Valter Pomar, pré-candidato a presidente do PT pela chapa “Em Tempos de Guerra, A Esperança é Vermelha”, analisa a tese apresentada pela tendência Construindo Um Novo Brasil (CNB) ao 7º Congresso do PT. Texto publicado originalmente no blog pessoal de Valter Pomar.
Análise sobre a tese da CNB
Parte 1
Nove chapas se inscreveram para disputar a eleição de delegados/as ao 7o. Congresso Nacional do PT.
O regulamento do Congresso determinava que cada tese devia apresentar uma tese com no máximo 20 mil caracteres.
Oito chapas cumpriram o determinado. Uma descumpriu e apresentou uma tese com 100 mil caracteres.
Quem é do ramo, sabe: é mais fácil escrever muito do que pouco. Escrever pouco exige capacidade de síntese e definir prioridades. O oposto da embromação.
A tese de 100 mil caracteres foi inscrita por Luiz Soares Dulci, em nome da Coordenação Nacional da CNB (Construindo um novo Brasil). Grupo que hoje controla mais de 40% do Diretório Nacional do PT.
Isto justifica que se estude com cuidado o que a tese afirma, ao longo de 8 capítulos, intitulados:
1. ANÁLISE DE CONJUNTURA INTERNACIONAL: AMÉRICA LATINA E O MUNDO NO SECULO XXI
2. CONJUNTURA NACIONAL E ESTRATÉGIA: RESISTIR AO AUTORITARISMO NEOLIBERAL E CONSTRUIR A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR
3. LULA LIVRE: URGÊNCIA DEMOCRÁTICA E LUTA DE NOSSO POVO!
4. ELEMENTOS DE UMA PLATAFORMA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM JUSTIÇA SOCIAL
5. Violência e resistência nas periferias
6. O governo Bolsonaro e o direitos das maiorias
7. As eleições para prefeitos(as) e vereadores(as) em 2020.
8. ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA
Dada a extensão do texto, a análise do que propõe o grupo atualmente majoritário no DN do PT será feita em capítulos.
Parte 2
Vejamos o que diz a CNB sobre a CONJUNTURA INTERNACIONAL: AMÉRICA LATINA E O MUNDO NO SECULO XXI.
A análise da “conjuntura” tem início em… 1945, passa pela “substituição do modelo fordista” pelas “cadeias globais de produção”, desembocando na hegemonia financeira e na crise de 2008, a “maior crise econômica desde a depressão mundial dos anos 1930”, crise que “não foi totalmente superada”, com a possibilidade de “queda no crescimento do PIB mundial em 2019 e a possibilidade de início de nova recessão que o mundo estaria menos preparado para enfrentar do que a crise iniciada em 2008”.
A análise destaca, também, “a passagem de um mundo bipolar, marcado pela presença dos campos capitalista e socialista, para um mundo unipolar sob a hegemonia imperial estadunidense num primeiro momento, embora a atualidade aponte para o surgimento de um sistema multipolar ainda em processo de consolidação”.
E salienta que o “quadro internacional de profundas transformações se completou com a crise da democracia liberal” (…) “assistimos desde o final do século XX à uma regressão na qualidade da democracia em função da ascensão da extrema direita que hoje chegou ao poder pela via eleitoral em vários países”.
O texto afirma, ainda, que “a tática para promover mudanças de regime (regime change) atualmente é a chamada “guerra híbrida”.
E qual a conclusão que se tira destas análises, em termos de estratégia política?
Diz a tese: “No seu conjunto esses fenômenos, todos de caráter regressivo, geraram um novo período histórico, com uma correlação desfavorável para as classes trabalhadoras dentro de cada país, particularmente para os países do Sul do mundo e a América Latina”.
Diz também: “a direita tende a blindar-se autoritariamente nos governos, buscando impedir o retorno democrático da esquerda. As eleições de outubro na Argentina, Bolívia e Uruguai serão uma prova da capacidade da direita para se manter no governo no caso argentino ou para seguir desalojando a esquerda do governo no caso boliviano e uruguaio. É um processo aberto, inclusive no Brasil. Não está definido que a direita, de volta ao governo, consiga manter-se e a Argentina pode ser a prova disso. Nem que a esquerda consiga retornar ao governo. É uma disputa aberta onde o Brasil é um caso estratégico, pelo peso que tem o país e que tem uma esquerda relevante, além da liderança do Lula”.
No plano mundial, “as turbulências também tendem a se prolongar. A decadência relativa da hegemonia estadunidense não permite prever seu fim”.
Sendo o período histórico atual caracterizado por uma disputa de hegemonia, porque o modelo adotado pelo capitalismo neoliberal, embora ainda mais radical do que no período anterior e apesar da crise da democracia liberal, não tem poder absoluto e precisa assim buscar mecanismos cada vez mais autoritários para implementar seu projeto. (…) A America Latina e, em especial, os países que já tiveram ou ainda tem governos antineoliberais, todavia, tem condições de se situar como epicentro dessa disputa hegemônica em escala mundial, pelo aprendizado adquirido durante os anos de governo, e o extraordinário legado de crescimento econômico e inclusão social que permite comparar as políticas do passado com as do presente”.
A conclusão da tese, portanto, é que estamos diante de um “processo aberto”.
Ou, como diria o Barão de Itararé, tudo pode acontecer, inclusive nada.
Nesse “processo aberto”, a direita pode fazer quase tudo; já a esquerda deve… buscar ganhar as eleições!!
Tudo muda, o mundo não é mais o mesmo, mas a estratégia proposta pela CNB segue sendo essencialmente eleitoral.
Parte 3
Vejamos o que diz a tese da CNB sobre a CONJUNTURA NACIONAL E ESTRATÉGIA: RESISTIR AO AUTORITARISMO NEOLIBERAL E CONSTRUIR A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR”.
Vimos, no capítulo anterior, que a análise da “conjuntura internacional” da CNB começa em 1945. Já a análise da conjuntura nacional começa em janeiro de 2019. Freud explica.
O texto faz um longo discurso contra o governo Bolsonaro, incluindo passagens como: “O governo, no entanto, prefere virar as costas aos problemas reais do país, mesmo que estejam causando grande sofrimento popular, para apostar em uma verdadeira guerra ideológica e pretensamente moral, criando um clima artificial de intolerância e violência contra todos os que se mobilizam em defesa da legalidade democrática, dos direitos dos trabalhadores e dos pobres e do respeito à diversidade: negros, mulheres, comunidade LGBT, entre outros.”
A retórica parlamentar do texto da CNB confunde as coisas. O “clima” de violência não é “artificial”: está em curso uma guerra contra o povo. E o governo promove esta guerra para implantar seu programa. Ele “prefere” fazer isto, porque é através da intimidação que ele paralisa seus opositores.
Ao adotar um estilo de discurso-denúncia, o texto subestima a força do inimigo; por exemplo não percebe que, para as elites, o “fracasso” do governo Bolsonaro na área econômica não é “evidente”. As elites apoiam o governo exatamente porque ele promove com altíssimo nível de desemprego e queda na renda dos trabalhadores”. As elites não se preocupam com a difícil situação “do mercado interno”, ainda que este represente 80% da economia brasileira.
A tese da CNB critica o “descompromisso do governo com as instituições e os métodos democráticos”. A expressão “descompromisso” é evidentemente inadequada, pois logo em seguida se afirma que o Brasil está “em uma assustadora marcha para o Estado Policial. A verdade é que os comportamentos abertamente fascistas estão se tornando a regra do governo Bolsonaro e dos grupos de extrema direita que o apoiam, pondo em risco o que ainda existe de Estado de Direito em nosso país”.
Nesse contexto, qual deve ser a estratégia do PT?
Segundo a tese da CNB, “deve ser ao mesmo tempo de resistência ao projeto destrutivo do governo Bolsonaro e de acumulação de forças para que o Brasil possa retornar o mais rápido possível o caminho da transformação social”.
De um lado, “barrar as políticas regressivas da extrema direita”; de outro lado, é preciso “propor ao país, e trabalhar para que ela alcance progressivamente o mais amplo respaldo social e político, uma alternativa progressista consistente ao desastre civilizatório que é o governo Bolsonaro”.
E qual seria o conteúdo dessa “alternativa progressista” que será construída “progressivamente”?
Ela deve ser “baseada em uma Plataforma de medidas emergenciais e estruturais capazes de tirar o país da crise e recolocá-lo no caminho do verdadeiro desenvolvimento”, com “independência nacional, crescimento econômico, geração de empregos, distribuição de renda, inclusão social e vigoroso combate às mais diversas discriminações”.
Além disso, a Plataforma de medidas emergenciais deve dar “a devida centralidade às reformas imprescindíveis para que o Brasil se torne de fato mais democrático, mais próspero e menos desigual: a Reforma do Estado, a Reforma Política, a Reforma Tributária, a reforma dos Sistemas de Comunicações, a Reforma Agrária e a Reforma Urbana, entre outras”.
Como se não bastasse, a plataforma “emergencial” deve ser elaborada “a partir do Programa Democrático Popular – que conserva toda sua pertinência e forte sentido emancipatório – , no qual inspirou-se o nosso programa presidencial de 2018, e que pode e deve ser enriquecido no diálogo com os partidos aliados, os movimentos sociais e o conjunto da opinião pública democrática”.
E, quase calando quem acusa a CNB de moderação programática, a tese afirma que o nosso “Programa Democrático Popular, de reformas estruturais para o país, se articula do ponto de vista estratégico com o projeto histórico do Socialismo Democrático, o “Socialismo Petista”, reafirmado e consolidado ao longo de toda a trajetória do PT”.
Sendo que o socialismo é tudo de bom: “construir, com o apoio das maiorias populares, uma nova sociedade livre, plural e solidária, uma sociedade em que o direito à vida não seja objeto de compra e venda, em que o direito à felicidade não seja uma mercadoria à qual poucos tem acesso e tantos não, em que milhões de seres humanos não sejam condenados à miséria, à fome, à morte para satisfazer a ganância de lucro, o luxo e o desperdício de uma minoria de privilegiados. Uma sociedade que não seja, pela sua própria lógica, como é a sociedade capitalista, injusta, excludente, discriminatória, marginalizadora. Uma sociedade de fato sustentável, fruto de uma nova relação com a natureza. Uma sociedade humanista em que a liberdade e a igualdade de direitos não sejam uma ficção. Uma sociedade, enfim, que seja não só materialmente mais justa, mas também ética e culturalmente superior”.
Evidentemente a tese da CNB não explica por qual motivo não tentamos realizar as reformas estruturais entre 2003 e 2016; nem explica por quais motivos, naquele mesmo período, o “socialismo” perdeu tanto espaço nas formulações, preocupações e ações práticas do Partido e de seus mandatos.
Seja como for, depois da supracitada radical afirmação de princípios, a tese da CNB afirma que “para barrar a ofensiva reacionária do governo Bolsonaro e das oligarquias dominantes, o PT deve continuar empenhado em construir a unidade das forças progressistas tanto no parlamento quanto na sociedade”.
Sendo necessária a “atuação conjunta das bancadas progressistas na Câmara e no Senado” e a “aliança entre os governadores progressistas”. E também “continuar apoiando e fortalecendo a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo”. E a “unidade dos partidos e dos movimentos progressistas”.
A tese da CNB usa e abusa do termo “progressista”, adotado tanto para denominar o programa alternativo de reformas democrático popular articulado com o socialismo; quanto para falar das alianças imediatas contra Bolsonaro.
E como se não bastasse, a tese da CNB esclarece que “não há contradição entre consolidar a unidade dos progressistas e, ao mesmo tempo, buscar alianças mais amplas, até com personalidades e setores de centro, em prol do Estado de Direito e de outras causas que extrapolam o campo das esquerdas”.
No papel pode não haver contradição. Mas basta lembrar da luta pela liberdade de Lula, para perceber que, entre os progressistas e setores de centro, não é consenso que Lula livre seja “crucial para a recuperação da plena democracia no país”.
A elasticidade atribuída ao termo “progressista” acaba por tornar desnecessário o uso da clássica expressão “unidade da esquerda”. Assim, a antiga estratégia de centro-esquerda converte-se numa “unidade dos progressistas” & “alianças mais amplas com setores de centro”.
A isso se agrega a “estratégia da maioria”.
A saber: “tanto na resistência ao governo de extrema direita, cujo instrumento decisivo é a mobilização massiva da sociedade, sem prejuízo da batalha institucional, quanto na acumulação de forças para retomarmos nosso projeto transformador, o PT deve reafirmar a sua estratégia de maioria, um dos elementos-chave (desde o “Manifesto de Fundação”) do ideário do partido, e dela extrair as necessárias consequências políticas e organizativas”.
E o que seria está “estratégia de maioria”?
A tese da CNB explica assim: “Trata-se de construir uma maioria consistente na sociedade – que não seja apenas eventual, conjuntural, mas que se afirme como verdadeira hegemonia democrática de ideias e valores – se queremos chegar novamente ao governo federal com efetiva sustentação para promover as mudanças imediatas e históricas que são a própria razão de ser do PT.”
Ou seja: não se trata —como defende a esquerda do Partido — de construir uma nova estratégia; tratar-se-ia isto sim de “reafirmar” uma “estratégia de maioria” que (supostamente) o PT defenderia desde 1980.
(Aqui um p.s.: recomendamos aos curiosos que leiam as resoluções do PT entre 1980 e 1987 e se busque onde estaria a tal “estratégia da maioria”.)
E como esta “estratégia de maioria” visa “chegar novamente ao governo federal”, trata-se no final das contas de construir uma “maioria” eleitoral.
Não uma maioria eleitoral petista ou de esquerda. O objetivo proposto pela CNB é fazer com que “o PT e os partidos progressistas voltem a ser maioria”.
E para isso, “além de consolidar o apoio daqueles 47 milhões que votaram em nós, (…) precisamos também trabalhar para reconquistar aqueles setores sociais – especialmente das classes populares – que nos apoiaram em 2002, 2006, 2010 e 2014, e foram decisivos para que ganhássemos as quatro eleições e pudéssemos governar o país, e que se afastaram de nós no último período, por uma razão ou por outra, acabando por votar no candidato da extrema direita”.
Infelizmente a tese da CNB não arrisca explicar por quais motivos perdemos o apoio daqueles setores sociais.
Seja como for, através de deslizamentos sucessivos, o nobre objetivo de construir uma “verdadeira hegemonia democrática de ideias e valores” é reduzido pela tese da CNB à construção de uma maioria eleitoral.
Evidentemente saudamos a intenção de reconquistar os apoios perdidos na classe trabalhadora. Mas a maneira como a tese da CNB aborda o problema nos mantém prisioneiros de uma “estratégia eleitoral”, que já demonstrou ser insuficiente, seja para transformar as estruturas do país, seja para nos defender da ofensiva reacionária, seja para avançar em direção ao socialismo.
Parte 4
A tese da CNB conclui sua análise da conjuntura nacional dizendo que a eleição presidencial de 2018 foi “manchada”.
A resistência em chamar as coisas por seu nome (o que ocorreu em 2018 foi uma grande fraude) se repete no item seguinte da tese: LULA LIVRE: URGÊNCIA DEMOCRÁTICA E LUTA DE NOSSO POVO!
Lá se diz que a “Lava Jato não surgiu em um vácuo político preenchido pelo voluntarismo de seus agentes diretos, ela é fruto de uma conjuntura à qual favoreceu e pela qual foi favorecida”.
Se diz, também que a “hipertrofia do Poder Judiciário, moralmente avalizada pelo discurso do combate à corrupção e que vinha sendo gestada há pelo menos uma década, pavimentou o caminho ao poder de um projeto autoritário, obscurantista e neoliberal”.
Mas não se diz que amplos setores da esquerda, amplos setores do PT e diversas decisões de nossos governos contribuíram não apenas para tal “hipertrofia”, como também para “avalizar moralmente” a Lava Jato.
Basta lembrar o elogio feito por Fernando Haddad à Lava Jato, em pleno segundo turno das eleições presidenciais de 2018!!!
A tese da CNB pula estes “detalhes” e passa direto à uma análise das “revelações trazidas pelo site The Intercept”. Nada do que se diz a respeito é novidade.
Chama a atenção, contudo, a subestimação do problema que enfrentamos: se é verdade que a inocência do Presidente Lula fica cada vez mais comprovada, se é verdade que a aura de “combate a corrupção” da Lava Jato desmorona, também é verdade que há amplos setores da população que seguem apoiando Moro e a prisão de Lula. Assim como é verdade que a Lava Jato foi um instrumento de uma operação que contou com o apoio do conjunto da classe dominante e de seus aparatos estatais.
No que diz respeito à campanha Lula Livre, a tese da CNB reproduz posições que não vão além das resoluções já aprovadas pelo conjunto do Partido. Sendo notáveis: o silêncio acerca do Lula Livre nas eleições presidenciais de 2018 e 2022; a ausência de qualquer menção a postura de Ciro Gomes, “plano B” de tantos; e de qualquer reflexão sobre o ainda reduzido engajamento de tantos setores do PT na campanha.
Parte 5
Na reunião do DN do PT, realizada em julho de 2019, setores da CNB resistirem enfaticamente a incluir o tema “programa” na pauta oficial do 7o. Congresso. Um dos argumentos utilizados foi o de que o Partido já dispunha de um programa, inclusive aquele apresentado nas eleições presidenciais de 2018.
E, de fato, o item “ELEMENTOS DE UMA PLATAFORMA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM JUSTIÇA SOCIAL” parece copiar e colar o programa de 2018, com direito inclusive a uma nota de rodapé e a passagens cheias de lirismo tais como “Mobilidade e acessibilidade urbana: uma cidade ágil que valoriza a vida” e “Promover o diálogo federativo na construção de solução para os problemas regionais e locais”.
Grande parte dos “elementos” apresentados são consenso no Partido.
Mas é impressionante que não haja nenhuma reflexão séria acerca da insuficiência do que é proposto, frente ao retrocesso produzido desde 2016.
Por exemplo: como desmontar a institucionalidade golpista?
A tese da CNB repete algumas das posições do PT, tais como “Revogar a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017)”, Revogar a Lei 13.429/2017” e revogar a EC90.
Mas a tese da CNB não repete a posição, também adotada pelo PT, de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
Se aprovada a tese da CNB, estará legalizado o ato arbitrário cometido por Fernando Haddad durante a campanha de 2018.
E sem Constituinte, como ficam temas como o poder judiciário e as forças armadas, sobre os quais a tese da CNB nada diz?
Sem a Constituinte, como “Revogar o legado do arbítrio: medidas antinacionais e antipopulares”, como “Promover Reforma Política com Participação Popular”, como “Promover a Reforma do Estado e do Sistema de Justiça”, como “Promover a Democracia, o Pluralismo e a Diversidade na Mídia”???
Outro exemplo da insuficiência do que é proposto pela tese da CNB: como reindustrializar o país, sem estatizar empresas que foram privatizadas e sem criar novas estatais?
A tese da CNB, repetindo o programa presidencial de 2018, parece crer que basta adotar as políticas públicas certas e será possível “reverter à desindustrialização e que contribuir efetivamente com o desenvolvimento do País, de modo a distribuir seus ganhos entre toda a sociedade e posicionando o Brasil entre as principais economias industriais do planeta”.
A questão é: as indústrias capitalistas privadas realmente existentes não possuem nem a escala, nem a “disposição” de cumprir estes objetivos.
É preciso criar novas empresas, controladas pelo Estado e, em muitos casos, protegidas de uma competição internacional mais desigual do que nunca.
A ausência desta proposta na tese da CNB reflete a influência anti-estatista neoliberal, que coloca este setor do PT numa posição mais recuada do que varios governos burgueses, no Brasil e no mundo, entre 1930 e 1980. A exceção é a proposta de “controle 100% estatal da Petrobras e Eletrobrás, empresas nacionais estratégicas para o desenvolvimento nacional”.
Nesta mesma linha de “influência” alheia, chama a atenção o fato de que a tese da CNB não proponha uma política de enfrentamento à hegemonia do agronegócio. O que se propõe é “fortalecer a agricultura familiar”, objetivo compartilhado por todo o PT, mas insuficiente.
Sem falar do que faremos com o agronegócio, várias das propostas citadas (tais como “Desapropriar e destinar para a Reforma Agrária os latifúndios” e “atualizar os índices de produtividade”) terão o mesmo destino que tiveram entre 2003 e 2016.
Acrescente-se a estranha proposta de “combater a venda de terras para estrangeiros”. Combater? Por qual motivo não se fala em proibir??
Entretanto, o tema programático sobre o qual a tese da CNB deixa mais a desejar, onde existe menos reflexão séria acerca da insuficiência do que é proposto, é o que trata do setor financeiro.
A pergunta é: será possível financiar as políticas públicas, será possível implantar uma política de desenvolvimento, será possível ter governabilidade sobre a economia nacional, sem ESTATIZAR o oligopólio financeiro?
A tese da CNB parece acreditar que sim. Que basta “o fortalecimento dos bancos públicos e dos bancos de desenvolvimento nacional e regional, além de participação social na definição da regulação do sistema financeiro, visando coibir a especulação e o rentismo”.
Com dois “detalhes” muito sintomáticos: a tese da CNB não defende revogar a Lei de responsabilidade fiscal, nem fala explicitamente em acabar com a autonomia de fato do Banco Central. Novamente, a tese copia o programa de 2018, mas na versão que foi arbitrariamente cortada pelo candidato, durante a campanha eleitoral!
Sem estatizar o oligopólio financeiro, mesmo a mais radical reforma tributária (aliás, por qual motivo uma reforma radical como a proposta na tese, não foi pelo menos tentada entre 2003 e 2016???) será esterilizada.
Em resumo: os ““ELEMENTOS DE UMA PLATAFORMA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM JUSTIÇA SOCIAL” permanecem dentro dos limites do que se fez (ou do que devia ter sido feito) entre 2003 e 2014.
Neste, como nos itens já analisados, o texto da CNB é prisioneiro do passado.
Parte 6
O item mais interessante da tese da CNB é o que trata da “Violência, cultura e trabalho nas periferias no Brasil”.
Nesse item, se comemora a “mobilidade social vertical”, a transformação física e cultural das periferias do país, ao mesmo tempo que se reconhece “a elevação das taxas de homicídios e das taxas de encarceramento”.
Frente ao paradoxo, a tese da CNB busca certo consolo em um argumento bizarro, vindo de quem desde 1994 governa varios estados do país: “Em que pese tais questões serem da alçada dos governos estaduais dentro do pacto federativo, é preciso reconhecer que a contribuição do Partido dos Trabalhadores e da esquerda como um todo sempre foi muito tímida na área da segurança pública”.
Além de bizarro, trata-se de um argumento que tenta jogar luz no lugar errado. Pois o tema dos homicídios e encarceramento só pode ser compreendido a luz da luta de classes, nos marcos de um certo padrão de “mobilidade social” instalado desde 2003.
Como reconhece a própria tese da CNB, “a presença destes problemas tem perseguido outros indicadores, como as de crescimento econômico, fazendo crer que a regulação das atividades ilegais não acompanhou o que tem sido vulgarmente chamado de desenvolvimento”.
De toda forma, a tese da CNB faz bem ao apontar a questão, afirmando que nossa proposta deveria ser “a consolidação de um ciclo virtuoso de concertação dos subalternos”, buscando “nos movimentos sociais das periferias” um “caldo de cultura rico em ideias e ideais emancipatórios que pode – e deve, de acordo nossa ação – ser o cimento de um novo arranjo de lutas”.
Mas a tese alerta ser preciso “dar sentido e movimento estrutural a este amálgama de ativismos, que tem pés fincados no chão do seu cotidiano, mas que precisam voltar os olhos também para o roubo das elites aos fundos públicos e a atenção para a entrega das nossas riquezas. É necessário articular o ativismo espalhado pelo Brasil às lutas por soberania nacional, pois esta não existirá sem soberania popular. O mesmo vale para a defesa da democracia e dos direitos”.
A tese da CNB conclui usando termos que são muito utilizados por nós: “reconectar com essa nova classe trabalhadora, batalhadora, informal e precária”.
Curiosamente, o tema do crime organizado, das milícias e das igrejas pentecostais não é abordado. Como em outras questões, a tese da CNB possui lacunas muito sintomáticas e algumas vezes quase incompreensíveis.
Parte 7
A tese da CNB dedica um item para tratar do “governo Bolsonaro e o direitos das maiorias”.
O item começa com uma afirmação ousada: “a vitória da extrema direita no Brasil não foi alicerçada pela primazia do debate econômico, nem sobre as saídas para os verdadeiros problemas do povo brasileiro, aliás, não foi calcada por debate nenhum, uma vez que seu candidato não se colocou a disposição para debater, temendo que a sua carência de propostas para o país pudesse causar a sua derrota. Para ganhar as eleições, utilizou-se de uma estratégia testada nos EUA por Donald Trump, da abordagem predominante sobre valores, costumes e comportamento social através de uma bem articulada –– e frequentemente ilegal –– presença nas redes sociais, fazendo com que o debate sobre os problemas do Brasil se transformasse no debate sobre os “supostos” problemas das pessoas”.
Esta afirmação transforma parte da aparência em essência. Como classificar, por exemplo, o bordão: “com direitos mas sem empregos, sem direitos mas com empregos”? Isso é um debate “econômico” ou sobre os problemas das “pessoas”?
Talvez seja mais exato dizer que a campanha de Bolsonaro, ao estilo das campanhas da extrema direita noutras regiões do mundo, foi altamente ideologizada, polarizadora, confrontacionista. E manipulou temas com potencial de dividir é confundir a classe trabalhadora, aproveitando-se de que nestes temas a esquerda (ao contrário do que diz a tese da CNB) apresentava fissuras.
Por exemplo: interrupção da gravidez e programas educacionais que tratavam de orientação de gênero e sexual já vinham provocando divergências no PT, em bancadas parlamentares, governos e campanhas. A direita atacou pontos onde já havia fissuras.
Quem não recorda do presidente do PT SP embarcando na onda da “ideologia de gênero”?
Quem não recorda das posturas udenistas de diferentes setores da esquerda brasileira?
Quem não recorda das diferenças acerca de como tratar a ditadura e a segurança pública?
Quem não recorda das alianças entre candidaturas petistas com igrejas conservadoras?
Sem levar em consideração as diferenças pré-existentes na esquerda (e no PT), fica difícil compreender porque “ainda não conseguimos dar o embate condizente”.
Isto posto, a tese da CNB está correta ao enfatizar que estamos diante de direitos que não são de “minorias”, nem “setoriais”. Mas se acreditamos mesmo nisso, temos que repensar a lógica “setorializada” com que são manejados (vide, por exemplo, o que a tese da CNB diz sobre percentuais de emendas parlamentares etc.)); e temos que reconhecer que nossos governos não conseguiram superar grande parte dos problemas que atingem as “maiorias” de nosso país.
E como enfrentar? As propostas feitas pela tese da CNB nos parecem insuficientes, parciais ou inclusive incorretas. E citam o fato, sem oferecer uma explicação: por quais motivos outros partidos (de esquerda e mesmo de direita) estão elegendo, por exemplo, mais parlamentares negros do que nós?