Por Luiz Cláudio Bittencourt (*)
A trajetória de Antonio da Costa Santos em Campinas não cabe em biografias lineares nem em relatos jornalísticos. Sua vida, obra e política foram atravessadas por uma mesma ideia — o restauro como método. Restaurar não apenas edifícios, mas espaços sociais, vínculos comunitários, a legalidade administrativa, a dignidade urbana. A caneta, em suas mãos, era mais que instrumento de projeto ou gestão: era gesto de inscrição no espaço, de afirmação pública, de contestação do mercado imobiliário e das forças de apagamento.
O silêncio, por sua vez, foi imposto pela violência de seu assassinato. Mas também é o silêncio da cidade diante de sua própria memória destruída, das ruínas abandonadas, das favelas invisibilizadas, dos valores públicos arrasados pela especulação. Contra esse silêncio, Toninho operava com o restauro: recolocava ruínas em diálogo com o presente, reinscrevia bairros populares na trama da cidade, reconstituía juridicamente a integridade das políticas públicas.
Escrever hoje sobre Toninho é, portanto, um restauro da ausência tornado político: reerguer sua voz silenciada, reinscrever sua presença nos espaços da cidade e devolver densidade crítica a um percurso que nunca se dissociou entre teoria e prática. Se cada gesto seu — na Casa Grande e Tulha, no Ato de Morar, no Febre Amarela, nas ações populares — foi uma forma de restauro, este texto procura seguir a mesma trilha: recompor na escrita a coerência de uma vida dedicada a restaurar o bem comum.
A Caneta como Inscrição: o Sentido Profundo de Restaurar
Restaurar nunca foi apenas reparar pedras ou reconstruir paredes. Desde Alberti, no De re aedificatoria, restaurar significava devolver sentido, religar forma e função, inscrever novamente o edifício no horizonte da cidade. Viollet-le-Duc radicalizou esse impulso, ao propor a restituição idealizada de um estado original, gesto que Ruskin denunciaria como “a mentira total”, porque apaga as marcas do tempo. Riegl, ao contrário, ensinou que as rugosidades, as cicatrizes e as pátinas constituem valor de antiguidade, insubstituível. Brandi, no século XX, traduziu em método o que já se intuía: o restauro deve ser ato crítico, reconhecível e reversível, sustentado por juízo histórico e estético. Scarpa, enfim, fez da intervenção um diálogo plástico, onde aço e vidro não disfarçam, mas iluminam a persistência do antigo.
Toninho se inscreve nessa linhagem. Sua caneta não era neutra: com ela, não apenas desenhava, mas erguia posições, instaurava debates, acionava mecanismos jurídicos, mobilizava a cidade. Cada traço era inscrição no espaço e, ao mesmo tempo, crítica às forças que tentavam apagá-lo. O restauro, para ele, não se limitava a um campo disciplinar; era linguagem de recomposição da vida comum.
Assim, o conceito clássico de restauro — arquitetônico, histórico, crítico — ganha com Toninho uma expansão radical: restaurar é reinscrever. É recolocar no tempo presente o que foi relegado, silenciado ou corrompido. Sua caneta, nesse sentido, foi instrumento de luta contra o esquecimento e contra a financeirização do espaço. Onde outros viam ruína, precariedade ou vazio, Toninho via inscrição possível: memória viva aguardando reerguimento.
Casa Grande e Tulha: a Ruína como Reconexão
Na Casa Grande e Tulha, Toninho transformou em obra aquilo que antes era apenas fragmento condenado. A ruína, marcada pela violência da escravidão e pelo abandono histórico, não foi tratada como falha a ser escondida ou como objeto de nostalgia decorativa. Foi acolhida como presença do tempo, como testemunho incômodo de uma origem que a cidade tentava esquecer.
Sua caneta, neste caso, não desenhou uma reconstrução ilusória. Ela inscreveu contrastes: cintas metálicas, pisos elevados, estruturas de aço e vidro. O gesto não buscava apagar, mas revelar; não imitava, mas fazia falar a cicatriz. A diferença entre o novo e o antigo tornava-se pedagógica: quem atravessa o espaço percebe a persistência do passado e a intervenção do presente, sem confundir as camadas.
Toninho descobriu a Casa Grande e Tulha como o “Pouso das Campinas Velhas” — o ponto inaugural da cidade, anterior ao traçado oficial. Restaurar ali significava reinscrever Campinas em sua própria história. A ruína, reerguida, recuperava não apenas paredes, mas a memória de um território, de uma cultura e de um modo de habitar.
O projeto não foi neutro: ao devolver o espaço à comunidade, Toninho retirou-o do ciclo da especulação e reconectou-o ao valor de uso. Foi ato arquitetônico e também político, arqueológico e também ético. A Casa Grande e Tulha deixou de ser resto e tornou-se narrativa ativa: um manual de leitura da cidade pelo tempo, uma dramaturgia em que a ruína e antigos posseiros passam a protagonistas.
O Ato de Morar: Restauro Social
Antes de qualquer cargo público, Toninho já praticava o restauro em escala social. Nas décadas de 1970 e 1980, a urbanização de favelas em Campinas não foi para ele mero exercício técnico, mas gesto de recomposição cidadã. Aproximadamente doze comunidades foram reurbanizadas, somando quase duas mil famílias. Cada rua aberta, cada lote regularizado, cada rede de infraestrutura instalada carregava mais do que engenharia: era um ato de restituir dignidade, de reinscrever vidas marginalizadas no mapa da cidade.
Em sua dissertação de mestrado, O Ato de Morar, Toninho condensou essa experiência prática numa formulação teórica clara: morar não é simplesmente possuir uma casa, mas habitar o espaço como raiz simbólica, como cotidiano partilhado, como reconhecimento comunitário. O que parecia precariedade — a favela improvisada, a ausência de serviços — não era para ele falha técnica, mas expressão de uma violência histórica que precisava ser enfrentada com outro tipo de resposta: não remoção, mas restauro.
Esse restauro não se dava em pedra ou argamassa, mas em vínculos sociais, em escuta política, em reconhecimento. O arquiteto se tornava mediador: traduzia em traços técnicos as demandas de moradores, alinhava o espaço físico ao tecido humano. Nesse gesto, aproximava-se das leituras de Henri Lefebvre sobre o direito à cidade e de Manuel Castells sobre os movimentos urbanos. O espaço era campo de disputa, mas também campo de recomposição coletiva.
Assim, o Ato de Morar mostrou que o restauro pode ser social: não a preservação de formas, mas a reparação de vidas; não a conservação de fachadas, mas a reconstrução de laços. Foi talvez ali, antes mesmo da Casa Grande e Tulha ou das ações populares, que Toninho consolidou sua noção ampliada de restauro como ética de projeto e de política.
Febre Amarela e o CONDEPACC: Restauro Coletivo e Patrimonial
Nos anos 1980, quando o centro histórico de Campinas sofria demolições sistemáticas e era tratado como espaço sem valor, um grupo de jovens arquitetos, estudantes e artistas decidiu reagir. A Sociedade Febre Amarela nasceu como metáfora de urgência: a cidade estava enferma, tomada por uma febre que era, ao mesmo tempo, o avanço da especulação e a apatia do poder público. Contra esse quadro, o grupo assumiu o patrimônio como causa coletiva, articulando denúncia, mobilização e criação de novos instrumentos jurídicos.
Foi nesse contexto que emergiu o CONDEPACC (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas), fruto direto da pressão social. Seu papel foi decisivo: introduziu na cidade a figura legal do tombamento municipal, deslocando a lógica da preservação do monumento isolado para a proteção do conjunto urbano. O tombamento, nesse sentido, não era mero congelamento formal, mas gesto jurídico de restauro — reconhecimento de que o espaço urbano guarda camadas de memória coletiva que não podem ser apagadas sem ferir a memória da comunidade.
Toninho teve participação ativa nesse processo. Sua atuação unia o rigor do arquiteto, a escuta do militante e a clareza do pesquisador. O tombamento, para ele, não era um fim em si mesmo, mas ferramenta estratégica: garantia legal que retirava bens e áreas inteiras do circuito especulativo, reinscrevendo-os no campo da cultura e da memória. Era a caneta transformando-se em arma contra a financeirização do espaço, o traço administrativo tornando-se restauro coletivo.
Com o Febre Amarela e o CONDEPACC, o restauro ganhou escala urbana e institucional. Deixou de ser apenas recomposição de ruínas para tornar-se também política pública de proteção da paisagem histórica. O patrimônio deixou de ser ruína passiva e converteu-se em memória ativa, em campo de resistência e de formação cidadã. Cada tombamento realizado era também um ato pedagógico: ensinava à cidade que seus edifícios, ruas e praças não pertencem apenas ao presente, mas guardam e projetam a memória de todos.
As Ações Populares: Restauro Jurídico
Se na Casa Grande e Tulha Toninho restaurava ruínas, e no Febre Amarela consolidava a defesa coletiva do patrimônio, no campo jurídico ele atuava com a mesma lógica: recompor aquilo que havia sido corrompido. Sua caneta, neste caso, não traçava projetos arquitetônicos, mas petições judiciais. Cada ação popular movida contra contratos suspeitos, licitações manipuladas ou concessões irregulares era um gesto de restauro — não do espaço físico, mas da própria legalidade da cidade.
Entre os processos emblemáticos estão as ações contra ex-prefeitos de Campinas, contra contratos administrativos e contra o consórcio Ecocamp, responsável pela coleta de lixo urbano. Nessas disputas, Toninho não buscava ganhos individuais: buscava devolver à cidade o que lhe havia sido usurpado pelo conluio entre empreiteiras e poder público. Era o mesmo princípio que orientava seu trabalho nas favelas ou no patrimônio histórico: enfrentar a lógica de mercantilização da vida urbana e reerguer o valor de uso sobre o valor de troca.
Essas ações populares funcionaram como restauro jurídico da cidade. Assim como se consolidava uma ruína para que não se desmanchasse, Toninho acionava a lei para impedir que o tecido institucional se desfizesse. As sentenças, mesmo quando arrastadas por anos, permaneceram como ruínas ativas: registros de resistência contra a privatização abusiva do espaço urbano e contra a captura do orçamento público.
O silêncio da cidade, nesse caso, era o da corrupção naturalizada. Toninho o quebrou com a caneta: inscreveu no espaço jurídico da cidade um conjunto de gestos que prolongaram sua luta para além da sua morte. Cada processo permaneceu como documento e como cicatriz, testemunhando que o restauro pode também ser uma prática legal, uma recomposição da moralidade administrativa e do bem comum.
Gestão Municipal: O Restauro como Projeto de Cidade
A eleição de Toninho à Prefeitura de Campinas, em 2000, não foi ruptura de percurso, mas desdobramento natural de uma vida dedicada a restaurar. Ali, o que antes se manifestava em ruínas resgatadas, favelas urbanizadas, tombamentos conquistados e ações populares, convergiu em escala maior: a política pública. O restauro, antes gesto localizado, tornou-se princípio de governo.
Sua gestão enfrentou a financeirização do espaço urbano e os contratos leoninos que drenavam recursos da cidade. Toninho reduziu significativamente gastos com serviços públicos, contestou monopólios e desfez práticas enraizadas de corrupção. Esse ato não foi apenas administrativo: foi arquitetônico em outro plano. Como quem recompõe um edifício, ele procurava recompor a cidade — retirar detritos, expor cicatrizes, devolver integridade às estruturas.
No centro histórico, sua visão era clara: resistir ao abandono e reinserir o espaço popular como parte viva da cidade. O restauro não se restringia a edifícios; incluía a recuperação de ruas, praças e vínculos simbólicos. Era uma política de reconexão, que reconhecia o espaço urbano como guardião de memórias e como fundamento de justiça social.
O prefeito-arquiteto não separava plano de projeto, nem gestão de ética. Cada ato administrativo era extensão do mesmo gesto que antes firmava tombamentos ou desenhava reforços metálicos na Casa Grande e Tulha. Sua caneta, agora instrumento de governo, continuava a inscrever resistências no tecido da cidade.
Esse percurso faz compreender por que sua trajetória incomodou interesses estabelecidos. Restaurar, em seu sentido mais profundo, era devolver à cidade sua densidade histórica, seu valor de uso, sua dimensão comum. E foi precisamente contra esse restauro ampliado que se ergueram as forças que, em setembro de 2001, impuseram-lhe o silêncio.
A Caneta, o Silêncio e o Espaço
Ao longo de sua trajetória, Toninho fez do restauro um método transversal: arquitetônico na Casa Grande e Tulha, social no Ato de Morar, coletivo no Febre Amarela, jurídico nas ações populares, político em sua gestão municipal. Em todos os casos, o núcleo teórico que sustentava esse gesto era o espaço.
Na tradição crítica de Argan, desde Brunelleschi e Alberti, o espaço é mais que cenário: é categoria estética, construção da visibilidade e da experiência. Em Toninho, essa noção ganha densidade política. O espaço é guardião da memória — ruínas, bairros populares, praças, edifícios e o complexo ferroviário —, mas também é campo de disputa, onde se joga o destino da cidade entre valor de uso e valor de troca. Restaurar o espaço, portanto, é restaurar a possibilidade de justiça urbana.
Sua caneta inscreveu esse princípio em múltiplos planos: no traço do projeto, na assinatura do tombamento, na petição judicial, na lei municipal. O silêncio imposto por sua morte buscou interromper esse percurso, mas o espaço — guardião das marcas e das permanências — impede o apagamento completo. Cada cicatriz reaberta, cada ruína reinscrita, cada sentença prolongada, cada praça reocupada mantém sua voz.
Escrever hoje sobre Toninho é enfrentar esse silêncio com a mesma ferramenta que ele usou: transformar o espaço em campo de memória ativa. É um restauro literário e político, onde a caneta reinscreve o que tentaram apagar e o espaço, guardião incômodo, devolve à cidade sua história. Assim, a obra e a vida de Antonio da Costa Santos permanecem como horizonte: restaurar não é voltar ao passado, mas reerguer o presente à altura da dignidade que ele exige.
O Espaço como Guardião: Contra a Ideia de Vazio
No senso comum, o espaço costuma ser reduzido à condição de vazio — um intervalo entre construções, um palco neutro onde a vida urbana acontece. Essa visão empobrece a arquitetura e o urbanismo, pois dissocia a forma da experiência e ignora que cada praça, rua ou edifício carrega camadas de tempo. Para Antonio da Costa Santos, como para a tradição crítica que o precede, o espaço nunca é ausência: é presença densa, guardião da memória e campo de disputa.
Giulio Carlo Argan já havia apontado que, desde Brunelleschi e Alberti, o espaço se tornou categoria estética, produto consciente da invenção artística e da perspectiva. O espaço moderno não é palco, mas construção ativa da visibilidade. Jacques Le Goff, por sua vez, mostrou que a memória coletiva não se aloja apenas em textos ou documentos, mas em suportes concretos — e o espaço urbano é um dos principais. Destruir uma praça ou demolir um quarteirão não significa apenas eliminar formas: significa violentar a memória inscrita no território.
Aby Warburg ampliou ainda mais essa reflexão, ao revelar como as imagens e os gestos sobrevivem no tempo por meio de fórmulas de pathos. O espaço, nesse registro, não é neutro, mas mnemônico: carrega intensidades, gestos, sobrevivências que persistem mesmo quando as formas são transformadas ou apagadas. Henri Lefebvre, finalmente, articulou a noção de produção do espaço: o espaço é socialmente construído, produto de lutas, de usos e de práticas que revelam a tensão entre valor de uso e valor de troca.
Toninho compreendeu o espaço nessa chave: como guardião e como disputa. A Casa Grande e Tulha não era ruína vazia, mas condensação da origem esquecida da cidade; a favela não era “área irregular”, mas campo de enraizamento e solidariedade; o centro histórico não era decadência, mas palimpsesto vivo; até mesmo os processos judiciais se tornaram ruínas ativas, inscrições de resistência. O restauro, em cada caso, consistia em fazer o espaço falar de novo, contra o silêncio imposto pela especulação ou pela violência política.
Por isso, desbanalizar o espaço significa compreendê-lo como núcleo da arquitetura e do urbanismo. Não vazio, mas presença; não suporte neutro, mas guardião incômodo da memória; não terreno passivo, mas palco ativo de conflitos e de possibilidades. Restaurar o espaço, em Toninho, é restaurar também a própria ideia de cidade como lugar de permanências e de justiça.
(*) Luiz Cláudio Bittencourt é arquiteto urbanista
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Ensaio e texto importante para as futuras gerações por Luiz Cláudio Bittencourt