Wladimir Pomar: aos 85 anos, três “inéditos”

Por Valter Pomar (*)

Apresentação

Há alguns meses, um companheiro informou ter localizado em um arquivo público um texto que, verificou-se, havia sido escrito por Wladimir Pomar. Depois que este confirmou a autoria, o texto foi digitado por Adriano Bueno e revisado por Patrick Araújo. O próprio Wladimir escreveu uma introdução, explicando tratar-se na verdade de dois textos, escritos em datas diferentes. Nosso plano era e continua sendo produzir um opúsculo digital, mas como sói ocorrer, as urgências atropelaram a proridade. Seja como for, já que neste 14 de julho de 2021 o companheiro Wladimir Pomar comemora seus 85 anos de vida**, achamos adequado divulgar o que segue: o texto de 1972, o texto de 1975 e a introdução de março de 2021.

Introdução do autor

Os documentos abaixo, o primeiro escrito há quase 50 anos, e o segundo três anos depois, têm algumas características interessantes. Em primeiro lugar, embora seja lógico deduzir que a região pesquisada se situava no nordeste brasileiro, o texto não possibilitava localizar onde exatamente tal experiência de trabalho político, em plena ditadura militar, estava sendo efetivada. Poderia estar sendo realizada tanto nos sertões da Paraíba, quanto de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Piauí ou Ceará. Assim, caso o texto caísse em mãos da polícia política ditatorial, esta teria um trabalho extra para localizar a região descrita, permitindo certo espaço temporal para a adoção de medidas de proteção e de retirada estratégica, vitais naquele período.

Hoje não é mais necessária tal preocupação. Na época, ela apenas fez parte da história de uma parcela das forças políticas que se opunham praticamente à ditadura militar, tendo sido efetivada na região dos Inhamuns, no sudoeste do Ceará, tendo Crateús como centro principal. Ela também incluía Independência, Ipueiras, Mombaça, Monsenhor Tabosa, Nova Russas, Parambu, Poranga, Tamboril e Tauá, parte desses municípios fazendo divisa com áreas piauienses. E foi uma experiência efetivada tanto por militantes do PCdoB, ao qual eu então pertencia, quanto por uma série considerável de elementos e grupos políticos também em oposição ao regime ditatorial.

Foi também acionado por atuais membros do PCdoB do Ceará, desejosos de recuperar a história daquela experiência, que acabei novamente tendo acesso ao documento que havíamos elaborado para, pelo menos teoricamente, nos opormos à ordem de iniciar ações guerrilheiras na região, embora não houvesse condições para tanto. Tal ordem nos foi transmitida justamente em 1972 e a maioria dos membros da direção do Partido na zona considerou que ela não tinha sentido. No entanto, não bastava dizer “não”. Era preciso demonstrar isso através de uma pesquisa, em profundidade, das condições sociais, políticas e militares existentes na zona. O texto foi justamente resultado de tal esforço.

Mas, ao invés de ser apreciado como uma tentativa séria de demonstrar o caminho necessário de trabalho político revolucionário de longo prazo, resultou, de imediato, na minha destituição como membro do comitê do Partido em Crateús, e minha transferência para outra região. E somente no final de 1974 tive a informação de que a tentativa guerrilheira do Araguaia fora esmagada, recebendo a incumbência de reorganizar o trabalho partidário no Maranhão e no Pará, inclusive na perspectiva de salvar algum remanescente daquela tentativa. É isso que explica o texto de 1975.

Vale a pena ressaltar, também, o cuidado de Washington e Alzira, que participaram ativamente de todo aquele trabalho político, contribuíram na elaboração do relatório e, mais do que isso, guardaram uma cópia dele por quase 50 anos. Sem isso teria sido impossível revê-lo, revisá-lo, e concordar com a proposta de publicá-lo como documento histórico. E lembrar que um outro exemplo do trabalho político realizado naquela região já foi publicado com o título de São Loganso. É lógico que a modernização do latifúndio, efetivada justamente durante os anos 1970 e 1980, praticamente liquidou a realidade camponesa então descrita. Porém, muitas das observações sobre o trabalho político entre as camadas trabalhadoras da população brasileira talvez continuem válidas ainda hoje.

Wladimir Pomar, março de 2021

 

UMA EXPERIÊNCIA DE TRABALHO DO PARTIDO NO CAMPO

Esta é uma tentativa de sintetizar uma experiência de trabalho do P numa zona rural. Como toda experiência, ela está impregnada pelas condições peculiares locais. Por isso, ao procurar examiná-la criticamente, sistematizá-la e generalizá-la, é necessário ter bem em conta essas condições objetivas particulares de modo a não sobrestimá-la.

  1. DADOS GERAIS
  2. 1. Características gerais da zona

A zona se estende por mais de 20 mil km², abrangendo mais de 12 municípios, com uma população aproximada de 400 mil habitantes. Compreende uma parte de serras e uma parte de sertão (planície). A maior parte da população se encontra concentrada na zona intermediária entre o sertão e a serra – no chamado pé-de-serra. Há uma cidade com população superior a 20 mil habitantes. Todas as demais aglomerações urbanas que se encontram na zona têm menos de 10 mil moradores. Calcula-se que mais de 80% da população da zona vive nas zonas rurais: nos chamados lugarejos ou dispersa pelas propriedades agropecuárias.

Nas cidades vivem os latifundiários (grandes proprietários), os grandes comerciantes, uma certa parcela de camponeses ricos (abastados), uma expressiva camada de funcionários públicos, empregados no comércio e em bancos, pequenos e médios comerciantes, professores, estudantes, uma certa parcela de operários (pedreiros, mecânicos, carapinas, etc.) e uma grande massa marginalizada – em geral mais da metade da população desses aglomerados urbanos – constituída de lavadeiras, carreteiros, aguadeiros, camponeses pobres, mendigos, prostitutas, vagabundos, ladrões, etc. Toda essa população marginalizada é proveniente do campesinato arruinado ou em processo de arruinamento.

A economia da região baseia-se fundamentalmente na produção agrícola (milho, algodão, feijão, mamona e mandioca), na pecuária extensiva e na coleta de algumas plantas oleaginosas. Há uma divisão do trabalho mais ou menos definida: os latifundiários têm o predomínio exclusivo da criação de gado e dos grandes campos de algodão. Os camponeses abastados conseguem manter uma certa quantidade de cabeças de gado – principalmente para a produção leiteira -, plantam campos de algodão, pequenos ou médios, e cedem, em parceria, pequenos pedaços de terra de sua propriedade aos camponeses pobres e médios.

Numa ou noutra cidade encontra-se alguma usina de beneficiamento de algodão pertencente a grandes empresas estrangeiras ou a capitalistas nacionais. O setor industrial da economia da região termina aí. Os bancos, via-de-regra, são estatais ou pertencentes a grupos financeiros regionais. Estes últimos começam a ser encampados por grandes bancos sulistas.

Os fatores climáticos desempenham grande papel na economia da zona, condicionando em larga escala a produção, o comércio e a vida da população. Apesar de não constituírem a causa principal das correntes migratórias bastante intensas na zona, nem por isso deixam de influenciar poderosamente sobre elas.

  1. Características principais das forças sociais

Os camponeses, em especial os camponeses pobres, constituem a principal força econômica e social da zona. Existe uma certa parcela de camponeses médios ou remediados e uma porcentagem muito pequena de camponeses ricos ou abastados.

Os camponeses pobres vivem numa situação de miséria intensa, brutalmente explorados pelos latifundiários. O quadro de sua vida é um quadro de fome, doenças, ignorância, ausência quase completa de direitos, superstições e morte. Nesse sentido, sua vida pouco ou nada se diferencia da dos camponeses pobres do resto do país. Porém, tal situação é ainda mais agravada, de tempos em tempos, pelas calamidades naturais. Apesar de constituírem mais de 65% da população da zona, os camponeses pobres não possuem terra e têm mesmo dificuldades para adquirir seus instrumentos de trabalho. Veem-se obrigados a trabalhar na terra cedida em parceria pelos camponeses ricos e pelos latifundiários, e a pagar rendas que variam de 8:1 (a menor e mais rara) até 2:1 (a maior). Muitos latifundiários obrigam os moradores (camponeses pobres, que moram na terra do proprietário) a trabalhar nos chamados “dias-cativos”. Isto é, há certo número de dias da semana em que o camponês deve trabalhar na plantação do proprietário. O pagamento por esses dias-cativos, até alguns anos atrás, simplesmente não existia. Na atualidade varia de 2 a 3 cruzeiros em alguns lugares, até 50 centavos naquelas áreas onde a força dos latifundiários é maior. Nestas áreas, os latifundiários costumam cobrar a renda na base da produção estimada pela área plantada e não na base da produção real. Esta é uma das formas mais brutais de exploração dos camponeses.

Os camponeses médios se diferenciam dos camponeses pobres pelo fato de que, via de regra, possuem uma pequena propriedade e alguma reserva para se manter durante o ciclo de produção. Mesmo assim, sua situação de vida é muito difícil e, comumente, suas condições são idênticas às dos camponeses pobres. A grande maioria se vê obrigada, também, a trabalhar em terras alheias e a vender sua força de trabalho para complementar sua manutenção.

Particularmente a partir de 1963, os camponeses pobres e médios procuraram se organizar para enfrentar e resolver os problemas que os afligem. Surgiram nessa época os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais na zona. Ao mesmo tempo, em diversos lugarejos foram organizadas comunidades e outras formas de associação dos camponeses, inclusive embriões de cooperativas.

Os camponeses ricos ou abastados são uma minoria entre os camponeses, aproximadamente 1%. Nos lugarejos, exercem simultaneamente a função de comerciantes do lugar. Seu papel é importante tanto pela força econômica que possuem, quanto pela ligação com os latifundiários e com as forças políticas dominantes. Isto apesar de, em geral, se encontraram em contradição com os latifundiários, por quem estão constantemente ameaçados. Também exploram os camponeses pobres e médios, mas não na mesma escala ou intensidade que os latifundiários. Exercem considerável influência sobre os camponeses pobres e médios. Muitos participam de modo ativo em alguns movimentos de organização e esclarecimento dos camponeses, inclusive nos sindicatos.

Os camponeses da zona representam 75 a 80% da população total.

Os latifundiários (grandes proprietários) são a força dominante, econômica e política, da zona. Em geral são reacionários e, em algumas áreas, de grande ferocidade, não aceitando – ou aceitando com os dentes arreganhados – até mesmo organizações dtipo ACAR. Numericamente, são uma minoria insignificante, mas monopolizam a maior parte das terras e o grande comércio. Além disso, dominam o aparelho de poder local, colocando-o a seu serviço. Contam, para manter seus privilégios, com o aparelho burocrático-militar estadual e federal existente na própria zona e nas áreas próximas. Mesmo assim, há setores dentro da classe dos latifundiários locais que estão sendo prejudicados pela atual política da ditadura, do mesmo modo que a pequena parcela de burgueses nacionais existente na zona.

O aparelho burocrático-militar estadual e federal na zona, em virtude da pobreza desta, constitui ele próprio uma importante força econômica, social e política. Sua presença constitui fator de apoio aos latifundiários e demais forças reacionárias, assim como de repressão ao trabalho para despertar e mobilizar os camponeses e demais massas oprimidas do povo.

O proletariado e a pequena-burguesia das cidades representam certa expressão econômica e social local, mas seu peso é relativamente pequeno. A população marginalizada é bastante dispersa e heterogênea: constitui uma força econômica negativa e socialmente muito instável. Essas camadas representam 18% da população da zona e 90 a 95% da população das cidades. A situação do proletariado é semelhante à dos camponeses; a da população marginalizada (incluindo aí os camponeses que vivem nas cidades) é a pior que existe na zona. A pequena-burguesia, em sua maior parte, está em processo de proletarização devido a falta de oportunidades de trabalho e outros fatores.

O proletariado e a pequena-burguesia exercem certa influência sobre o campesinato. O proletariado, em particular, possui ligações muito estreitas com a população rural. Tanto o proletariado quanto a pequena-burguesia das cidades têm procurado se organizar em sindicatos ou associações profissionais e através das comunidades de bairro. Uma parte da população marginalizada tem sido despertada e organizada através das comunidades de bairro. Isso conduziu a que as classes dominantes passassem a se preocupar mais com as camadas periféricas da população, levando-as a intensificar o trabalho assistencialista através dos chamados “clubes de serviço”: Lions, Rotary, etc.

  1. Forças políticas

Os latifundiários sempre possuíram partidos atuando intensamente na zona, a fim de manter sua influência sobre os camponeses e demais camadas da população. As siglas partidárias e suas alas sempre constituíram um reflexo das divisões de interesses e das contradições entre os próprios latifundiários. Conservador e Liberal, Republicano e Democrático, UDN e PSD foram as organizações partidárias que através dos tempos expressaram as divisões entre os latifundiários locais. No período anterior ao golpe de 1964, uma ala do PSD apoiou o PTB – que não era organizado localmente – e a política reformista de Jango. A UDN também esteve quase sempre dividida em alas. Após o golpe de 1964, Arena e MDB passaram a constituir as organizações partidárias dos latifundiários. Algumas alas do PSD se juntaram sob o manto da ARENA. É interessante notar que em alguns municípios ou distritos da zona, os setores mais reacionários se reuniram no MDB, enquanto os menos reacionários, na ARENA.

Além dos partidos, com objetivos políticos claramente definidos em função da tomada e manutenção do poder político local e estadual, as classes dominantes possuem outras organizações de classe, tais como o Lions, Rotary, Associações Comerciais e Lojas Maçons que, através de atividades assistenciais, culturais, jurídicas e outras, perseguem os mesmos objetivos. Alguns setores pequeno-burgueses tentaram manter as Lojas Maçons como organizações neutras e defensoras do livre-pensamento, mas foram alijadas.

A classe operária, desde há muito, apesar de seu pequeno peso local, possui seu partido político na zona. É principalmente através do P que a classe operária faz sentir sua presença na vida social e política da região. No passado o P participou e chegou a dirigir lutas de massas de certa envergadura e sua presença política era evidente, mesmo tendo permanecido a maior parte do tempo na ilegalidade. Após 1956, o surto revisionista afetou as organizações locais do P, fazendo-as degenerar. Com o golpe reacionário de 1964 e a repressão que se seguiu, as organizações do antigo P acabaram de se esfacelar, restando um pequeno agrupamento revisionista. Deste agrupamento desligou-se um pequeno núcleo fiel ao marxismo-leninismo, ao qual se uniram alguns jovens estudantes. Foi com base nesse núcleo, que se ligou ao P no período de 1967-68, que se deu o atual desenvolvimento do P.

Na zona atuaram e atuam alguns grupos revolucionários pequeno-burgueses, assim como forças independentes. Algumas dessas forças chegaram a possuir a direção política do movimento de massas e, apesar do caráter reformista de uns e ultrarrevolucionário de outros, todas deram certa contribuição no desenvolvimento da consciência política das massas. E ainda dão.

O centro da luta política na zona gira em torno de ganhar e manter os camponeses sob influência com o fim de garantir a estabilidade do poder político (as forças reacionárias) ou para realizar a revolução (as forças revolucionárias). Nessa luta, os latifundiários não titubeiam em utilizar o engodo, o suborno, a corrupção, em fazer ou retirar concessões, realizar a repressão extrapolicial (jagunços, pistoleiros, etc.) ou policial-militar, e o terrorismo psicológico. Mesmo assim, o clima ditatorial e terrorista não conseguiu eliminar um certo clima de democracia imposto pelas massas em suas vidas nos lugarejos e, em menor escala, nos bairros da cidade. Isto possibilitou o desenvolvimento do movimento de massas legal, assim como o debate relativamente amplo dos problemas sociais e políticos que o país atravessa. Tal aspecto da situação da zona – uma particularidade e uma anormalidade nas condições reinantes no país como um todo – constituiu e constitui uma base bastante positiva para o desenvolvimento do movimento revolucionário da zona. Representa uma das principais características locais e que é preciso ter em conta para compreender o crescimento relativamente rápido do P e da consciência revolucionária entre setores das massas do povo da região.

  1. ORIENTAÇÃO DO TRABALHO DO P

Até fins do primeiro trimestre de 1970, o P na zona consistia fundamentalmente daquele núcleo de alguns poucos antigos membros do P e jovens estudantes. Estavam, todavia, desorganizados. Não havia uma organização estruturada. Todos trocavam ideias com todos, inexistindo uma orientação específica sobre o trabalho a realizar. Apesar da maioria se encontrar integrada no trabalho de massas – trabalho esse cuja direção estava em mãos das forças independentes – os militantes careciam de clareza e a respeito dos objetivos desse trabalho. Isto conduzia, inevitavelmente, ora a erros de direita, ora a erros de “esquerda”. Naquele momento mesmo, estavam envolvidos numa luta sem princípios contra setores das forças independentes e a tendência era romper com tais setores, o que sem dúvida acarretaria prejuízos ao trabalho do P. As coisas tinham chegado a tal ponto que o elemento mais categorizado das forças independentes era considerado um m… e um f… da p…

Por outro lado, os militantes do P careciam de base política mais sólida: não haviam estudado em profundidade a linha do P e possuíam pouca experiência política e de organização. Os mais antigos estavam descrentes e sem confiança no futuro. As novas condições criadas pelas calamidades naturais, paradoxalmente, deixaram a todos ainda mais desorientados.

  1. Novas condições criadas pela seca

A situação de grandes contingentes das massas camponesas era e é de tal ordem que, ao chegar na época de plantio, guardam somente uma pequena parte do feijão que possuem e “enterram” (plantam) o resto na conta certa para aguardar a safra do feijão ligeiro (O feijão puro ou com farinha é seu alimento básico). Desse modo, qualquer estiagem que prejudique a safra do feijão ligeiro (40 dias) deixa um grande número de camponeses sem reservas para passar o resto do ano. Se a estiagem é passageira ou parcial, e não atinge em profundidade a agricultura de toda a região, ainda é possível remediar em parte a situação. Apesar das dificuldades e da fome, os camponeses, além de continuarem trabalhando em suas roças e roçados, empregam-se como diaristas nas plantações dos latifundiários e camponeses ricos, tanto na área da seca como nas áreas onde a calamidade não se faz sentir. Há os que emigram para o sul ou para as capitais, esperando que a notícia da chuva chegue e possam retornar, levando algum dinheiro para aplicar na lavoura.

Entretanto, se a seca é total, atingindo indistintamente todas as terras e propriedades, as massas só têm como recurso emigrar ou apelar para medidas governamentais. As reivindicações de trabalho e comida passam a primeiro plano e, se aquelas medidas tardam, para sobreviver as massas são obrigadas a obter sua alimentação por meio de expropriações. No primeiro estágio, as invasões das cidades pelos flagelados, concentrando-se em frente das prefeituras e outros órgãos governamentais, visam exigir o atendimento daquelas reivindicações de trabalho e comida pelas autoridades e têm caráter pacífico. Na falta de providências, recorrem então ao saque do comércio, de viaturas e trens de carga. Na seca de 1970, as ações das massas camponesas, em geral espontâneas, apresentam-se em algumas áreas com um nível de organização bastante elevado.

O início da Seca de 1970 apresentou como característica interessante o fato de que houve invasões na maioria das cidades do interior e, em grande número delas, saque ao comércio. A luta por comida e trabalho mobilizou dezenas de milhares de camponeses e suas famílias. A maior parte da população do interior foi direta ou indiretamente atingida pela seca e se solidarizou com a luta dos camponeses. Isto, aliado ao rápido deterioramento da economia da região, conduziu a um agravamento na divisão das classes dominantes. Os latifundiários e a burguesia comercial passaram a lançar ataques violentos à Sudene, procurando desviar a atenção das massas do alvo real que deviam visar. Os setores da Sudene e da área militar – que haviam acreditado em sua própria mentira de “Novo Nordeste” – procuraram jogar sobre os governos estaduais e locais a responsabilidade sobre a situação.

Estes setores, enquistados no aparelho burocrático-militar, chegaram ao absurdo de tentar fazer crer que a seca era criação da subversão. Acreditaram que bastava fazer ouvidos moucos para que a situação se resolvesse por si própria. Todavia, os setores mais representativos do latifúndio e da burguesia comercial, temerosas com a radicalização da luta dos camponeses e com o êxodo rural para o sul e para as capitais – onde poderiam ocorrer também comoções sociais – começaram a exigir a abertura de frentes de serviço. Com isto pretendiam:

1º – Evitar a radicalização das lutas dos camponeses e demais massas pobres, confundindo a palavra de ordem de trabalho e comida dessas massas com sua palavra de ordem de frente de serviço;

2º – Evitar o êxodo rural para o Sul e para as capitais, mantendo de graça, à custa dos dinheiros públicos, o grande contingente de mão-de-obra barata formado pelos camponeses e pobres das cidades do interior, durante todo o período da seca;

3º – Obter grandes lucros com as negociatas dos fornecimentos às frentes, a exemplo do que ocorrera nas secas anteriores. As secas sempre foram um grande negócio para os latifundiários e setores da burguesia comercial.

Os setores militares e burocráticos se opuseram o quanto puderam à abertura das frentes, porque isso representava reconhecer a falência da política da ditadura para o Nordeste. No entanto, foram obrigados a admiti-la quando sentiram que a situação começava a fugir de seu controle. Os latifundiários e a burguesia haviam conseguido, pela influência que exercem sobre as massas camponesas, fazer com que as palavras de ordem de TRABALHO E COMIDA e da FRENTE DE SERVIÇO fossem entendidas pelas massas como uma mesma reivindicação. Isto avolumou a pressão pela abertura das emergências (nome pelo qual foram também chamadas as frentes) e colocou aqueles setores da ditadura numa posição insustentável. Tiveram que ceder. Porém, ao ceder, impuseram por sua vez a condição de que as frentes fossem controladas diretamente pela casta militar e burocrática, a fim de que ela própria se apropriasse da maior parte das negociatas e colocasse em prática suas doutrinas sobre controle de massas, aldeias estratégicas, etc. Expressão dessas divergências e acordo entre os diversos grupos que compõem a ditadura foi a viagem que o ditador Médici foi obrigado a fazer ao Nordeste.

Esta situação colocava o P e as demais forças antiditatoriais da zona diante de novas e complexas tarefas. O fato de que as massas se movimentavam com destemor, realizando ações que romperam o anel repressivo da ditadura, demonstravam sua grande vitalidade revolucionária. Por outro lado, a divisão e a luta existentes entre os diversos grupos da ditadura criava uma situação em que se poderia avançar com certa audácia. Em outras palavras, tratava-se de tentar aplicar com audácia e flexibilidade as diretivas políticas do CC, e procurar manobrar com elasticidade as pequenas forças em nosso poder, a fim de concentrar no ponto mais importante em cada momento e procurar conseguir um rápido avanço na organização das massas camponesas e na construção do P. Isto exigia:

1º – Traçar uma orientação específica para o trabalho do P durante a seca, isto é, uma tática adequada para as novas condições;

2º – Concentrar no trabalho entre os flagelados todas as forças possíveis.

  1. Tática do P durante a seca

Nossa tática tinha que partir da orientação política geral do P e ter como base problemas de princípio. Elevar o nível de organização e de luta dos camponeses, conduzir o gume de sua luta contra a ditadura, acelerar a preparação da guerra popular, fazer sua propaganda entre as massas, e construir organizações do P entre os camponeses, eram tarefas decorrentes da política geral do P. Impedir que as massas fossem enganadas pelas manobras da ditadura e das classes dominantes era uma questão de princípio.

Portanto, nossa tática teria que partir do princípio de que não poderíamos ser a favor das frentes, mas sim contra. As frentes de serviço constituíram sempre um dos instrumentos das classes dominantes para manter subjugados os camponeses durante as épocas de seca. Considerar a abertura das frentes como uma reivindicação de camponeses, ou mesmo como sua aspiração máxima naquela conjuntura, significaria fazer o jogo da ditadura, condenar as massas à estagnação política e satisfazer, assim, o desejo dos latifundiários e reacionários em geral.

Porém, como nossa força era pequena e não poderíamos influir decisivamente, além do fato de os camponeses terem sido ganhos pelos latifundiários para colocar num mesmo nível as palavras de ordem de “trabalho e comida” e “frentes de serviço”, nossa atitude tática deveria ser bastante flexível. As massas não nos compreenderiam e ficaríamos isolados se nos colocássemos abertamente contra as frentes. Para alcançar o objetivo de nos ligarmos aos camponeses e elevarmos seu nível e luta e organização, precisaríamos entrar no processo real de luta pela abertura das frentes a fim de desmascarar a ditadura por dentro, desnudando o verdadeiro caráter daquele instrumento.

Durante a seca de 1970, as emergências se transformaram em monstrengos de exploração e opressão dos camponeses pela casta burocrático-militar e pelos latifundiários. Com base naquelas questões de princípios procuramos, logo após o início das frentes, descobrir e levantar as novas reivindicações dos flagelados e realizar um trabalho de desmascaramento da ditadura e dos militares. Com isso, era possível levar alguns setores das massas camponesas a compreender o verdadeiro caráter das frentes e vislumbrar a necessidade de transformações radicais para solucionar o problema das secas e das calamidades naturais.

O processo de elaboração dessa tática não foi simples nem fácil. Obrigou-nos a um estudo concentrado da linha do P e da situação concreta que enfrentávamos. Esclarecer as ideias sobre a política do P, sobre a ligação entre o trabalho de massas e a preparação para a guerra popular, sobre o aproveitamento das contradições no seio do inimigo, sobre o trabalho de frente única e sobre outras questões vindas à tona naquela conjuntura foi uma árdua atividade que nem sempre conseguimos enfrentar com êxito. Todavia, à medida que realizávamos tal esforço, foi ficando claro para a maioria dos militantes que a construção de um forte P na zona era a chave para o desenvolvimento de toda atividade futura. Tal trabalho não o poderíamos realizar sem aprofundar o trabalho de massas entre os camponeses e sem abrir, simultaneamente e de modo claro, para o P e para as massas, a perspectiva da guerra popular e a necessidade de sua preparação, essência da tática do P.

Tornou-se evidente, sobretudo, a necessidade de adotar medidas para intensificar os contatos com os flagelados e atuar conforme as normas organizativas do P, além de procurar planejar com vistas no futuro. Em virtude disso, tentamos dar ao P na zona uma estrutura orgânica compatível com as normas estatutárias e com as perspectivas de seu crescimento, em relação com as condições concretas da região (em que um município exerce o papel de polo de atração de mais de 10 outros municípios). Em função disso, estruturamos 2 bases e, constituído pelo núcleo mais capaz de membros locais e por 2 quadros enviados para lá, organizou-se um Comitê de Organização (CO) para toda a zona.

Durante o processo de estudo da política do P e elaboração da tática local, ficou claro também que eram muitos escassos os elementos que tínhamos à mão para definir se a zona preenchia os requisitos para construção de uma base de apoio revolucionária. Procuramos aproveitar tal fato para esclarecer, por outro lado, a necessidade de adotar o método de pesquisar os problemas como base para evitar a elaboração de planos ou medidas subjetivas. Como resultado, decidimos realizar, paralelamente à atividade entre os flagelados, uma pesquisa sobre as condições geográficas, sociais, econômicas e políticas da região.

  1. A atividade entre os flagelados

A questão política mais séria que enfrentávamos era nosso desligamento dos camponeses, entre os quais, mesmo no passado, o P não criara raízes. Para vencer este obstáculo fomos obrigados a estabelecer métodos corretos de trabalho com os ativistas das forças independentes, cujos laços com os camponeses eram bastante fortes. Para alguns camaradas do P, que possuíam ligações naturais com certas áreas rurais, demos tarefas específicas no sentido de que passassem a dedicar sua atenção principal ao trabalho nessas áreas e, através delas, estabelecer ligações com os flagelados.

Por esse meio conseguimos aos poucos ter um quadro mais preciso sobre a situação nas frentes e sobre as novas reivindicações dos camponeses flagelados. As principais, que afetavam todas as turmas, diziam respeito ao fornecimento de água limpa para beber, ao fornecimento de maior quantidade de mantimentos (esta, a mais sentida, ligando-se diretamente ao problema da diária), à condução, ao tratamento médico e fornecimento de remédios, e ao tratamento condigno dos flagelados por parte dos oficiais, sargentos e funcionários civis do governo. À medida que o tempo passava, tais reivindicações tomavam vulto: em diversas turmas e frentes travaram-se lutas limitadas em torno delas e o ódio dos camponeses ao exército e à ditadura aumentaram.

Ao mesmo tempo, conseguimos estabelecer alguns contatos com ativistas de massa, flagelados. Por meio deles, estendemos um pouco mais a ligação com os camponeses. Estes começaram a pressionar para que se fizesse alguma coisa contra a situação em que se encontravam nas emergências. As direções sindicais encontravam-se manietadas pela vigilância policial e alguns líderes independentes capitularam ante as ameaças de reação. As pequenas lutas localizadas não vinham surtindo efeito. A experiência das invasões e dos saques mostrara aos flagelados que suas reivindicações só eram atendidas quando realizavam algo mais sério. Nessas condições, mesmo sem ter clareza da ação a propor, é que a CO decidiu realizar ampla difusão do editorial de um jornal popular revolucionário em que era denunciada a situação dos flagelados e em que se conclamava os camponeses para se organizar e lutar. Não foi uma decisão fácil. Era indispensável evitar qualquer ação que pudesse chamar a atenção da repressão para o trabalho desenvolvido pelo P, qualquer ação que nos identificasse como tal. Por isso procurávamos nos conter especialmente no terreno da agitação e propaganda. A amplitude do jornal e do editorial, ao lado da intensa atividade das forças independentes abriu, porém, condições para realizarmos com boa margem de segurança a difusão proposta.

A ação de difusão compreendeu, fundamentalmente, a panfletagem nos bairros periféricos de algumas cidades, onde residiam muitos trabalhadores das frentes. Conseguimos enviar o jornal para alguns lugarejos onde já existiam alguns contatos de massa. A repercussão foi superior às expectativas. Grande parte dos trabalhadores das emergências, que receberam o jornal, o conduziram para as turmas, onde foi lido e debatido e, depois, passado para outras turmas. A própria ditadura se encarregou de fazer propaganda do documento, atacando pelo rádio local os “terroristas” que procuravam “jogar os trabalhadores rurais contra o governo”. Oficiais do exército foram de turma em turma interpelar os camponeses e ficavam encurralados quando estes, objetivamente, lhes perguntavam se podiam provar que era mentira o que estava escrito no jornal. Desse modo, as palavras de ordem do P ganharam certa extensão entre setores das massas flageladas, possibilitando-nos reforçar os contatos com os camponeses e com os elementos ativistas independentes das cidades. Alguns destes pediram ingresso no P e passaram a dar uma contribuição efetiva para seu crescimento. Além disso, surgiu e se desenvolveu entre os flagelados a ideia de invadir os fornecimentos (armazéns onde eram distribuídos os gêneros aos trabalhadores das frentes nos fins de semana). Tal ideia, com o tempo, se transformou num sentimento generalizado.

Essa ideia passou a ser o centro da atividade das forças independentes, o que teve influência decisiva em todo o posterior desenvolvimento do trabalho, pois as forças independentes tinham ainda um peso muito maior que o P no movimento de massas. Deve-se dizer que cada ideia ganhou também os militantes e a direção do P na zona. Todavia, a CO fez um esforço para analisar friamente a situação e conseguiu tirar algumas conclusões que, depois, provaram ser corretas. Apesar das invasões dos fornecimentos constituírem um sentimento generalizado e real, o grau de organização das massas era pequeno e as condições existentes não eram as mesmas de quando ocorreram as invasões nas cidades. Era necessário preparar melhor as massas para as novas invasões, elevando o seu nível de organização e sua disposição de luta. Era cedo, pois, para empreender uma ação daquele tipo. Nesse sentido, levamos em conta que os flagelados não possuíam nenhum tipo de organização própria que atendesse a situação e condições criadas pelas frentes. Estas haviam desligado os camponeses da atividade que desenvolviam nos lugarejos e, em cada turma das emergências, havia camponeses procedentes de diversos lugares. Os laços de organização estabelecidos pelas delegacias sindicais, pelas comunidades e outras organizações de massas locais haviam sido momentaneamente dissolvidas. Alguns ativistas de massa, numa tentativa de dar solução a esse problema, procuraram organizar as turmas como um todo. Porém, logo descobriram que, em cada turma, existiam os bons e dispostos à luta e, também, aqueles mais atrasados que ainda não haviam despertado para as condições que lhe eram impostas pela ditadura e o latifúndio. Por isso, o caminho natural foi a organização de grupos dentro das turmas. Esses grupos se reuniam à noite, secretamente, para discutir a situação e as maneiras de se organizar e lutar. Alguns membros do P e diversos ativistas independentes já possuíam contatos com alguns grupos e chegaram mesmo a participar de diversas reuniões com eles. Diversos desses grupos possuíam contato entre si e procuravam coordenar-se.

Foi com base nisso que achamos necessário generalizar a experiência de organização desses grupos, propondo a formação de uma organização de tipo novo. Tal organização serviria para englobar todos aqueles elementos de massa que tinham elevado seu nível de consciência, mas que, por um ou outro motivo, ainda não se encontravam em condições de ingressar no P. A ideia era a de formar uma organização com os elementos avançados de cada turma, capazes de levantar as reivindicações e mobilizar as turmas na luta por elas. Com esse objetivo foi elaborado, em consulta com os elementos mais representativos das forças independentes, um boletim analisando as promessas do ditador Médici e lançando a ideia da Liga como forma de organização das massas avançadas sem partido.

A distribuição desse boletim foi realizada de forma relativamente superior à do jornal. Dessa ação participaram não só militantes do P e ativistas de massa das cidades, porém muitos camponeses das próprias frentes. O foco principal da distribuição foi as frentes e não os bairros, como da vez anterior. Durante a madrugada, em cada turma e em quase toda a extensão das diversas frentes, foram colocados pequenos maços de boletins, de modo que os flagelados os achassem ao acordar. Essa distribuição foi bastante positiva. O boletim foi logo batizado de Carta pelos camponeses. Como da vez anterior, os próprios militares e funcionários da ditadura se encarregaram de dar maior difusão ao documento e se viram obrigados a ir discutir com os camponeses os termos do mesmo. Para o argumento objetivo dos flagelados só podiam apresentar o velho chavão de que se tratava de obra de “comunistas” e “terroristas”. Pensavam, com isso, amedrontar as massas com o velho fantasma. Todavia, para seu desespero, as massas começaram a raciocinar, com base na argumentação dos militares, de modo inverso a estes. “As Cartas só diziam a verdade. A lei das Cartas é a certa. O tenente diz que a lei das Cartas foi feita pelos comunistas. Isto quer dizer que a lei dos comunistas é a certa”. Desse modo é que, para alguns setores camponeses da zona, foi quebrado o tabu do comunismo que desde há muito os reacionários pintam para as massas como um espantalho feroz.

Além disso, como resultado imediato, inúmeros grupos aceitaram colocar-se sob a bandeira da Liga e surgiram outros fora do controle do P. Aliás, a maioria dos grupos não era dirigida pelo P, pois este não possuía em suas fileiras senão uns poucos camponeses, nessa ocasião. A par disso, a ideia das invasões reforçou-se e, no início de outubro de 70, ainda por iniciativa das forças independentes, foi convocada uma reunião de líderes camponeses e ativistas de massa. Nessa reunião, onde havia mais de 2 dezenas de líderes camponeses, inclusive dirigentes sindicais, prevaleceu a opinião de que se deveria marcar as datas das invasões, e que estas deveriam realizar-se em todas as frentes de serviço da zona (6 ao todo, englobando mais de 60 mil flagelados). A sugestão dos representantes do P no sentido de que o nível de organização ainda era baixo, e de que era necessário mais tempo para preparar melhor, as ações não prevaleceram.

Com essa decisão, nosso P encontrou-se diante de um fato consumado. O CO deveria tomar uma decisão concreta: ou se abstinha de participar do trabalho, o que teria como consequência inevitável seu isolamento das massas e das demais forças antiditatoriais; ou participar ativamente, procurando fazer com que as massas tirassem as devidas lições do teste pelo qual iam passar. Nem o CO nem os demais organismos do P na zona vacilaram um só minuto em adotar a segunda posição. Lançamos para o P na zona a diretiva de que deveria transformar-se no mais abnegado combatente pelo êxito das ações. Pensamos que este era o único meio certo, naquelas circunstâncias, de ganhar a confiança dos camponeses e das forças independentes, de demonstrar que não só falávamos, mas também agíamos, de demonstrar que éramos capazes de acatar as decisões da frente única, mesmo que não concordássemos com elas, e desde que não ferissem questões de princípio.

Apesar de toda a febril atividade desenvolvida na semana anterior à data das invasões, estas fracassaram na forma como foram programadas. É verdade que em algumas frentes ocorreram ações de tipo menor, mas as invasões, como tal, foram um fracasso. Naquela ocasião, a causa principal apontada para este fracasso consistiu na falta de lideranças capazes, entre os camponeses, para conduzi-los à ação. Em outras palavras: o nível de organização ainda era realmente baixo; faltaram organizações ou ativistas com audácia bastante para puxar e comandar as massas. Mais tarde, ao examinar com mais atenção aquele período e na base da experiência bem sucedida da invasão de S – ocorrida dois meses depois – o que causou certo terror psicológico entre os camponeses desprovidos de armas, constituindo-se também uma das causas daquele fracasso.

Contudo, como as ações correspondiam aos sentimentos das massas, e como os militantes do P se revelaram os mais abnegados e audazes batalhadores pelo êxito das ações, tal fato abriu condições para um crescimento relativamente rápido do P entre os camponeses e para que nosso P desse um salto de qualidade em sua atividade. O fracasso das ações foi um teste precioso para os camponeses, para as forças independentes e para o P, e serviu de certa base para o posterior desenvolvimento da atividade revolucionária. Alguns camaradas estranham que justamente o fracasso, a derrota, tenha nos dado condições para uma virada qualitativa no trabalho, e têm mesmo dificuldades em entender tal coisa. Mas, a dialética da revolução social não consiste justamente em transformar a derrota em vitória, o fracasso em êxito? Para estabelecer as tarefas que possibilitariam dar um “salto de qualidade” na atividade do P na zona teríamos que partir das condições criadas durante a preparação para as invasões. Nesse período, pediram ingresso no P a maioria dos melhores ativistas das forças independentes, com ligações bastante estreitas com os camponeses da zona, principalmente com os líderes dos lugarejos e comunidades. Uma série de líderes camponeses ingressou no P e, a essa altura, quase a metade do número de membros do P já era constituída de camponeses. Por outro lado, exercíamos influência concreta e um trabalho permanente em algumas dezenas de grupos da Liga. O fracasso das invasões, em lugar de abater os camponeses flagelados, levou-os a debater mais seriamente os problemas de suas lutas e organização. Os membros do P, através de sua atividade concreta, firmaram um conceito de defensores abnegados e intransigentes das massas do povo. Portanto, apesar de ainda muito pequeno, o P na zona conseguiu uma base sólida para se desenvolver rapidamente.

Apoiada nessa base, a reunião plenária de quadros, convocada pelo CO para realizar o balanço da atividade de preparação das invasões, lançou a diretiva de dobrar o número de membros do P na zona até a realização de sua Conferência e mudar em definitivo o centro de nossa atividade. Nisto consistia fundamentalmente a virada de qualidade. Até então vínhamos atuando, em relação aos camponeses, de fora para dentro. As condições criadas com a atividade para as invasões possibilitaram que invertêssemos o sentido de nossa atuação. Isto é, que passássemos a atuar diretamente entre os camponeses, integrados a eles e começando a exercer uma atividade de dentro para fora. O posterior desenvolvimento do P na zona, para aplicar corretamente as indicações do CC, teria que necessariamente, aprofundar ainda mais aquela virada de qualidade, transferindo cada vez mais o centro de nosso trabalho das pequenas e médias cidades da zona para os lugarejos e comunidades rurais, para o interior, organizando bases e comitês do P nos lugarejos e distritos rurais.

  1. Alguns resultados gerais do trabalho do P durante a seca

Os resultados gerais do trabalho do P durante a seca foram examinados durante a Conferência do P na zona. Ela deixou claro que, apesar de alguns êxitos obtidos, ainda estávamos longe de possuir uma sólida base de massas. Por um lado, a influência das diversas organizações de massas existentes na região sobre as grandes massas ainda era, de certo modo, reduzida. Por outro, nossa influência sobre essas organizações de massa também era restrita. Quanto ao P, mesmo triplicando seu número de membros, isso não significava que estivesse à altura das necessidades. O P era bastante débil nos terrenos ideológico, político e de quadros. E, também do terreno quantitativo, ainda estávamos bem longe do necessário.

No terreno da preparação militar, ou seja, da organização de forças armadas, a lacuna então era enorme. Existiam alguns recursos materiais, mas muito aquém das necessidades mínimas. Tentamos várias experiências para a organização de grupos armados, mas as necessidades do trabalho de massas e da construção do P sempre as conduziram a uma dissolução paulatina. Na verdade, a organização ou desorganização dos grupos armados variava com a variação da repressão ou das ameaças de repressão. Não sabíamos como combinar na prática diária o trabalho dos grupos armados com o trabalho de massas e de construção do P. Além disso, apesar do problema da revolução estar em debate para alguns setores das massas, as parcelas que já tinham se convencido da necessidade da luta armada como única forma viável para destruir a ditadura e modificar a estrutura social ainda eram relativamente restritas.

A Conferência procurou enfrentar também os problemas resultantes da dissolução das frentes de serviço. O eixo de vida e de atividade dos camponeses se deslocou dos barracões das emergências para os lugarejos. Desse modo, o eixo do trabalho do P também se deslocava: vieram para a ordem-do-dia novas reivindicações das massas, novos problemas de trabalho de massas e de preparação para a guerra popular. Na Conferência aprovamos o documento que sistematizava a pesquisa sobre a zona na qual se estabeleceu como objetivo principal do P para a construção de uma base de apoio revolucionária. A definição desse objetivo poderia dar mais consistência à atividade estratégica de organização partidária. Construir os alicerces da base de apoio passou a ser o cerne do trabalho partidário no sentido de preparar a guerra popular. Procuramos dar ao P, em conjunto, maior clareza sobre a necessidade de construir uma sólida base de massas, fortes organizações do P e forças armadas populares como tarefas, combinadas e integradas. Mas, como realizar isso era coisa que a vida e a prática teriam que nos ensinar em quase toda sua extensão.

III. TRABALHO DE MASSAS

Em relação ao trabalho de massas, com o término das frentes, o centro da atividade do P passou para as organizações de massa existentes na zona: sindicatos de trabalhadores rurais, comunidades rurais e de bairro, clubes, etc. Simultaneamente, tivemos que enfrentar o trabalho nas organizações políticas e o aprofundamento das relações com os amigos e aliados políticos.

Cada tipo de organização de massas apresenta facetas e problemas diferentes. Ao intensificar o trabalho nessas organizações, ficou cada vez mais evidente para nós a verdade contida nos documentos do CC de que não se pode usar fórmulas gerais para os problemas da atividade concreta, nem se pode atuar nas organizações de massa com intuitos puramente agitativos. O trabalho de massas exige persistência, paciência para uma atividade de longa duração, e clareza das diversas etapas de desenvolvimento da consciência das massas. Exige, acima de tudo, que se tenha como centro o trabalho com as grandes massas atrasadas e intermediárias, levando em conta seu nível de organização e consciência, e procurando elevar tal nível a partir das condições reais existentes. Mesmo ao dar atenção às camadas mais avançadas é preciso procurar constantemente elevar seu nível de consciência e organização e, ao mesmo tempo, fazer com que ajudem na mobilização e organização das massas mais atrasadas e intermediárias.

Ao traçar a orientação para o desenvolvimento do trabalho de massas nas condições pós-seca, procuramos levar em conta alguns ensinamentos extraídos da atividade entre os camponeses naquele período:

1º – A organização social existente na zona ainda guarda muitas das características da organização familiar ou de clã. Em cada lugarejo ou distrito existem algumas famílias-tronco, com ramificações pelos outros distritos e lugarejos. Não é raro, numa mesma família, encontrar latifundiários, camponeses abastados, camponeses médios e camponeses pobres. Essa divisão de classe causa a divisão familiar, porém quase sempre permanece um certo grau de apoio entre os diversos membros ou grupos da mesma família. Cada clã possui um ou alguns líderes naturais, cuja influência às vezes se estende às outras famílias do lugarejo, do distrito ou até de outros distritos. Os líderes naturais, via de regra, só o são devido a sua atitude básica diante dos problemas do povo, em geral, e dos membros do clã, em participar. É muito difícil encontrar um líder natural que não possua essas qualidades fundamentais, mesmo quando aparentemente tem concepções reacionárias ou atrasadas em torno de uma série de problemas.

Em virtude disso tudo, um dos aspectos mais importantes do trabalho de massas possou a consistir, para nós, em despertar, ganhar e transformar em ativistas os líderes naturais. Isso possibilitou ampliar o trabalho e, em certos casos, ajudou a neutralizar os elementos reacionários existentes na área.

2º – Os hábitos, costumes, tradições e superstições pesam de forma surpreendente sobre os camponeses. Descobrimos que não basta uma atitude de respeito frente a tais problemas. Em vários lugares, para ganhar a confiança dos camponeses e, com base nessa confiança, despertá-los, organizá-los e mobilizá-los, foi necessário que nos identificássemos com eles, inclusive em relação aos quadros vindos de fora. Em geral a questão de “saber descer ao nível dos camponeses para depois elevá-los paulatinamente” foi muito mais longe e exigiu um esforço verdadeiramente sério. Um dos paradoxos nessa questão reside em que os camponeses são plenamente capazes, desde que se lhes dê uma boa perspectiva política, de dar saltos na compreensão do caminho da revolução e entender com bastante clareza a necessidade da luta armada e de um poder revolucionário. Suas lutas se radicalizam muito rapidamente, o que nem sempre é útil e necessário. Todavia, por outro lado, são capazes de se afastar se cometemos alguns deslizes em relação a hábitos ou tradições arraigados para os quais não demos a devida atenção. A não avaliação do nível de consciência dos camponeses é, portanto, um fator para cometer erros.

3º – Relacionado com a questão da atitude frente aos hábitos, costumes, tradições e superstições, está o problema da amizade, do estabelecimento de sólidos laços de amizade com os vizinhos e camponeses em geral. As visitas, as ajudas nas doenças e dificuldades, a troca franca de opinião entre amigos sobre os mais diversos problemas, tudo isso reforça a amizade entre os camponeses, e abre um importante campo para o trabalho de conscientização política. Isto é particularmente importante para os camaradas de fora. E tivemos que aprender que a amizade entre os moradores e trabalhadores do campo, quando existe, é sem reservas. Por isso, foi indispensável que procurássemos estabelecer uma justa relação entre o trabalho de criar sólidos laços de amizade com os camponeses e o trabalho de fazer despertar sua consciência política, de modo que compreendessem nossa atividade revolucionária. Isso foi indispensável porque, ao sentir que guardávamos sem a devida explicação diversos aspectos de nossa vida, muitos camponeses começaram a considerar que sua amizade não tinha a mesma correspondência de nossa parte. Em várias áreas, onde atuavam quadros de fora, isto abriu lacunas sérias em nossa ligação com diversos setores das massas e nos fez compreender que a amizade (e, também, o parentesco) é um meio importante para estabelecer uma base de massa, mas não é suficiente. Paralelamente, tivemos que empreender o trabalho político a fim de estabelecer uma base de massa realmente sólida.

4º – O atraso cultural dos camponeses é um fato para o qual até hoje não conseguimos dar a devida atenção. Não se trata só do analfabetismo, mas da ignorância à qual a maioria está submetida devido às condições de vida e de trabalho. A grande massa do campo está desligada dos progressos da humanidade e não entende o significado da maioria das coisas novas de que ouve falar. Sua linguagem – apesar da beleza na construção de muitas expressões – é pobre e bastante objetiva. Este é um dos obstáculos permanentes que enfrentamos no trabalho de massas. Mesmo os documentos mais simples precisam ser escritos numa linguagem acessível, e é necessária uma vigilância permanente para que os ativistas camponeses, ao incorporar novas palavras ao seu vocabulário, não se esqueçam de traduzi-las para as massas.

  1. Trabalho sindical

O trabalho sindical foi iniciado na zona pelas forças independentes que lá atuam. A concepção dessas forças políticas sobre a revolução era sindicalista: consideravam os sindicatos o instrumento necessário para dirigir a revolução. Com base nessa concepção, atuavam no sentido de criar sindicatos revolucionários. Apesar disso, desenvolveram um trabalho bastante positivo e conseguiram dar um grande impulso no despertar, mobilizar e organizar as massas camponesas. Utilizando um eficiente método de conscientização, conseguiram despertar setores consideráveis, habituando um grande número de camponeses ao sistema de reuniões para debater e solucionar os problemas. Em virtude disso, surgiu e se desenvolveu um importante contingente de ativistas sindicais de massa. Com o desenvolvimento do trabalho, foi aos poucos sendo colocado diante desses ativistas, espontânea e naturalmente, o problema da opção política e do partido. A maioria se deu conta de que os sindicatos não podiam transformar-se no instrumento necessário para dirigir a revolução. Compreenderam que, para tanto, é necessário um partido de vanguarda, com clareza de objetivos. Muitos desses ativistas passaram a procurar esse partido. Outros, se apavoraram com a descoberta e buscaram um caminho de compromisso e composição com a reação, transformando-se em pelegos. Os acontecimentos ocasionados pela seca vieram acelerar tal processo de diferenciação entre os ativistas sindicais, e a atuação do P serviu somente para canalizar para seu seio os bons elementos dispersos que procuravam a organização revolucionária de vanguarda.

A seca levou, obviamente, a um recesso temporário a maioria dos sindicatos existentes. Mesmo assim, em algumas áreas onde ainda não existia sindicato, foi possível realizar um trabalho para a fundação da organização sindical e surgiram mais alguns sindicatos. Porém, o movimento sindical desempenhou um papel secundário naquela conjuntura. Com o fim das frentes de serviço colocou-se diante dos elementos revolucionários, do P e independentes, a tarefa de voltar a dedicar maior atenção ao movimento sindical. Isto acabou exigindo todo um esforço de esclarecimento das ideias em torno do papel dos sindicatos no movimento revolucionário e da verdadeira importância do trabalhado sindical na zona. Ficou claro que deveríamos trabalhar nos sindicatos tendo em vista despertar para a organização e para a luta justamente as massas mais atrasadas. Querer dar um caráter revolucionário aos sindicatos, naquele momento, seria estreitá-los, não ampliá-los. Nesse sentido foi retirada a orientação do P de trabalhar fundamentalmente com os direitos camponeses já consagrados em lei e de forma ampla e legal. Do ponto de vista das condições da zona, o movimento sindical passava a ter uma importância maior justamente devido a que os problemas da renda, despejos e relações entre camponeses sem-terra e proprietários passaram a ser os problemas que subiram à tona com mais violência depois da seca. Assim, a tarefa de ampliar o movimento sindical passou para o primeiro plano no trabalho de massas.

Para o crescimento do movimento sindical e sua posterior consolidação era necessário levar em conta a experiência do processo de diferenciação ocorrido entre os ativistas sindicais (e, portanto, dentro da cúpula dirigente em cada sindicato). Se pretendêssemos conduzir o movimento sindical através das cúpulas, estávamos fadados a um esforço imenso e de poucos resultados. Em algumas áreas esse caminho foi tentado, mas fracassou redondamente. Ao lado dessa dificuldade, a ação da repressão ditatorial, manietando as diretorias e atemorizando-as de modo constante, indicava-nos que o caminho mais correto consistia em concentrar a atividade nas delegacias, ou seja, pela base. Como resultado procuramos lançar as organizações de base do P no trabalho permanente das delegacias, tendo como centro o esclarecimento dos direitos consagrados em lei e a organização e desencadeamento de lutas de cunho legal.

Durante estes quase dois anos realizamos um trabalho relativamente amplo e diversificado de esclarecimento sobre a lei da renda, sobre os direitos estabelecidos em lei a respeito dos despejos, indenizações e salários, sobre a lei da reforma agrária, sobre a organização sindical e sobre a aposentadoria. A explanação sobre esses temas era devidamente preparada com base na própria lei e levada pelos ativistas sindicais para debate com os camponeses. Muitas das pequenas lutas travadas nesse período tiveram como origem esses debates e muitas outras deram ensejo a que se aprofundasse o estudo dos problemas dos camponeses com eles mesmos. Pode-se contar em centenas a quantidade de casos que os sindicatos tiveram que enfrentar entre o fim da seca e meados de 1972. Como decorrência, nesse mesmo período, o número de camponeses sindicalizados na zona dobrou e o número de delegacias mais que triplicou. A partir do início de 72 os sindicatos desenvolveram uma importante campanha pelo pagamento da renda conforme reza a lei. Esta campanha – de esclarecimento e de luta – colocou os latifundiários e agentes da ditadura em dificuldades em algumas áreas: os camponeses não faziam senão exigir o cumprimento de uma lei da própria ditadura. Em alguns lugares os latifundiários e proprietários em geral foram obrigados a aceitar se reunir com os representantes das delegacias sindicais e, inclusive, a assinar compromissos de que só cobrariam rendas de 8:1 e 10:1. Em outros, os delegados de polícia foram obrigados, a contragosto, a debater com os camponeses de igual para igual, e a comprometer sua palavra no sentido de que fariam os proprietários cumprirem a lei e os compromissos assumidos. Se nos lembrarmos de que, até pouco tempo atrás, os camponeses não eram sequer considerados gente pelos latifundiários, delegados de polícia e demais reacionários, poderemos avaliar bem o significado dessas ações e lutas legais para os próprios camponeses.

Todo esse trabalho é uma base segura para a elevação do nível de consciência, organização e luta dos camponeses. Como resultado da campanha da renda, os latifundiários estão ameaçando não dar terra para brocar e plantar. Tal situação vai colocando na ordem do dia, cada vez com maior intensidade, o problema da terra e da reforma agrária. Os debates em torno dessa questão começam a se acender e intensificam-se propostas de invasão de latifúndios e terras consideradas devolutas. Em certas áreas, inclusive, já ocorreram e vêm ocorrendo alguns casos isolados, mas de importante significado, em relação à tomada de terras pelos camponeses.

Apesar de todo o avanço conseguido, a ação das delegacias sindicais ainda não abrange toda ou a maior parte da massa atrasada da zona. Ainda é necessário um sério esforço para alcançar esse objetivo. Um dos obstáculos nesse caminho é a ação múltipla da reação. Em alguns sindicatos, seus agentes estão diretamente enquistados nas diretorias, e nem sempre o melhor caminho para modificar a situação consiste em alijá-los de lá. Em certas áreas, a influência dos latifundiários é grande e eles pintam o sindicato como instrumento comunista, atemorizando os camponeses. Há sindicatos que possuem boas diretorias, mas a polícia federal exerce pressão e vigilância permanente sobre elas, ameaçando-as de prisão por qualquer “deslize”. Já houve casos em que a polícia federal agiu diretamente sobre delegacias sindicais, prendendo seus dirigentes e impondo alcaguetes em seu lugar. Para enganar os camponeses e desviá-los da luta, os agentes ditatoriais e pelegos utilizam, ainda, o assistencialismo paternalista. Tudo isso exige bastante flexibilidade dos ativistas sindicais e uma combinação adequada entre o trabalho revolucionário secreto e o trabalho legal, entre o trabalho pela base e o trabalho nas diretorias. Onde os pelegos estão enquistados nas diretorias, temos procurado levar as massas das delegacias e forçar as diretorias a agir de acordo com os interesses dos camponeses. Assim, procuramos colocar em segundo plano o problema da direção sindical, apesar de que muitos companheiros não se conformam com isso e teriam grande prazer em dar uma corrida nos pelegos. A experiência tem nos mostrado que o aparelho repressivo da ditadura está muito atento para qualquer tentativa de mudança “anormal” de direções sindicais e, sempre que isso ocorre, busca localizar os responsáveis pela organização “anormal” dos camponeses. Em vista disso, o método da pressão de baixo é o que pode dar alguns resultados e permitir que continuemos esclarecendo e mobilizando as massas em silêncio. A autonomia das delegacias contribui bastante para a execução dessa tática. Devido à pressão dos camponeses é comum que os pelegos, nas reuniões de delegacia, mudem de tom e procurem posar de revolucionários.

Nas áreas onde as diretorias são boas, mas a polícia exerce pressão permanente, o trabalho tem sido ainda mais complexo. Por um lado, procuramos ter cuidado para não queimar as diretorias. Por outro, a presença cada vez mais amiúde de agentes da polícia, inclusive em delegacias sindicais, vai colocando diante dos ativistas sindicais o problema da atividade semilegal ou mesmo ilegal. A experiência vem mostrando ser provável, mais adiante, criar organizações sindicais de nível inferior às delegacias, semilegais ou ilegais, para manter a atividade sindical. Entretanto, essa experiência é limitada. O aspecto legal é muito importante no trabalho de massas camponês e só o futuro poderá dizer como a situação evoluirá diante das condições da repressão ao movimento sindical camponês da zona.

Durante um largo período não soubemos como enfrentar concretamente a política assistencialista da ditadura e dos pelegos. Alguns companheiros, inclusive das forças independentes, faziam o combate mecânico a essa política. Eram contra a assistência aos camponeses através dos sindicatos e agiam em função dessa visão. Todavia, as massas têm direito à assistência médica, dentária, etc, e os sindicatos devem lutar também por isso. As massas camponesas sempre estiveram completamente desprovidas desses direitos e os pelegos e agentes da ditadura, ao introduzirem esses serviços assistenciais nos sindicatos, procuram sempre cercá-los com o invólucro de dádivas. Dessa forma, a atitude mecânica contra o assistencialismo acabava nos isolando das massas sindicalizadas que acabavam sob a influência dos pelegos. Com o tempo fomos aprendendo – e ainda estamos – a enfrentar o problema do assistencialismo. Primeiro, procuramos mostrar que os serviços assistenciais são uma vitória e uma conquista dos próprios camponeses e não um presente obtido graças aos bons ofícios da pelegada. Depois procuramos mostrar que o governo deve muito mais do que forneceu e que é necessário exigir assistência médica, dentária, hospitalar, em remédios, aposentadoria, etc, em maior escala e para todos os camponeses. De qualquer modo, os resultados e as experiências dessa luta surda para desmascarar a ditadura e os pelegos no campo do assistencialismo são ainda muito limitadas. Os próprios militantes do P têm dificuldades em abandonar a oposição mecânica e adotar essa tática de esclarecimento a longo prazo.

Devemos reiterar que a maior parte das lutas camponesas travadas na zona durante o último período se deu através dos sindicatos, em especial nas delegacias. O crescimento do movimento de luta dos camponeses não pode ser medido por um levante geral e simultâneo das massas rurais, como na época da seca. Em virtude da dispersão relativa dos camponeses (num mesmo lugarejo, dificilmente moram num só arruado ou trabalham num mesmo terreno), o crescimento de suas lutas ocorre também de forma dispersa, como os cogumelos de uma floresta. Na maior parte das vezes, as lutas se travam em função dos direitos de um só camponês ou família camponesa contra a prepotência de um latifundiário. Desse modo, procuramos medir o nível de consciência e de organização dos camponeses do lugar, pela quantidade de trabalhadores mobilizados em apoio a seu companheiro de classe. Isto, em geral, expressa o nível de compreensão sobre os problemas de classe, compreensão das lutas individuais como forma de exteriorização das reivindicações e interesses de todos os camponeses. O caminho para fundir num único leito todas essas lutas dispersas, de forma concreta, sem sair do processo real em que elas se dão, é algo que ainda estamos procurando e seria temerário adiantar de modo sistematizado o que há de embrionário a respeito.

  1. Movimento comunitário

O movimento comunitário surgiu e se desenvolveu orientado, principalmente, pelos setores religiosos e seu caráter é reformista. As comunidades visam a organização dos moradores dos lugarejos para resolver seus próprios problemas locais tais como prédios escolares, contratação de professores, organização de farmácias cooperadas ou comunitárias, armazenamentos dos produtos agrícolas, produção agrícola comunitária, serviços religiosos, etc. Apesar de seu sentido profundamente reformista, tivemos que combater a tendência – por paradoxo, proveniente principalmente daqueles camaradas oriundos desse mesmo movimento – de querer combater indiscriminadamente o movimento comunitário. Este movimento constituiu um importante fator para despertar as massas camponesas para os seus problemas. Além disso, mostrou a essas massas que elas são capazes de solucionar tais problemas desde que se unam e se organizem. Em virtude de seu caráter reformista, de seu invólucro religioso ou semirreligioso, e da amplitude de seus objetivos, o movimento comunitário permite atingir setores de massa bastante atrasados. Por isso, empenhamo-nos pelo êxito das experiências comunitárias, por mais reformistas que elas sejam. Tais experiências reformistas fazem parte do aprendizado das massas e, depois de passar por elas, fica mais fácil achar o caminho revolucionário. Se não nos integramos de corpo e alma na luta pelo êxito dessas experiências reformistas, ficamos sem moral para mostrar aos camponeses porque elas não podem ser vitoriosas, e porque o caminho revolucionário é o único que abre condições para libertar os trabalhadores rurais da opressão e da exploração. As massas camponesas não acreditam nos críticos que ficam de fora, sem se empenhar e se integrar no trabalho.

O desenvolvimento das comunidades pode levar os camponeses a se interrogar por que não podem, eles próprios, dar solução ao problema da terra e ao problema do poder. Em certas áreas esse desenvolvimento demonstrou que as comunidades podem se transformar, aos poucos, na forma de governo representativo das diversas organizações populares existentes no lugarejo. De modo objetivo, eles vão fornecendo determinadas experiências no tratamento das questões relacionadas com a administração pública do lugarejo, de modo democrático. No momento, isto aparece de maneira embrionária, mais adiantado nuns lugares do que nos outros. Tal característica do movimento comunitário e das comunidades pode ter importância no futuro, quando for necessário instaurar o poder político popular.

Por tudo isso, ao lado do trabalho sindical – e muitas vezes servindo de estímulo às delegacias dos sindicatos – desenvolvemos todos os esforços para ampliar e reforçar o movimento comunitário, procurando englobar a maior parte dos moradores dos lugarejos. Procuramos, também, incentivar o contato e a troca de experiências entre as diversas comunidades a fim de acelerar seu desenvolvimento e criar laços mais sólidos entre elas. A atividade do movimento comunitário, com sua grande diversidade de experiências reformistas – e já agora com certa dose de conteúdo revolucionário em alguns lugares – apresentou um bom grupo de educação para as massas e para o P.

  1. Clubes

No passado, a ACAR incentivou a formação de clubes 4-S, assim como das comunidades, na zona. Por meio da criação de tais clubes, de cunho recreativo e educacional, a ACAR pretendia disseminar entre os jovens camponeses as ideias capitalistas importadas dos Estados Unidos, estabelecendo pontos de apoio no meio rural. Entretanto, numa sociedade dominada pelo latifúndio, caracterizada pelo imobilismo social e pela inexistência de organizações populares, os clubes 4-S apareceram como sinal de progresso e encontraram nos latifundiários ferrenhos opositores. Particularmente porque surgiram no mesmo período em que foram organizados as primeiras comunidades e os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais, os clubes 4-S acabaram tendo sua origem e sua finalidade confundidos, pelos latifundiários e reacionários em geral, como uma só. Todos os 3 tipos de organização surgiram sob o estigma de subversivas. E o fato é que, por um motivo ou outro, a ACAR acabou abandonando os clubes 4-S à própria sorte. De qualquer modo, estes haviam representado um progresso e, com base na experiência de sua organização, e com o que sobrou deles, foi possível incrementar o trabalho de organização e unificação dos jovens em várias áreas. Os clubes desse tipo passaram a se denominar simplesmente clubes de jovens, com o objetivo de desenvolver a recreação (tertúlias, bailes, encenações teatrais, etc). Através da atividade dos clubes de jovens, estes aprendem a se organizar e começam a debater seus problemas específicos, entre os quais sobressai com mais força o das perspectivas de trabalho (praticamente nulas na zona), assim como os problemas gerais do povo. Espetáculos teatrais, aos quais se seguem debates sobre as peças encenadas, contam com uma participação atenta e têm representado bom fator de educação, apesar de representarem ainda uma parcela restrita do conjunto das atividades.

A atividade entre os jovens está intimamente ligada ao trabalho de massa geral. O controle semifeudal dos pais sobre os filhos – principalmente sobre as filhas – forçou a que intensificássemos o trabalho de esclarecimento das famílias em relação às finalidades e funções dos clubes de jovens. Em toda parte onde isso não foi observado, sofremos dificuldades no trabalho entre jovens. Ao lado dos clubes de jovens mas dedicando-se exclusivamente ao futebol, existem os clubes desse esporte. Apesar de representar um campo de atividade mais restrito, em alguns lugares têm servido para a realização de um bom trabalho de estreitamento dos laços de amizade e de integração com as massas e mesmo para despertar as pessoas para os problemas que enfrentam.

  1. Trabalho Feminino

O trabalho e a organização entre as mulheres têm variado de lugar para lugar. Há clubes de mães, para tratar dos problemas das crianças na comunidade e na escola, e de outros problemas relacionados com a maternidade e a família. Há associações femininas, com o objetivo de tratar de todos os problemas relacionados com a vida da mulher. Há grupos femininos para a produção comunitária (hortas, roças de mandioca, criação de gado e animais de pequeno porte, etc). Há grupos femininos para cuidar dos templos religiosos, etc. Há locais onde existem várias dessas organizações femininas e há outros onde ainda não se conseguiu avançar um til no trabalho específico entre as mulheres. Mas, todas essas organizações têm oferecido oportunidades para uma atividade constante entre as mulheres e para a elevação de sua consciência.

O trabalho entre as mulheres tem sido feito, indiscriminadamente, por homens e mulheres, mas a prática tem demonstrado que a atividade se desenvolve melhor quando se consegue formar ativistas e líderes femininas. A característica principal nesse trabalho tem sido a necessidade de munir-se de paciência e persistência. Devido a sua condição subalterna na sociedade e nos problemas que enfrenta no lar, a mulher demora um tempo relativamente mais longo do que o homem para se decidir a participar no movimento de massas e no movimento revolucionário. Os companheiros que conseguiram alguns resultados positivos no trabalho entre as mulheres tiveram, em muitas ocasiões, a impressão de que as coisas estavam estagnadas e não haviam avançado um passo. Surgiu mesmo a tendência de abandonar essa atividade específica, por achar que ela não dava resultados. Na verdade, porém, estavam ocorrendo mudanças imperceptíveis na consciência das mulheres com que vinham atuando e, quando se deram conta, haviam surgido algumas ativistas decididas a empreender seriamente o trabalho. Esse fato causou não só um avanço no trabalho feminino, mas também no trabalho em geral ali onde ocorreu. As mulheres que se tornaram ativistas passaram a influenciar, num sentido positivo, todo o conjunto da atividade dos maridos, pais, filhos, irmãos, parentes e vizinhos. As mulheres chegaram mesmo a se interessar muito mais pelo desenvolvimento do conjunto das atividades do que os homens, e isso foi bastante salutar.

  1. Trabalho religioso

Uma das características locais é a profunda religiosidade das massas. Negar isso ou tentar extirpar essa religiosidade à fórceps é não só extremamente negativo, como estéril. Para ganhar as massas fomos obrigados não só a levar em conta essa sua religiosidade, mas a partir dela mesma para elevar seu nível de consciência política. Em lugares onde até as mais rudimentares formas de organização eram “coisas do diabo”, a utilização da própria Bíblia demonstrou ser bastante útil para despertar as massas, levando-as a refletir e a raciocinar em torno da interpretação de seus trechos.

Por outro lado, tivemos que levar em consideração – e muito seriamente – o aspecto progressista que tomou o movimento religioso em diversos lugares. Quanto mais progressista é o aspecto do movimento religioso, mais tende a romper com a religiosidade opressiva e entorpecente, desempenhando um importante papel no despertar da consciência do povo, principalmente das massas camponesas. Seria estupidez que, por pruridos ideológicos, não tivéssemos apoiado firmemente o desenvolvimento do aspecto progressista do movimento religioso da zona. E, uma das facetas desse apoio consistiu, justamente, no esforço para evitar o desenvolvimento da tendência sectária e exclusivista dos elementos progressistas do movimento religioso, que se resumia em procurar desligar-se de sua origem. Isto traria prejuízos incalculáveis, pois possibilitaria seu isolamento de grandes setores das massas e o predomínio dos elementos reacionários. É evidente que entre nós também havia os sectários e exclusivistas que achavam necessário colocar em primeiro plano a luta ideológica (contra a religiosidade), em lugar da luta política (unidade com os elementos religiosos, especialmente os progressistas, contra a ditadura). Um prolongado, franco e fraternal debate, ao lado dos ensinamentos proporcionados pela vida, acabou por nos dar uma compreensão correta em relação ao trabalho com o movimento religioso e a forma de tratar a religiosidade do povo. Isto ampliou o campo de manobra da revolução, permitindo-nos trabalhar para o isolamento dos elementos reacionários e dos agentes da ditadura.

  1. Trabalho com aliados

O problema dos aliados apresentou-se, fundamentalmente, como o problema de trabalhar em unidade com as demais forças políticas e independentes nas organizações de massa. Compreendeu, como é evidente, questões como o programa comum de luta, formas de luta e de organização, relações das forças e grupos políticos com as massas, etc. Na prática, isto se expressou na deterioração de uma orientação concreta comum a ser seguida nas atividades das organizações de massa. Havia, quanto a essas questões, certas concepções básicas erradas, dentro do P na zona. A frente única era compreendida mais como uma dádiva generosa que oferecíamos aos aliados e não como uma necessidade objetiva da revolução. Ao tratar dos aliados, tratava-se deles mais como personalidades isoladas no ar – boas ou más por natureza – do que como representantes de forças políticas, e passávamos logo a uma luta aberta, de caráter ideológico, e muitas vezes sem qualquer ética revolucionária. Depois ficávamos sem compreender porque nos encontrávamos desligados das massas e isolados das demais forças políticas revolucionárias. Devido a isso, foi necessário todo um processo de estudo e debate para esclarecer nossas concepções sobre a frente única e o trabalho com os aliados, e colocá-las em concordância com a política geral do P a esse respeito. Ao mesmo tempo, procuramos elaborar métodos adequados que nos permitissem tratar corretamente as relações com os aliados. Acabamos chamando a esses métodos “atuar nos dois sentidos: com os pés e com a cabeça”.

O método de atuar com os pés consiste em resolver os problemas em discrepância na frente única através do movimento de massas. Quando surgem divergências que não conseguimos solucionar por meio de consultas, levamos o problema para as organizações de massa, de modo flexível, para que as massas discutam as diversas opções e decidam o que é mais correto de ser feito. Empenhamo-nos para que as massas discutam as opções livremente, de modo que as ideias possam se transformar em ação, permitindo verificar o que era certo e o que era errado. Simultaneamente, procuramos aplicar o método de atuar com a cabeça. Isto é, procuramos manter boas relações pela cúpula, discutindo fraternalmente as discrepâncias e tendo paciência em aguardar a solução delas por meio da ação das massas e, assim, alcançar uma unidade de nível superior.

A aplicação desse método tem dado resultados positivos nas relações com o movimento religioso, com a burguesia rural, com outros grupos políticos, e com personalidades locais. A maior parte da burguesia rural da zona, por exemplo, é decididamente contra a ditadura. No entanto, tem dificuldades – em virtude de suas contradições com os camponeses pobres e médios – em participar efetivamente da luta revolucionária contra a ditadura militar fascista. Para superar essas dificuldades procuramos, além de adotar aqueles métodos, apresentar pontos comuns de luta em unidade com a burguesia rural. Isto possibilitou que desenvolvêssemos nossas ligações com uma série de camponeses ricos e ampliássemos o campo de atividades das forças revolucionárias. Naqueles lugares onde ganhamos ou neutralizamos os camponeses ricos, conseguimos colocar sua influência sobre as massas a serviço da revolução, o que sem dúvida constituiu um aspecto positivo no conjunto das atividades. É verdade que, neste terreno, também surgiram aspectos negativos. Alguns companheiros tenderam a se apoiar nos camponeses ricos, o que nos alertou para a necessidade de desenvolver permanentemente o trabalho de educação ideológica e política no sentido de manter viva a compreensão de que devemos nos apoiar fundamentalmente nos camponeses pobres e médios. Houve, por outro lado, uma forte tendência, em alguns camaradas, para considerar todos os camponeses ricos como reacionários. Existiriam exceções, tão somente. A vida, com sua prática e com a luta ideológica dentro do P irá, sem dúvida, esclarecendo as coisas.

  1. Partidos políticos consentidos

Apesar dos partidos políticos consentidos pela ditadura não possuírem organismos de base e de estarem dominados por setores diversos de latifundiários e burgueses rurais, tivemos necessidade de levá-los em conta no trabalho de massas, no trabalho com os aliados e no trabalho político geral. Em cada lugarejo ou distrito há sempre um representante, ou vários, das forças sociais e políticas locais que exercem uma atividade política concreta num dos partidos políticos consentidos. Isto porque o problema do poder político local é questão chave para esses setores sociais e, para mantê-lo ou conquistá-lo, se adaptam a qualquer situação. Mesmo sendo contra tal situação!

A ação desses setores de latifundiários e da burguesia rural ainda exerce grande influência sobre as massas atrasadas e mesmo intermediárias. Em virtude disso, as disputas políticas pelas prefeituras municipais sempre constituem um acontecimento que mobiliza certos setores das massas rurais. É verdade que, nos últimos tempos, vêm crescendo os setores das massas que não acreditam mais em eleições e que compreendem a necessidade de uma solução radical para os problemas do país. Todavia, há ainda parcelas que acreditam que as eleições de um ou outro político possa melhorar em algo a situação e, também, parcelas que aproveitam as eleições para tirar unicamente proveitos materiais imediatos, transformando seu voto numa mercadoria vendável a quem oferecer melhor preço. Em nossa atividade, tínhamos que prestar atenção justamente às massas mais atrasadas. Simultaneamente, era preciso ter em conta as massas avançadas e os setores aliados interessados nas eleições. Por isso, fomos obrigados, dependendo das condições reais de cada lugarejo, distrito e município, a desenvolver um trabalho flexível em relação aos elementos que compõem os partidos políticos consentidos, com o fito de tentar libertar as massas da influência dos latifundiários e reacionários. Procuramos despertar e mobilizar as massas e, ao mesmo tempo, aprofundar as divergências e a divisão no seio das classes dominantes. Neste sentido, procuramos levar os representantes dos partidos, sob pressão das massas locais, a reivindicar mais e mais melhorias para as comunidades e lugarejos rurais, a denunciar as condições de vida sob o atual governo, e a se comprometer com um programa de reivindicações preciso. Ao mesmo tempo, esforçamo-nos para desenvolver um trabalho de esclarecimento sobre a verdadeira natureza das eleições sob a ditadura. Por meio dessa atividade tentávamos, também, ficar a par das manobras e movimentos cavernosos das classes dominantes, o que nos permitia atuar com mais segurança. Onde não tínhamos condições de aplicar essa tática, desenvolvemos a campanha do voto em branco ou nulo.

De qualquer modo, sempre encontramos dificuldades, com raras exceções, em tratar com a flexibilidade necessária o problema tático concreto das eleições, de forma a aproveitar qualquer brecha.

  1. Organizações revolucionárias de massas

Durante a seca surgiu a Liga como um tipo de organização revolucionária de massas. Naquele período ela teve um crescimento relativo, tendo sido formados inúmeros grupos. Ao serem dissolvidas as emergências, o P não foi capaz de enfrentar com êxito a questão da reorganização da Liga nas novas condições de trabalho nos lugarejos, para onde o eixo da atividade havia se transferido. A maioria dos grupos da Liga dissolveu-se naturalmente pelo fato de que, em geral, os membros dos grupos moravam em lugarejos diferentes. Além disso, uma parte considerável dos integrantes da Liga ingressou no P sem que, em contrapartida tivesse havido o cuidado de reforçá-la com o recrutamento de novos membros. Para essa situação contribuiu, também, a atenção concentrada que se passou a dar ao trabalho de ampliação dos sindicatos e comunidades. Apesar de continuar a existir e atuar em algumas localizações e de se ter conhecimento da existência de ligações e contatos, a organização da Liga permaneceu em compasso de espera nos últimos tempos.

A prática vem nos mostrando que, como consequência do trabalho nas organizações de massa, surgem ativistas sem partido que começam a compreender a necessidade da revolução e da luta armada. Nem todos esses ativistas, entretanto, aceitam o P ou estão em condições de nele ingressar. Apesar de trabalharem estreitamente vinculados aos comunistas, às vezes ainda é necessário certo tempo para se libertarem dos últimos restos da propaganda reacionária sobre o P e os comunistas, ou para que corrijam alguns defeitos inaceitáveis num membro do P. O número desse tipo de elementos é bem maior do que à primeira vista possa parecer. Desse modo, se justificou plenamente a criação de uma organização de massa revolucionária, como a Liga. O descenso ocorrido em sua atividade foi somente temporário. À medida que se tornou necessário acelerar os preparativos para a luta armada – mais precisamente para enfrentar uma possível campanha repressiva – a Liga começou a ser revigorada. Alguns pequenos grupos armados de autodefesa que começaram a ser estruturados o foram sob a égide da Liga.

Como organização revolucionária de massas também foi iniciado, há algum tempo, a organização da Associação Feminina de Libertação. Trata-se de uma organização idêntica à Liga, mas de caráter mais amplo. Visa também, organizar as mulheres que já têm consciência da necessidade da revolução e da luta armada, porém sem condições de entrar para o P. A experiência quanto a esta organização, entretanto, é pequena.

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Finalmente, ainda a respeito do trabalho de massas, aprendemos que um dos fundamentos dessa atividade reside em estar onde está a massa. Por isso, procuramos jamais nos deixar prender, em relação às organizações ou movimentos criados ou dirigidos pela ditadura ou pelos grupos dominantes locais, a não ser pelas nossas próprias limitações em quadros e militantes. Qualquer dessas organizações ou atividades que contasse com a participação de massas contava também com nossa participação, com o fito de nos ligarmos a essas massas, de conhecer seus problemas e de despertar sua consciência, libertando-as da influência da reação.

  1. CONSTRUÇÃO DO P

A construção do P na zona caracterizou-se, na primeira fase de seu efetivo desenvolvimento, pelo espontaneísmo. Espontaneismo não tanto no sentido de que o recrutamento e a estruturação de organismos do P, especialmente entre camponeses, tenham sido negligenciados. Mas, sim pela inexistência de um plano concreto de construção nas áreas mais importantes da zona, além da inexistência de um plano efetivo de educação e formação de quadros. Esse espontaneísmo foi resultado de uma situação objetiva que não tivemos condições de superar num curto espaço de tempo. Naquele momento, tratava-se de aproveitar o melhor possível as excelentes condições favoráveis, originadas pelo movimento das massas camponesas em função da seca, e concentrar todos os esforços na construção do P através das frentes. A curto prazo essa diretiva demonstrou ser correta. Todavia, raciocinando a longo prazo e compreendendo a temporariedade e anormalidade das emergências, tínhamos necessidade de dar um caráter planificado à construção do P, objetivando organizá-lo nas áreas mais importantes para a preparação e desencadeamento da guerra popular. Tínhamos, ainda, que considerar a importante tarefa de formar um contingente de quadros capaz de dirigir o P e o processo revolucionário na zona.

Só com a realização de pesquisa sobre a zona, paralelamente à atuação nas frentes, foi possível ter mais clareza sobre onde concentrar e sobre os objetivos estratégicos que devíamos estabelecer para o P na zona, superando o espontaneísmo. Como resultado, partimos para o deslocamento de quadros para as áreas de concentração, com o objetivo de construir os alicerces da base de apoio nessas áreas, para um trabalho mais efetivo de formação de quadros e organização das direções locais (comitês) do P, e para a montagem de uma aparelhagem partidária mais segura.

  1. Transferência de quadros para as zonas rurais

A população da zona faz distinção entre “cidade” e “interior”. Cidade é a aglomeração urbana sede de município; interior, todo o resto do município, compreendendo as vilas, os povoados e lugarejos. Dessa forma, quando nos referimos aqui à transferência de quadros para o interior ou para as áreas ou zonas rurais, referimo-nos à transferência de quadros das sedes dos municípios do interior para o interior desses outros municípios e não das grandes cidades para as pequenas e médias cidades do interior. Nossa prática nos mostrou que o problema fundamental e decisivo para o desenvolvimento do P na zona foi a transferência de quadros das cidades do interior para as áreas rurais, incluindo-se aí a transferência de quadros que tinham vindo das grandes cidades.

Nas condições objetivas excepcionais existentes durante a seca, foi possível, com um pequeno contingente de quadros, nos localizarmos principalmente nas pequenas cidades, e organizar um P relativamente grande. Todavia, à medida que se apresentou mais concretamente a tarefa de levar à cabo, nos terrenos político, militar e de massas, as medidas de preparação da guerra popular, ficou evidente nossa grave lacuna na questão dos quadros. Não só não possuíamos um número de quadros suficiente para dirigir a execução daquelas tarefas, como nossos quadros não se encontravam onde era mais necessário, ou seja, nas áreas rurais de concentração de trabalho do P. Apesar do espírito revolucionário, da coragem e abnegação da grande maioria dos militantes do P na zona, especialmente camponeses – que não medem sacrifícios para realizar as tarefas que lhes são indicadas – as dificuldades para fazê-los assimilar a linha do P não foram e não são pequenas. A grande maioria não sabe ler e escrever, e não têm condições de entender a linguagem dos documentos do P. Tivemos, então, que aprender não só a ler pausadamente os jornais e demais materiais do P, como também ir traduzindo-os, simultaneamente, para uma linguagem acessível aos camponeses. Tivemos que enfrentar, de um modo inicialmente disperso e nem sempre consciente, tanto a educação ideológica e política, como a tarefa de fornecer os rudimentos de cultura (alfabetização e difusão cultural), indispensáveis à compreensão dos problemas ideológicos e políticos. Dessa forma, pelo menos, pudemos comprovar e entender a extensão das dificuldades para a formação de um contingente de quadros locais, o que nos levou a tentar realizar um esforço concentrado para a transferência de quadros mais capazes para as áreas rurais mais importantes e para a aplicação de um programa de educação mais constante.

Na transferência de quadros para as áreas rurais nos apoiamos, basicamente, nos camponeses membros do P. No início, os companheiros camponeses colocaram dificuldades para aceitar os companheiros da cidade. Isso se deu devido a que eles não acreditavam que tais camaradas fossem capazes de se adaptar à vida do campo e de se identificar e integrar com as massas rurais. Entretanto, à medida que a maioria dos quadros transferidos se mostrou capaz de realizar tal missão, e de ajudar os militantes do P a elevar seu nível, e cumprir suas tarefas revolucionárias, as condições para a transferência de novos quadros foram melhorando. Naquelas áreas onde não tínhamos organismos do P, primeiro realizamos todo um trabalho de reforço das áreas periféricas e, depois, através das organizações da periferia, deslocamos militantes camponeses e quadros para estabelecer pontos de apoio no setor central. Os contatos e ligações naturais existentes entre a periferia e o setor central contribuíram muito para a realização dessa tarefa. A partir do estabelecimento desses pontos de apoio foi possível aprofundar o conhecimento das condições reais da área de concentração, iniciar o trabalho de massas através de descoberta e ativação de líderes naturais e outros elementos, como ativistas de massa e, posteriormente, partir para a estruturação de organizações de base do P com o recrutamento de ativistas locais. No processo de desenvolvimento desse trabalho de transferência de quadros e construção do P, ligado à solução da tarefa de preparação militar, tivemos que enfrentar os problemas da segurança e da clandestinidade no campo.

  1. Problema de segurança

Só depois de um processo relativamente longo de aprendizado se conseguiu chegar a uma certa conclusão quanto à segurança em relação ao trabalho do P nas áreas rurais e, muito particularmente, em relação ao trabalho militar. (Referimo-nos aqui às condições das áreas rurais da zona).

Aprendemos que é quase impossível guardar segredo completo para as massas dessas áreas rurais. Elas são capazes de notar diferenças mínimas na atividade dos vizinhos e tirar as conclusões a respeito, principalmente quando se trata da mudança de citadinos para lugares de onde o pessoal normalmente procura emigrar. Para haver segurança completa na atividade partidária, especialmente na parte técnica, seria necessário ter toda uma área em que só houvesse militantes, o que não era possível e talvez não seja lógico nem correto. Em vista disso, tivemos que colocar o problema do segredo e da segurança em outros termos. Procuramos realizar um persistente trabalho de preparação das massas para a luta armada de tal modo que elas pudessem formar uma rede de proteção para o P, isto é, para seus quadros e aparelhagem técnica. Isto não quer dizer que passamos a fazer as coisas abertamente para as massas e que o segredo de nossa atividade na proteção das massas, procurando prepará-las e organizá-las de tal forma nos lugarejos e nos círculos de vizinhos onde estavam os quadros, etc – que qualquer furo em nosso trabalho, ou qualquer movimento suspeito (mesmo nosso), fosse comunicado e acabasse em nós e não no inimigo. Isso exigiu e continua exigindo um esforço real para levar as massas dos lugarejos e apoiar de modo mais ou menos ativo nossa política geral de preparação da guerra popular.

Desde então, naquelas áreas onde tal orientação foi realmente levada à prática, foi possível começar a realizar, efetivamente, a parte secreta de nossa atividade com certo êxito e resguardada do inimigo. Eis porque, em nosso trabalho, temos reiterado a necessidade de combinar adequadamente os aspectos político e militar com o aspecto de massas.

  1. Problema da clandestinidade

Tal problema está relacionado intimamente com o da segurança, pois são idênticos, e sua solução depende da mesma concepção básica.

Durante a seca pairou constantemente sobre os ativistas revolucionários a perspectiva de uma repressão em larga escala. Devido a fatores vários, a repressão ficou limitada a ações isoladas da polícia e do exército, causando somente danos parciais, sem ter nos obrigado a medidas de clandestinidade absoluta. Porém, aquela ameaça continuou sempre presente e a questão de dar continuidade ao trabalho revolucionário sob quaisquer circunstâncias esteve sempre no centro das preocupações da direção do P na zona. Que fazer se a repressão desencadeasse uma operação em larga escala e não tivéssemos ainda condições de responder com a resistência armada? Deixar os quadros e militantes caírem? Retirá-los? Ou, mesmo que pudéssemos organizar a resistência armada, deveríamos jogar todos os quadros nessa resistência? Num caso ou no outro, como continuar a desenvolver o trabalho revolucionário, como continuar o contato e a orientação para as organizações locais do P? Como manter e continuar desenvolvendo o trabalho de massas, de construção do P e de construção das forças armadas populares? Portanto, o problema da clandestinidade, de passar quadros e militantes para um trabalho clandestino que lhes permita atuar sob as piores condições de luta, esteve sempre presente em nossa atividade, e tivemos que enfrentá-lo e dar-lhe solução, mesmo que essa solução possa não ser ainda a definitiva e que o fogo da prática exija mudanças posteriores.

Pelos mesmos motivos destacados quando tratamos do problema de segurança, a questão da clandestinidade se mostrou diferente de como se apresenta nas cidades. Mesmo aqueles camaradas que se apresentaram com uma cobertura legal e uma atividade socioeconômica precisa, mantendo-se dentro de normas estritamente sigilosas na atividade partidária, não conseguiram evitar que as massas deduzissem os motivos reais pelos quais se transferiram para as áreas rurais. Como não explicávamos as coisas para as massas, elas não se sentiam obrigadas a fazer segredo de nossa existência e mesmo das dúvidas que nutria a respeito. Ficou evidente – a não ser que a cobertura obtida fosse realmente acima de qualquer suspeita – que num caso de repressão generalizada, não nos poderíamos dar ao luxo de testar o duvidoso e o único caminho viável para resguardar os quadros que seria retirá-los, passando-os para a clandestinidade. Retirá-los para fora da zona, pura e simplesmente, seria abandonar os camponeses e as massas à própria sorte, e constituiria uma desmoralização do P diante das massas. Por isso, tivemos que encarar o problema da clandestinidade ligado ao problema de obter o apoio e a proteção das massas. Em diversos lugares, realizamos todo um trabalho de preparação no sentido de que as massas tivessem conhecimento da situação dos quadros (como ativistas de um movimento amplo e não como membros do P) e entendessem uma rede de proteção em torno deles, evitando comentar sua existência com pessoas de outros lugares e identificando-os como do lugar em caso de necessidade. Tal preparação compreendeu um esforço mais sério para elevar o nível de consciência política das massas de certas áreas, de modo a garantir o apoio de todos ou da maioria dos líderes naturais do lugarejo. Desse modo, em alguns lugares, os quadros possuem uma vida legal (ou semilegal) para as massas locais, e clandestina em relação à reação e aos outros lugares. Evitam movimentar-se abertamente, não participam diretamente ou participam de forma limitada do movimento de massas. Toda sua atividade revolucionária se dá através dos organismos do P que dirigem ou orientam. A experiência tem mostrado que é possível manter na mais estrita clandestinidade para a reação, nessas condições, a uma série de camaradas.

Por outro lado, temos procurado realizar a preparação para uma repressão em larga escala, em que não seja possível manter-se inclusive naquela situação. Nesse sentido demos ênfase à preparação de uma aparelhagem técnica que permita a vida e a manutenção dos elementos clandestinos (inclusive grupos armados) nas matas e, simultaneamente, que permita a manutenção dos laços de contato com as massas através das organizações locais de massa e do P. Neste terreno temos encontrado dificuldades sérias devido principalmente à falta de recursos materiais e de experiência.

  1. Outros fatores que influem na construção do P na zona

Além dos obstáculos causados pelo atraso cultural e pela influência dos latifundiários e da burguesia sobre os camponeses e, em contrapartida, o papel que os quadros jogam e os problemas que enfrentam para manter-se em segurança, outros fatores influíram e continuam influindo na construção do P na zona. Entre eles destacamos a organização familiar tipo clã, os hábitos e costumes, a conduta moral e o rádio.

1º – Como já acentuamos antes, a organização familiar tipo clã desempenha um papel positivo no desenvolvimento do movimento de massas e, também, na construção do P. Em geral, quando ganhamos para o P o líder natural de uma família, e conseguimos transformá-lo em ativista ou quadro, a tendência tem sido a de ganhar uma boa parte da família, conseguir a simpatia, a amizade e apoio de outra parte, e neutralizar a restante. Dificilmente permanecem alguns anticomunistas recalcitrantes. Via de regra, o êxito em ganhar os membros de uma família num lugarejo representou ligações com diversos outros lugarejos e distritos, ampliando o trabalho e a influência do P. Em diversos casos, isso tem representado, inclusive, ligações com outros municípios, outras zonas e mesmo outros Estados. Esse aspecto positivo da organização familiar tipo clã tem constituído uma influência benéfica, particularmente no que se refere à segurança e clandestinidade.

Como contrapartida, entretanto, tem havido também aspectos negativos. Os elementos do P que são de uma mesma família e pertencem a organismos diferentes, dificilmente conseguem compreender a necessidade de manter segredo e reserva em torno das atividades que desenvolvem em seus organismos. Há camaradas que comentam abertamente, nas rodas familiares, os problemas internos do P, muitos dos quais deveriam ficar restritos, inclusive dentro do próprio P. Para corrigir tais aspectos negativos procuramos intensificar o trabalho de educação, tentando esclarecer, principalmente, as normas de funcionamento da organização, incentivando o desenvolvimento do espírito de P nos quadros e militantes. Precisamos, porém, compreender que a luta pela superação dessa debilidade será longa, necessitando paciência e um entendimento claro das raízes objetivas de onde se originam, de modo que não cometamos erros sérios ao tratar os camaradas que incorrem nesse defeito.

2º – Os hábitos e costumes também representam aspectos positivos e negativos no processo de desenvolvimento do movimento revolucionário e do P na zona. Para compreendê-los, respeitá-los, e adaptar-se a eles, é preciso partir de uma atitude fundamental diante do povo. Esta atitude consiste em respeitar o povo, amá-lo e estar disposto realmente a defendê-lo e ajudá-lo, mesmo com o próprio sacrifício, atitude que só os verdadeiros revolucionários podem ter. Isto nos coloca numa vantagem muito grande em relação às formas reacionárias. Além disso, existem hábitos e costumes das massas que as enrijecem e lhes dão grande poder de adaptação às adversidades e às dificuldades, fatores de importância para a luta prolongada do povo brasileiro. Nesse sentido, os hábitos e costumes são positivos.

Tais aspectos podem ser negativos se os quadros e militantes, particularmente os que vierem de fora, não se adaptam a eles e cometem erros de apreciação e nas atitudes diante das massas. Isto pode nos isolar das pessoas das áreas em que atuamos – como ocorreu em alguns casos – e causar prejuízos ao trabalho geral do P. Quanto a isso, constitui uma lacuna na atividade da direção do P na zona o fato de que, até hoje, não tenhamos reunido material suficiente para sistematizar toda a experiência obtida a respeito dos hábitos e costumes da população, e das formas de tratá-los. Ainda como aspecto negativo em relação aos hábitos e costumes (e, também, às tradições e superstições), existe o perigo de que alguns camaradas acabem sendo influenciados pelas características atrasadas da vida cultural da população rural e se deixem envolver por elas, regredindo. Surgiram algumas tendências nesse sentido, apesar de raras, o que nos alertou mais ainda para a necessidade de um programa permanente de educação e elevação do nível ideológico, político e cultural, de membros do P e das massas.

3º – A questão da conduta moral também representou sempre um fator de importância em nossa atividade revolucionária. Não que os camponeses sejam puritanos ou de padrões elevados de conduta moral. Mas o espírito crítico deles em relação àqueles que se apresentam como representantes de um movimento que pretende modificar toda a estrutura social é bastante aguçada e exigente. Acrescente-se a isso o fato de que ainda pesa muito sobre os camponeses os resíduos da prolongada propaganda que as forças reacionárias difundem, apresentando os comunistas como imorais, desagregadores das famílias, e outras calúnias e mentiras no mesmo estilo. Devido a isso, qualquer negligência na vigilância à manutenção de uma conduta moral exemplar nos acarretou prejuízos na atividade partidária. Para superar tais dificuldades realizou-se, naqueles lugares onde se tornou necessário, um trabalho educativo específico, para o P e para as massas, na qual procuramos enfatizar o fato de que as mazelas morais são fruto do regime dos latifundiários e da burguesia. Se ainda ocorrem em nosso meio, assim como entre as próprias massas, são devidos às condições em que vivemos, e ao prolongado processo de reeducação a que temos de nos submeter. Procuramos mostrar, sobretudo, como o sistema mais comum de casamento entre as massas do campo – a do roubo das moças – é fruto das condições de vida e das dificuldades em que se encontram os camponeses. Essa necessidade de enfrentar junto às massas os problemas da conduta moral permitiu aprendermos algo sobre o controle de massa e, ao mesmo tempo, discutir com certa amplitude a questão da qualidade dos comunistas e revolucionários e da atitude das massas ante os erros destes.

4º – Finalmente, trata-se de acentuar o papel que, desde há algum tempo, o rádio começou a desempenhar na educação política e na construção do P na zona. Descobrimos, e mesmo recrutamos, camponeses que se encontravam bastante a par da situação política do país e do movimento revolucionário porque sintonizavam a rádio TR. Por outro lado, naqueles lugares onde o P já possui uma certa legalidade entre as massas, a audição da TR tomou um caráter mais amplo. Certo número de ouvintes junta-se, na hora da transmissão, nas casas daqueles que possuem rádio, para sintonizar a A. Depois da transmissão é muito comum que haja debates em torno do que foi ouvido. Os camponeses sempre dão grande valor às pessoas que comprovam dizer a verdade e, via de regra, a partir de certo momento, as informações dessas passam a ter chancela de veracidade. É muito comum, numa discussão, para encerrá-la tirando as dúvidas, indicar que tal ou qual opinião “foi cumpadre fulano que disse”. Pois bem, já existe na zona uma parcela de camponeses que, ao transmitir as informações captadas, acrescentam o indefectível “foi a nossa rádio que disse”, a fim de sanar qualquer possível dúvida. A programação da TR tem permitido ao P manter-se dentro da orientação política geral do P, assim como em dia com o desenvolvimento da situação. Via de regra, o jornal e outros materiais da direção do P chegam à zona primeiro através das transmissões radiofônicas da TR e, depois, (às vezes muito depois), pelos canais partidários. É pena que até hoje, em virtude das limitações materiais do P, dos militantes e dos camponeses, não tenhamos podido montar uma aparelhagem de reprodução dos documentos do P lidos na TR, assim como o papel do rádio não tenha se estendido mais pela falta de aparelhos radiofônicos em maior escala.

  1. Formação da direção local do P

Como frisamos anteriormente, a formação de um contingente adequado de quadros e, portanto, de uma direção capaz, tornou-se um dos problemas mais sérios para o desenvolvimento do trabalho revolucionário do P na zona. Não tem sido fácil conseguir clareza de como levar adiante esse processo. Compreendemos que ele abrange toda uma série de medidas, nem sempre fáceis de elaborar e aplicar: planos de educação, incluindo capacitação de militantes, seleção e formação de quadros; consolidação do que foi aprendido; utilização de métodos corretos que permitam o surgimento e a promoção de novos quadros, a formação de direções locais capazes, etc. Ora, como tudo isso subentende já a existência de um certo número de quadros com experiência, capazes de encaminhar o processo de formação dos demais, e como esses quadros talvez só existam numa escala reduzidíssima e com grandes limitações, eles próprios sentem-se incapazes de empreender tal tarefa. Devido a isso, custamos a dar a ênfase necessária à aplicação de um plano concreto de educação. Foi preciso um prolongado trabalho de esclarecimento, entre nós, para estabelecer o consenso de que, nas condições que enfrentávamos, o trabalho de educação e formação do contingente de quadros deveria ter prioridade e que, na execução dessa tarefa, era indispensável que nos apoiássemos na própria força. Qualquer erro na elaboração de aulas, palestras e outras partes do plano de capacitação política dos militantes e formação de quadros seria incomensuravelmente menor do que nada fazer sob o pretexto de incapacidade, ou de que a direção deveria nos ajudar nessa tarefa. E mais: chegamos à conclusão autocrítica de que nosso trabalho teria andado melhor se, desde o primeiro momento de deslanche da atividade do P, tivéssemos dado atenção especial à execução de um programa de educação.

Depois disso, realizamos um esforço mais sério para vencer essa lacuna. Conseguiu-se aplicar, depois de diversas experimentações, um programa de capacitação política dos militantes adaptável ao nível das bases e militantes camponeses. Esse programa tem como centro algumas aulas sobre a política do P, sobre o P, sobre o funcionamento das bases, sobre a guerra popular e a preparação da luta armada. Inclui, além das aulas, palestras e leituras adaptadas do jornal e outros documentos da direção do P, de acordo com as necessidades. O método que vem dando resultados é simples: em todas as reuniões de base há um tema de debate, que tanto pode ser uma aula como uma palestra ou leitura. No caso das aulas, elas se resumem num esquema genérico sobre o assunto elaborado à base de perguntas que, partindo do que há de mais rudimentar no tema, num encadeamento lógico, vão paulatinamente levando os participantes a terem uma visão geral do tema em estudo. Nesse método – baseado no método usado pelas forças independentes para desenvolver o trabalho entre os camponeses e que deu bons resultados – o monitor ou coordenador desempenha um papel importante, cabendo-lhe estimular cada participante a dar opinião sobre cada interrogação, ao mesmo tempo que deve estar sempre atento para novas perguntas, adendos, ou exemplos fornecidos pelos participantes, e que venham enriquecer o debate, evitando ainda que as discussões fujam do tema central.

O programa de capacitação é o primeiro degrau do plano de educação. O segundo consiste num programa de formação de quadros, cuja primeira etapa, por sua vez, reside na realização de um curso político básico. Este, por força das circunstâncias, teve que ser dividido em duas fases: uma, principalmente política (sobre a linha do P, sobre os princípios gerais de guerra popular); a outra, essencialmente militar (aulas sobre a guerra de guerrilhas e sobre a revolucionarização do P). Essa divisão do curso básico tornou-se indispensável devido à falta de uma aparelhagem adequada (causada pela falta de recursos materiais em quantidade suficiente) e porque a prática mostrou que, depois de 3 dias de curso intensivo, o rendimento caia muito (o programa era realizar um curso de 7 dias). Fora isso, o curso básico parece não ser diferente, em método, dos cursos comuns do P. Apesar do desenvolvimento notado nos camaradas que têm passado pelo curso básico, ainda é cedo para dizer se ele pode jogar um papel importante, como se espera, na formação dos quadros locais.

Além desse programa de educação, desde há algum tempo temos procurado dedicar atenção à formação das direções locais do P por meio da intensificação da utilização do sistema de comitês do P. A formação do Comitê de Organização para toda a zona, quando praticamente só tínhamos duas bases e pouco mais de uma dezena de militantes, mostrou ser acertada. Com base nessa experiência, e logo que foi possível, demos início à formação de comitês municipais, alguns estruturados através da realização de conferência e outros, ali onde só havia uma ou duas bases, por meio de decisão da direção. Mais tarde, chegamos à conclusão de que deveríamos concentrar mais em comitês de distrito e não municipais, devido às características da zona, e tomamos a decisão de reestruturar todos os comitês como comitês de distrito. Isto tem possibilitado realizar um trabalho mais concentrado por área e, simultaneamente, abrir campo para o surgimento e promoção de novos quadros. A fim de tentar consolidar o trabalho dos comitês, adotamos como prática realizar dias de estudo e debates com eles, incluindo transmissão de aulas sobre o sistema de comitês do P, sobre o funcionamento dos organismos do P, sobre as tarefas e métodos de trabalho dos membros dos comitês, etc. Entretanto, o caminho a percorrer para a formação de um razoável contingente de quadros e de uma direção local estável e capaz, ainda é bastante longo e merece uma atenção maior da direção superior do P. A bem da verdade, deve-se reconhecer que essa ajuda ainda está longe do que deveria ser, fato que é particularmente sentido por todos os membros da direção da zona.

  1. PREPARAÇÃO MILITAR

Desde o início se apresentou para o P na zona o problema de como realizar a preparação militar para a guerra. Com os acontecimentos da seca, a necessidade de enfrentá-la aguçou-se. Foi preciso procurar a solução tendo em conta as condições concretas existentes. Dentre tais condições, destacavam-se: poucos quadros, e a maioria sem experiência e mesmo conhecimentos dos problemas militares; insuficiência de recursos; quase nenhuma ajuda de fora; existência de uma sociedade local mais ou menos sedimentada, refratária à penetração de gente estranha ao meio por sua própria situação física, o que constituía um obstáculo intransponível para adotar qualquer método semelhante à introdução de quadros que se dedicassem exclusivamente ao trabalho militar, área à qual o aparelho repressivo da ditadura dedica especial atenção.

Em vista disso, o caminho viável que se apresentava para o P realizar a preparação militar na zona, se estava mesmo disposto a realizá-la, consistia em executá-la em combinação com o trabalho de massas e com a construção do P. Isto colocou diante de nós não só o problema de esclarecer mais objetivamente em que consiste a preparação militar, como também a forma de realizá-la em combinação com as duas outras tarefas básicas do P. Adotamos a orientação de realizar uma preparação em dois níveis, tendo por base a organização de forças armadas populares locais. Em nível inferior, orientamos as bases do P para organizarem grupos armados locais de autodefesa, sob a égide da Liga. Em alguns lugares, primeiro transformamos certas organizações de base do P em bases armadas que servissem de núcleo para a estruturação do grupo armado da Liga; em outros, organizamos diretamente o grupo armado da Liga, tendo como núcleo uma base do P, ou mesmo um ou dois companheiros. O número de participantes desses grupos tem variado de lugar para lugar, dependendo das possibilidades, da experiência das massas, etc. Estabelecemos como tarefas principais desses grupos: providenciar armas, obter recursos, preparar esconderijos e treinar a autodefesa. As dificuldades maiores ainda consistem no desconhecimento de como realizar tais tarefas e, em consequência, não se deixar envolver por tais dificuldades. Isto acabaria por colocar de lado as tarefas militares, o que significa, na prática, a dissolução dos grupos como grupos armados. Mesmo assim, têm-se conseguido, aos poucos, incutir nos integrantes dos grupos e no conjunto do P a necessidade de se armar com o possível e não com o desejável, o que começa a dar certos frutos. Alguns grupos estão plantando roças em conjunto para ajudar a obtenção de suprimentos e já foram dados alguns passos para a construção de esconderijos mais seguros. O treinamento militar é uma das tarefas mais difíceis de ser executada em virtude da falta de conhecimento. Nesse terreno, tentamos também fazer o possível e não o necessário ou desejável: os grupos começaram a fazer um levantamento mais preciso do terreno, a estudar os melhores pontos para emboscar o inimigo e as melhores trilhas para a retirada e as comunicações, a treinar a reunião e a dispersão, etc. Mas tudo isso ainda é muito pouco para as necessidades.

A nível de direção, iniciamos há certo tempo a organização e preparação do grupo de propaganda armado e do comando militar da zona. A organização do GPA – cujas tarefas são basicamente as mesmas dos grupos armados locais, mas em um nível e escala superiores – tem em vista, no momento oportuno, iniciar a operação de uma guerrilha secreta ou, em caso de necessidade, contar com uma reserva estratégica para enfrentar uma repressão em larga escala. Além disso, estamos procurando preparar o GPA para ajudar os grupos armados locais a melhorar seu treinamento e sua preparação militar. A maior dificuldade na organização do GPA está na seleção de quadros para ele e nas condições existentes para situá-los mais ou menos concentrados, o que exige deslocamentos, recursos, etc. Quanto ao comando militar, desde que foi organizado se viu obrigado a dedicar primordial atenção ao estudo dos problemas militares, procurando dar solução aos problemas concretos que enfrenta nesse terreno. Não tem sido nada fácil, para camaradas que nunca trataram desse assunto, saber diferenciar o certo e o errado na tarefa militar. Se não contaram com uma ajuda mais eficaz, seu processo de aprendizagem será, sem dúvida, mais longo e duro.

Como parte da preparação para a guerra, procuramos desenvolver uma constante preparação ideológica e política do P e das massas, de modo a mobilizá-las para enfrentar a repressão e a luta armada. Esta preparação e mobilização política tem se mostrado essencial para organizar com segurança os grupos armados.

  1. ALGUMAS CONCLUSÕES

A maioria das experiências aqui narradas não são mais do que a aplicação dos ensinamentos da prática geral do P e do movimento marxista-leninista. Todavia, como algumas se processaram num quadro peculiar à nossa revolução e à etapa que atravessamos, podem se revestir de certa utilidade sua exploração e mesmo generalização.

Não é objetivo deste trabalho procurar realizar tal generalização. Para isso faltam engenho, arte, tempo, e o conhecimento das diversas experiências de trabalho no campo, acumuladas pelo conjunto do P nos últimos anos. Mesmo assim gostaríamos de frisar, resumidamente, alguns pontos que pensamos merecer mais atenção e maior aprofundamento:

  1. A base do trabalho camponês (político, militar e de massas) é a correta ligação e integração com as massas:

1º – É necessário ter uma atitude fundamental de respeito às massas, de considerar-se servidores e não salvadores das massas camponesas, a fim de resolver com justeza os problemas práticos que se apresentam na atividade do P;

2º – É necessário partir do nível dos camponeses, no terreno cultural, ideológico, político e de organização, a fim de integrar-se com eles e identificar-se com o melhor possível. Qualquer esquematismo quanto aos métodos e formas de trabalho e de organização só podem isolar o P e incapacitá-lo de resolver os problemas práticos que a revolução coloca diante de nós no trabalho entre os camponeses. Nesse sentido, é preciso viver as experiências, as derrotas e vitórias das massas, ajudando-as a tirar os ensinamentos necessários;

3º – É necessário adotar um método de trabalho básico que consista em resolver os problemas práticos da revolução através das massas e apoiando-se nelas.

  1. A chave para desenvolver o trabalho de preparação e desencadeamento da guerra popular é a construção do P:

1º – Envio de quadros para o campo com o objetivo de despertar, mobilizar e organizar os camponeses para a luta armada popular não pode ser encarado como uma simples questão de método ou de tática. É uma necessidade histórica, estratégica, devido tanto ao atraso cultural dos camponeses e ao atraso do trabalho do P no campo, como ao fato de que os camponeses são uma camada intermediária e a força principal de nossa revolução. Seu atraso cultural e sua condição de camada intermediária coloca os camponeses diante de dificuldades imensas para descobrir, sozinhos, o caminho da libertação da influência dos latifundiários e da burguesia e de sua emancipação econômica, social e política; o atraso do trabalho de campo do P e, como consequência, o fato de não termos ainda ganho a força principal da revolução, coloca a própria revolução em perigo;

2º – O trabalho nas zonas rurais exige tanto uma política geral específica para elas, como uma tática concreta para cada zona. Uma e outra dependem do aprofundamento das pesquisas sobre as condições reais locais e na base delas, na elaboração de uma orientação flexível que una o geral ao particular. Em cada área é indispensável saber distinguir tanto o centro político como o centro físico da atividade, em função de preparar a guerra popular e adotar métodos e medidas adequadas para seguir nesse rumo, com a elaboração de programas de luta comuns locais;

3º – Sem enviar quadros e sem traçar uma política específica é muito difícil pensar em construir um forte P. Porém, mesmo que isso seja feito, é indispensável formar um contingente razoável de quadros e direções locais capazes de dirigir o P e a revolução.

  1. A concepção de áreas onde se prepara o P no aspecto militar e áreas em que não se prepara o P nesse aspecto, deve ser considerada errônea. Preparar e desencadear a guerra popular deve ser tarefa de todo conjunto do P. O fato de se intensificar mais essa tarefa em algumas áreas e a possibilidade da luta armada ser desencadeada antes nuns lugares que em outros, só depende das condições concretas, mas não significa que haja diferenças essenciais entre os trabalhos nas diferentes áreas:

1º – A solução prática dos problemas relacionados com a preparação militar depende muito das condições concretas existentes em cada área. Entretanto, qualquer que seja o caminho e a orientação adotados, é necessário estabelecer as formas de combinar o trabalho militar com o trabalho de massas e de construção do P;

2º – A forma mais segura para desenvolver o trabalho militar deveria consistir em apoiar o desenvolvimento dessa tarefa no movimento de massas e na construção de um forte P. Isso se deve a que o objetivo estratégico fundamental do P nas zonas rurais consiste em construir bases de apoio. Os alicerces de tais bases de apoio são, justamente, poderosas forças armadas populares, fortes organizações do P e sólida base de massas, estando todas as três em interdependência mútua.

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Desejamos que esta exposição seja útil e contribua com alguma parcela para a compreensão dos problemas do trabalho camponês do P. Temos plena consciência das limitações e lacunas que decorram de seu tamanho e da nossa dificuldade para expressar com a devida clareza os pensamentos. Podemos, em parte, culpar a falta de tempo por essas debilidades, mas isto somente pode explicá-las, não justificá-las.

Setembro de 1972

OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES

  1. Em virtude de problemas internos e da grande onda repressiva que se abateu sobre o P, em escala nacional, fomos obrigados a retirar da zona todos os quadros de fora e a adotar uma tática de camuflagem que denominamos “fingir-se de morto”, consistindo basicamente em ligar-se ainda mais estreitamente às massas, em reduzir a atividade orgânica ao estritamente necessário, em suspender toda circulação de material que pudesse identificar o P, em adotar métodos de contatos individuais para manter os laços e o espírito do P, etc.
  2. Nos quase 3 anos decorridos desde então, ocorreram várias campanhas repressivas na zona, com o intuito de localizar o P e destruir o movimento de massas. A polícia federal realizou investigações ostensivas e sigilosas, utilizou a tortura e as ameaças, tentou o suborno e a infiltração. Apesar disso, até hoje não conseguiu localizar o P. Tudo isso, porém, tornou mais evidentes algumas das falhas sérias existentes no trabalho do P na zona.
  3. Ficou mais claro a debilidade qualitativa do P na zona. O crescimento acelerado impediu que realizássemos uma seleção mais rigorosa. Muitos militantes não se encontram à altura de encontrar as condições de luta em nosso país. Não soubemos combinar acertadamente o problema da combinação entre ampliação e consolidação, entre quantidade e qualidade. Nossas condições de luta exigem organizações seletas, compartimentadas, secretas e flexíveis. O recrutamento tem que ser passo a passo, seguro, dando mais ênfase à consolidação que à ampliação, mesmo sem abandonar esta. Isto está nos forçando, agora, a um intenso e paciente trabalho de reorganização do P de cima a baixo.
  4. O crescimento do P às custas da Liga também foi um grave erro, como já indicamos. Porém, mesmo apesar de havermos vislumbrado, em certa medida, a importância de uma organização desse tipo como ponte de ligação do P com maiores contingentes de massa, não o compreendemos em toda a sua extensão. Além disso, a Liga representa uma verdadeira escola de preparação e teste para o ingresso no P. Estamos sendo obrigados, assim, a rever toda a experiência de trabalho da Liga para repô-la em funcionamento como um poderoso instrumento de ligação do P com as massas e de mobilização, organização e educação revolucionária dos camponeses. Uma das dificuldades existentes no trabalho da Liga consiste, sem dúvida, na correta combinação do trabalho do P com o trabalho da Liga e do trabalho secreto com o aberto. Qualquer deslize nesse terreno pode colocar em risco tanto a Liga quanto o P.
  5. O movimento sindical está trilhando um novo caminho. Ele se ampliou – cresceu em 3 vezes de fins de 72 até hoje – abrangendo atualmente uns 40% do campesinato na zona, se seconsidera as famílias dos associados. Por outro lado, também se acentuou o processo de peleguização das diretorias e de transformação dos sindicatos em associações assistencialistas. Apesar disso, nas delegacias permanece vivo o espírito de luta sindical pelos direitos e reivindicações dos camponeses. Isto conduziu a que fosse se formando, paralelamente às direções pelegas, uma direção sindical clandestina com autoridade moral e política suficiente para orientar o movimento sindical através dos ativistas sindicais em todos os níveis. Não se trata de um outro movimento sindical ou mesmo de um movimento sindical de cunho revolucionário. Trata-se de um movimento sindical livre, dentro do oficial, cujo cunho é eminentemente sindicalista. Nas condições existentes, a própria luta para levar os sindicatos a cumprir suas funções já se reveste de um caráter político, sendo a forma mais ampla de desmascarar o peleguismo e a ditadura e levar as massas a lutar por seus direitos. Essa direção sindical clandestina acabou surgindo por exigência do próprio pessoal ativista das delegacias. Em virtude da perseguição dos pelegos aos ativistas de oposição, com apoio da repressão policial, os ativistas de base começaram a sugerir encontros secretos com aqueles ativistas para discutir a orientação a seguir no trabalho. Assim, na prática, foi surgindo uma direção sindical clandestina, paralela à oficial. A derrubada dos pelegos vai passando a 2º plano, no momento, por representar um desgaste de forças enorme, como já havíamos acentuado, procurando-se usar táticas mais flexíveis em relação ao trabalho nas diretorias consentidas.

Julho de 1975

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT

(**) https://wladimirpomar.com.br/biografia/

 

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