Por Varlindo Nascimento (*)
Desde junho de 2013 nós brasileiros convivemos com uma série de acontecimentos que tem tragado como numa espiral o tipo de realidade a que nos acostumamos, deixando em seu lugar um “novo normal” que nos faz sentir dentro de uma distopia digna de Huxley, Orwell ou Bradbury.
Como forma de consolo ou maior desespero, esse movimento não é “privilégio” exclusivo de nós brasileiros, mas sim fruto de uma inversão na lógica de funcionamento da sociedade mundial proporcionada pela universalização do acesso à internet e pelas possibilidades que esse instrumento oferece a algumas poucas pessoas e organismos de controlar corações e mentes, sem que suas vítimas percebam qualquer nível de exercício de poder sobre suas vidas.
Recentemente foram lançados dois livros que podem nos ajudar a compreender parte das causas que nos trouxeram a realidade política na qual estamos imersos. O que é um passo importante, tendo em vista que combater um mal de forma cega tende a reforça-lo ao invés de extingui-lo.
O livro lançado em 2018, “Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes”, do analista político estadunidense Andrew Korybko, aborda a questão das Revoluções Coloridas e das Guerras Não Convencionais como novos modelos de intervenção utilizados pelos Estados Unidos contra governos não alinhados a seus interesses geopolíticos. A consequência desse processo é, via de regra, a ascensão de grupos alinhados com a lógica liberal e com os interesses econômicos da grande potência imperialista. Essas duas formas de intervenção compõem a base do que define o conceito de Guerra Híbrida.
Num primeiro momento a intervenção tem um caráter intangível e ocorre através da construção de um consenso em torno de um suposto horizontalismo e apartidarismo, o que, de cara, ganha a simpatia do público geral e imobiliza ações mais enérgicas das forças de Estado estabelecidas. Esse tipo de situação caracteriza bem a reação, ou falta dela, do governo brasileiro diante das “Jornadas de Junho”, em 2013. Além do Brasil, o exemplo mais simbólico desse tipo de movimento foram as “Primaveras Árabes”, na virada do primeiro para o segundo decênio do século. Esses movimentos por aberturas democráticas e liberdades individuais tiveram como único resultado em comum a ascensão de regimes alinhados ao governo dos Estados Unidos. Nesses casos a substituição de governos não alterou as formas anteriores de relação entre Estado e sociedade.
As Guerras Não Convencionais cumprem o papel de plano B quando as Revoluções Coloridas não são suficientes para adequação desses regimes políticos. Dessa forma, o tipo de intervenção é tangível, através de aparato militar. Porém, intervenções diretas como no Vietnã, Iraque e etc., não são mais bem vistas e raramente utilizadas. As guerras por procuração acabam sendo a via preferencial, onde a potência imperialista atua financiando grupos dissidentes dentro do território alvo, tanto do ponto de vista ideológico, através dos meios de comunicação tradicionais e não tradicionais, como militar, a exemplo do caso sírio. Nesses casos, quando a ação militar acontece, o poder hegemônico já construiu o consenso geral de que aquela ação é necessária e que seria o último recurso para a preservação da paz e da democracia.
Korybko associa às Guerras Híbridas a aplicação prática da Teoria do Caos, o que é o ponto de convergência com a abordagem desenvolvida pelo conselheiro político e estrategista italiano Giuliano da Empoli em seu livro “Os Engenheiros do Caos”, lançado em 2019. Na obra o autor busca apresentar quem e por quais mecanismos esses “engenheiros” manipulam o caos social em benefício de interesses políticos, econômicos e de controle das ideias.
O surgimento na Itália do Movimento 5 Estrelas é o mais enfatizado pelo autor. A união entre uma personalidade do humor escatológico, Beppe Grillo, e um especialista na área de publicidade na internet, Gianroberto Casaleggio, virou de ponta cabeça a estrutura da organização política italiana.
Devassada moralmente pela midiática Operação Mãos Limpas (equivalente à nossa Laja-Jato), a classe política italiana deixou um vácuo propício a ascensão de oportunistas, e foi nesse vácuo que o M5S se infiltrou. Para explicar essa situação o autor cita uma passagem trazida pelo filósofo Peter Sloterdijk, em seu livro “Cólera e Tempo: Ensaio Político Psicológico”. Para ele, de tempos em tempos a sociedade tende a transbordar uma cólera acumulada por anos e anos de exploração. No século passado esse conteúdo foi canalizado e organizado pelos movimentos socialistas, proporcionando revoluções e mudanças nas relações sociais favoráveis às classes exploradas. Porém, no atual momento histórico, o novo acúmulo desse caldo colérico em transbordamento está sendo capitalizado por especialistas em algoritmos e engenheiros da mais alta tecnologia da informação. Pessoas como Casaleggio e Steve Bannon, que esteve por trás das estratégias de campanha de Donald Trump e Jair Bolsonaro, contrariam toda a lógica da política tradicional.
A base de ação desses especialistas está em, através das redes sociais, direcionar os anseios dos indivíduos para os fins que lhes interessam. Dessa forma, a verdade e a coerência no discurso se tornam prerrogativas desnecessárias. Mensagens personalizadas chegam aos indivíduos conduzindo-os às ruas sem necessariamente estarem alinhados quanto as reivindicações que realizam, e rejeitando qualquer nível de centralidade e organicidade. É na construção dessa estruturação que está baseada a propagação das hoje conhecidas “Fake News”.
Velhas táticas de mobilização de grupos também fazem parte deste cenário, na Europa principalmente, onde a questão dos imigrantes e refugiados trouxe à tona valores raciais e mitos de uma origem heroica que servem como remédio às frustrações de uma classe trabalhadora empobrecida, tal qual ocorrido no período entreguerras do século passado. Neste sentido, demagogos como Victor Orban na Hungria e, por que não, Jair Bolsonaro no Brasil, usam de termos ligados a um pseudopatriotismo como meio de falseamento da ação degradante do capital sobre a vida das pessoas, colocando-as em conflito com o elemento exógeno, que se torna o inimigo do povo original. Essa leitura abre brechas, inclusive, para a configuração de um Estado Policial, permitindo assim o exercício do controle social absoluto por esses líderes demagogos.
De modo geral, o que a leitura dessas obras deixa claro é a existência uma lógica dentro de toda a loucura que parece ter tomado conta do mundo, e essa lógica só será superada quando nós nos apropriarmos dos princípios que a regem, conduzindo nossa ação de forma efetiva e consciente enquanto classe.
(*) Varlindo Nascimento é militante petista em Recife, bacharel em Geografia, pós-graduado em Sindicalismo e Trabalho.
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Referências das obras comentadas:
KORYBKO, Andrew. Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
EMPOLI, Giuliano da. Os Engenheiros do Caos. São Paulo: Vestígio, 2019.
Referências das obras que tiveram seus autores citados:
ALDOUS, Huxley. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Globo, 2014.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2012.
SLOTERDIJK, Peter. Cólera e Tempo: Ensaio Político Psicológico. Relógio D’água, 2010.