Por Silvio Queiroz (*)
Texto publicado na edição de março do Jornal Página 13
A troca de comande no Exército, a exoneração do comandante do Batalhão da Guarda Presidencial e o afastamento de um punhado de militares lotados no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), nas semanas que se seguiram à intentona golpista de 8 de janeiro, podem ter alimentado esperanças entre os que apoiamos o governo Lula. Afinal, foram iniciativas acompanhadas de posições firmes sobre a subordinação dos militares ao poder civil, segundo os cânones do Estado democrático de direito.
Sem apagar o que há de positivo nesses movimentos, é indispensável, no entanto, continuar desenvolvendo uma análise crítica sobre essa que é uma das áreas críticas para o mandato recém-iniciado. Em particular, segue no centro das atenções e preocupações a definição e a aplicação de diretrizes para o Ministério da Defesa, entregue ao ex-deputado e ex-presidente do TCU José Múcio Monteiro. A escolha, que o próprio presidente coloca como parte de sua “cota pessoal”, pode e deve ser questionada pelos que veem na relação a ser estabelecida com os quartéis um elemento decisivo para a estabilidade e o sucesso do governo – sem falar nos projetos políticos de mais longo alcance, tanto do PT quanto das demais forças de esquerda.
Muy amigo… de quem?
Antes de tudo, convém resgatar a trajetória política do ministro e seus laços com Lula e com os militares. José Múcio é egresso do finado PDS, que sucedeu a Arena como partido de sustentação do regime militar. Conquistou o primeiro mandato na Câmara pelo PFL, composto pela fração do PDS que aderiu à candidatura indireta de Tancredo Neves, em 1985. Na virada do século, migrou sucessivamente para o PSDB (2001) e o PTB (2003). Cultivou a imagem de parlamentar “moderado”, “aberto ao diálogo”, e, em 2007, chegou a ser líder do governo Lula, ao qual serviu também como ministro de Relações Institucionais.
De volta ao Planalto, o presidente sustentou a nomeação do titular da Defesa, contestado no campo da esquerda e dentro do próprio partido, em nome da “confiança” e da “amizade”. A verdade, porém, é que pesou consideravelmente na decisão um fator que é chave para compreender a atuação do ministro nos acontecimentos que culminaram com o 8 de janeiro: José Múcio tinha o aval dos comandantes militares. Os mesmos que anteciparam a entrega do posto como gesto de lealdade ao cavernícola e desacato ao sucessor eleito. Os mesmos que afirmaram e reiteraram, em seguidas notas próprias ou conjuntas, de teor ao menos suspeito aos olhos da lei, a bênção das Forças Armadas aos golpistas acampados às portas dos principais quartéis do país desde o anúncio da vitória de Lula no segundo turno, em 31 de outubro. Também José Múcio, por sinal, referiu-se aos acampamentos como “manifestação democrática”, e reconheceu “parentes e amigos” entre os participantes.
É fundamental, imperioso mesmo, observar aqui que tanto o ministro quanto os comandantes militares recém-empossados mantiveram silêncio eloquente na tarde em que a horda bolsonarista invadiu e depredou as sedes dos três Poderes. Naquele momento, quando se configurava uma ameaça clara e direta aos poderes constitucionais e à ordem pública, o que se conhece sobre a atitude dos generais, almirantes e brigadeiros é o relato de bastidores feito posteriormente pelo ministro da Justiça, Flavio Dino. Ofereceram-se ao presidente para executar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem, a malfadada GLO, prevista no igualmente malfadado artigo 142 da Constituição – aquele que define como finalidade das Forças Armadas, entre outras, a “garantia dos poderes constitucionais” e, “por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Quanto ao ministro José Múcio, consta que teria se prestado ao papel de um menino de recados, levando ao chefe do Executivo a proposta indecente.
O próprio Lula encarregou-se de esclarecer, em entrevista coletiva, como e por que recusou a GLO. Quem esteve no centro de decisões no momento acrescenta que o presidente repreendeu duramente o ministro da Defesa, embora tenha se empenhado em reiterar sua confiança nele, quando se manifestou em público. O aspecto central do episódio, no que diz respeito à esfinge representada pela relação entre o poder civil e a caserna em mais um governo comandado pelo PT, é que a equação segue irresolvida: o Ministério da Defesa encarrega os comandantes das Forças Armadas de levar à prática as diretrizes traçadas pelo presidente, seu comandante-em-chefe? Ou, ao contrário, se reporta ao presidente como um representante do estamento militar no centro do Poder Executivo?
Um à frente, dois atrás
Recapitulando brevemente, o Ministério da Defesa foi instituído em 1995, no primeiro governo de Fernando Henrique, e estabelecido efetivamente quatro anos mais tarde. Desde então, sucederam-se no cargo políticos de diferentes extrações, até o último ano do mandato-tampão de Michel Temer, quando teve início uma sequência de generais que persistiu nos quatro anos do inominável. Nos mandatos de Lula e Dilma, entre 2003 e 2016, tivemos titulares como o diplomata José Viegas, o parlamentar petista Jacques Wagner e até mesmo o hoje ex-comunista Aldo Rebelo, bem como o embaixador Celso Amorim, escalado para o segundo período de Dilma depois de ter chefiado por oito anos o Itamaraty, com Lula no Planalto.
O número de ministros e os períodos relativamente curtos de gestão ilustram a dificuldade para fazer valer o papel destinado ao Ministério – precisamente o de exercer na prática a subordinação dos militares ao poder civil. Igualmente, se destaca a exceção à regra: o ministro que por mais tempo se manteve no cargo, a ponto de transitar entre os governos de Lula e Dilma, foi o veterano parlamentar do PMDB e ex-presidente do Supremo Nelson Jobim. Como nenhum antecessor ou sucessor, ele encontrou a fórmula do elixir para a vida longa no posto: ser a correia de transmissão da caserna operando no Executivo, oferecendo em troca uma aparente “paz republicana” e a discrição necessária para não expor publicamente a relação distorcida.
Em resumo, ao longo dessas três décadas quase completas, a caminhada para o estabelecimento do Ministério da Defesa como agente de uma relação hierárquica e subordinativa entre o poder civil e os militares faz lembrar o título de uma obra célebre de Vladimir Lênin: ‘Um passo em frente, dois passos atrás’.
A espada e a lei
Resolver a equação do ponto de vista de um projeto político democrático-popular requer, como premissa, o enfrentamento daquele que é hoje o nó cego no qual se assenta a tutela militar sobre a sociedade civil. Trata-se do referido artigo 142 da Constituição de 1988, dita “cidadã”. Não por acaso, ele e a GLO compunham o refrão do samba-enredo entoado pelos golpistas aquartelados por dois meses sob a proteção do “braço forte, mão amiga”. O texto ambíguo negociado entre os constituintes, sob a espada de Dâmocles dos comandantes militares de então, dá asas à imaginação cultivada por gerações de fardados desde o golpe que instaurou a República, em 1889.
É sintomático que, em uma das notas conjuntas com as quais se imiscuíram no processo eleitoral, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica fizeram referência a um suposto “papel moderador” que as Forças Armadas se atribuem ao longo da história. A escolha das palavras remete à aberração inserida pelo imperador Pedro I na Constituição que outorgou em 1824, depois de dissolver a Assembleia Constituinte. Lá, o texto delega ao monarca um quarto elemento, o Poder Moderador, estranho e superior à divisão tripartite do modelo republicano clássico entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Foi, no entanto, no reinado de Pedro II que começou a tomar forma o Exército, em um processo que permite entrever as raízes profundas da mentalidade cultivada até o presente na formação da tropa. Primeiro, foram sufocadas a ferro e fogo as rebeliões populares contra o poder central: a Cabanagem, no Pará; a Balaiada, no Maranhão; a Sabinada, na Bahia; e a Farroupilha, no Sul. Em seguida, sempre sob o rebenque do duque de Caxias, hoje seu patrono, o Exército perpetrou o genocídio na Guerra do Paraguai. Foi essa corporação, armada com essa doutrina de “destino manifesto”, que consumou a remoção do monarca e instaurou uma república comandada inicialmente pelos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
Dali para a frente, vale a máxima sugerida de maneira inocente pelo título dado no Brasil a um desenho animado sobre o mito do rei Artur: muitas vezes, como é o caso por aqui, a espada é a lei. Mesmo quando o fizeram com sentido progressista, como no movimento tenentista, que em 1930 pôs fim à república das oligarquias rurais, as Forças Armadas intervieram na vida política sempre com o propósito de tutelar a sociedade. O enredo foi reencenado, com personagens e tramas distintas, em 1945, 1954 e 1964, para ficar apenas nos episódios mais eloquentes. Assim como volta à cena nos dias de hoje, estrelado (com o perdão do trocadilho) por um elenco de generais que compôs a coluna vertebral do bolsonarismo.
Como aponta o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, uma rara voz crítica nas fileiras, e por isso mesmo sujeito a perseguição incessante, trata-se de contemporâneos e colegas de turma do capitão defenestrado por terrorista e, oportunamente, guindado à Presidência – com a retaguarda dos colegas e os préstimos da Lava Jato. Marcelo Pimentel destaca, entre outros: o atual senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão; o golpista de pijama Villas Bôas; o ex-ministro da Defesa e da Casa Civil (?!) e candidato derrotado a vice em 2022, Walter Braga Netto. Assim como Bolsonaro, são oficiais formados na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), no fim dos anos 70, segundo a mesma doutrina ministrada aos cadetes desde o pós-Segunda Guerra.
“Inimigo interno”
Depois de ter lutado ao lado dos EUA na ofensiva final contra a Alemanha nazista, o Exército Brasileiro alinhou-se à estratégia do imperialismo norte-americano para enfrentar a ascensão da União Soviética, nos marcos da Guerra Fria. Toda a cadeia de formação militar, da Aman à Escola Superior de Guerra (ESG, hoje rebatizada como “de Defesa”), passando pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme, escala obrigatória para o generalato), incorporou a chamada Doutrina da Segurança Nacional. Ela situa o país ao lado das “democracias ocidentais” contra a “agressão comunista” e cria a categoria do “inimigo interno” – um guarda-chuva sob o qual se rotulam como alvos partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais.
É sobre essa base que continuam a ser formados os oficiais das três Forças, mesmo passados mais de 30 anos desde o fim da ditadura e da própria Guerra Fria. Isso explica, em boa parte, a adesão maciça dos quartéis ao bolsonarismo, ou, como prefere Marcelo Pimentel, ao que ele chama de “partido militar”. Ao contrário de momentos como o golpe de 1964, não se verifica hoje nenhuma brecha significativa entre o alto oficialato e as baixas patentes. Muito menos sobrevivem nichos democratas entre os escalões intermediários ou superiores – como demonstra bem a exceção representada pelo “nosso” coronel.
Esse quadro delimita o alcance de outra tarefa incontornável para qualquer projeto democrático-popular, no que diz respeito às Forças Armadas. Renovar os comandos é essencial e urgente, mas não basta para avançar de maneira significativa na redefinição de sua relação com o poder civil. Reformular as doutrinas e os currículos de formação dos oficiais é missão de longo prazo, e por isso mesmo é indispensável dar os primeiros passos, sem os quais será postergada eternamente a construção de uma nova mentalidade nos quartéis, democrática e verdadeiramente republicana, na qual a sociedade seja vista não como “inimigo interno” ou como um ente incapaz a ser tutelado.
Novos horizontes
A derrota da intentona de 8 de janeiro e a troca de comando no Exército, ainda que insuficientes, abriram caminho para uma oportuna reorientação de atividades. Ao fim de dois meses hospedando e dando escudo aos golpistas, os militares foram empenhados em ações como o resgate e a assistência aos yanomamis. Têm outro cenário adequado às suas missões nas operações de emergência – inclusive de engenharia – destinadas a socorrer as áreas do litoral paulista assoladas pelas chuvas torrenciais de fevereiro. Coordenar e dirigir politicamente esse tipo de empreitada é o que se espera, aliás, do ministro da Defesa.
São muito mais amplos e profundos, no entanto, os desafios colocados nesse terreno para o governo Lula. Desde logo, deve partir do Executivo, do poder civil – e não do comando militar –, a iniciativa de traçar uma estratégia para a retomada de programas essenciais para a capacitação das Forças Armadas. Entre eles, se destacam o projeto do submarino nuclear, peça-chave para a defesa do extenso litoral brasileiro, particularmente do pré-sal. Em relação à Força Aérea, o foco deve estar no desenvolvimento do programa dos novos caças, os Gripen, um longo processo iniciado ainda por FHC, mas concluído apenas no governo Dilma. As primeiras unidades recém entraram em operação, mas o acordo firmado com a Suécia prevê a capacitação do país para produzir novas unidades, com transferência de tecnologia, o que tem potencial para revigorar a indústria aeronáutica, afetada pelo sucateamento e privatização da Embraer e pelo abandono da Avibrás – em ambos os casos, com impacto direto para milhares de trabalhadores.
Esse horizonte descortina outra dimensão estratégica para a política de defesa a ser elaborada e implementada pelo governo Lula o quanto antes. Com o planeta assombrado pela ameaça de uma guerra mundial de novo tipo, como se insinua no conflito que opõe a Otan à Rússia na Ucrânia, a retomada da política externa ativa e altiva, linha-mestra proclamada por Lula e pelo assessor especial Celso Amorim, requer uma orientação consistente para a reconstrução da nossa indústria de defesa. Afora o significado direto para a modernização e o reequipamento das Forças Armadas, tal passo pode se constituir em um dos motores e vetores para a almejada reindustrialização, um dos alicerces para a retomada de um ciclo virtuoso na economia. Sem falar no impacto para a ciência/tecnologia, e por tabela para a educação, com o incremento da pesquisa e da engenharia.
A discussão sobre a indústria de defesa, no entanto, passa obrigatoriamente pela definição de metas, métodos e propósitos. A mesma conjuntura internacional que propicia ou mesmo exige esse movimento esconde armadilhas para as quais um governo democrático-popular deve estar alerta. Não interessa ao nosso projeto uma estratégia que aponte para o país a busca de posições no mercado global de armas, por mais que ele se apresente como tentador, pelos valores que movimenta. Um exemplo recente ilustra esse dilema: na visita que fez a Brasília, no fim de janeiro, o chanceler (chefe de governo) da Alemanha, Olaf Scholz, pressionou Lula a fornecer à Ucrânia munição de combate para os tanques com que a Otan decidiu equipar as forças de Kiev. O pragmatismo sem princípios recomendaria fechar negócios independentemente dos desdobramentos possíveis. Atender cegamente ao apelo, porém, tende a comprometer a política externa como formulada pelo Planalto e pelo Itamaraty.
A receita para combinar o impulso à indústria de defesa com os objetivos da diplomacia pode estar embutida em uma das vigas-mestras da política externa traçada para o governo: a integração regional. Na fase inicial de criação da Unasul, no governo Lula, um passo decisivo para a consolidação do projeto foi a instituição do Conselho de Defesa sul-americano. Como consequência imediata, ele atrelou à organização a Colômbia, então governada pelo neofascista Álvaro Uribe, e fechou espaços para a intromissão ianque em temas como o conflito interno colombiano e as crises provocadas por Uribe com a Venezuela de Hugo Chávez.
Mais para além, entretanto, o Conselho contemplava a perspectiva de integração e articulação entre as indústrias de defesa dos países-membros. A experiência da integração europeia demonstra as possibilidades – e, naturalmente, também os desafios – que o desenvolvimento conjunto do setor bélico pode oferecer a cada um dos integrantes. Possibilita explorar complementaridades e distribuir tarefas e etapas dos processos de maneira a fomentar, de maneira planejada, as atividades mais adequadas a cada um. Em sentido mais estratégico, aponta para o fortalecimento coletivo da região, em harmonia com balizas como a multipolaridade e a interdependência. No horizonte doméstico e imediato, pode funcionar como uma espécie de “isca” para atrair os comandos militares e neutralizar resistências ao campo democrático-popular.
Esse panorama mais abrangente e alongado das incógnitas que pontuam nossa estratégia para a pasta da Defesa remete de volta à questão inicial proposta: José Múcio Monteiro tem o perfil e o escopo requeridos para atuar realmente como o responsável por interpretar a orientação política e traduzi-la em diretrizes de operação para o comando das Forças Armadas? Reúne vontade e condições políticas para cumprir essa função?
Para romper o círculo vicioso de limitar-se a administrar as relações com a caserna e aplacar a vocação tutelar e golpista embebida até hoje na farda, é preciso, antes de tudo, visão de longo alcance e sagacidade para encontrar meios de abordar no presente as tarefas de ordem estrutural. Mas é igualmente indispensável a determinação de trilhar esse caminho. É esse o talhe que deve vestir o titular do Ministério da Defesa, ao contrário do se faz ao encomendar um terno sob medida: aqui, é o alfaiate quem determina as medidas do cliente.
(*) Silvio Queiroz é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e militante petista e da AE/DF.