a população negra brasileira, maior grupo populacional deste país. Também estou comprometida com a justiça fiscal e tributação das grandes fortunas.

Tenho me apropriado das possibilidades e do maior espaço de debate, propiciado nesse ciclo histórico do nosso país, com a eleição do nosso presidente Lula, onde começamos a ver o resultado das lutas de décadas e décadas do Movimento Social Negro, para pautar a atuação no Congresso Nacional sob a ótica da mulher preta. As últimas eleições, onde elegemos bancadas negras, no âmbito, municipal, estadual e federal acendem esperança para quem, assim como eu, sabe da importância da ocupação de pessoas negras nos espaços de poder defendendo os temas com propriedade de quem sente na pele a falta de cuidado do estado baseado na quantidade de melanina que carregamos. Estando em um desses espaços me comprometo a seguir sendo voz ativa no combate às desigualdades e pelo bem-viver do nosso coletivo.

Com essa pequena, porém simbólica, mudança do retrato do parlamento brasileiro trabalharei pela transformação dos discursos e projetos em tramitação nas Comissões da Câmara. De minha parte, tenho usado o poder da caneta para me colocar do lado daqueles que mais precisam. A Frente Parlamentar Mista Antirracismo foi a primeira que aderi. Ela tem como principal função o acompanhamento de políticas públicas bem como a promoção de debates e iniciativas para efetivar a igualdade racial prevista na Constituição da República. Também já sou co-autora de requerimentos com pedidos de sessões solenes em homenagem ao Dia da Consciência Negra, ao Dia Internacional da Mulher e ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.

Todas essas propostas estão alinhadas com a minha plataforma política e com meu slogan durante a minha campanha na disputa ao cargo de deputada federal: “Por um Brasil e um Rio Grande sem fome, sem racismo e sem machismo”. Sigo nesta luta.

(*) Reginete Bispo é Deputada Federal, sócia fundadora do Instituto Akanni, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e integra a Coalizão Negra Por Direitos.

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