Forças Armadas, subordinação aos EUA, democracia e realismo periférico

Por Marlon Souza (*)

O endosso que as Forças Armadas do Brasil concedem a submissão do governo Bolsonaro aos EUA, a desnacionalização das empresas públicas brasileiras, concessão de uso da Base de Alcântara aos americanos, entrega dos recursos naturais, do setor energético petroleiro e destruição da Amazônia é um debate determinante que demanda ocupar posição de destaque na cena política, sobretudo, da esquerda.

A rigor Exército, Marinha e Aeronáutica são estas algumas das mais importantes instituições da história e da contemporaneidade da República brasileira e são dignas da atribuição de todo reconhecimento e respeito. Ao mesmo tempo é necessário considerar em uma perspectiva crítica a função que estas instituições estatais desempenharam na repressão e extermínio de movimentos do seu próprio povo ao longo da História. No entanto, se pretende aqui discutir a temática a despeito das Forças Armadas para além dos estereótipos e de visões simplistas, mas refletir sobre a instrumentalidade do poder militar e sua atual participação na condução da política do Estado do Brasil.

Com o objetivo de contribuir para o adensamento e aprofundamento das discussões este artigo mobiliza e se referencia em um arcabouço teórico científico da Economia Política Internacional e das Relações Internacionais. A necessidade do desenvolvimento de conceitos basilares se dá pela constatação de que os assuntos de defesa carecem de tratamento mais aprofundado no Brasil.

Para moldura teórica de interpretação iremos empregar a teoria do Realismo Periférico para a análise sobre a atual submissão, alinhamento automático e subordinação da política externa brasileira aos interesses dos EUA e a adesão majoritária das Forças Armadas do Brasil a esta política internacional do governo Bolsonaro de destruição da soberania nacional.

Teoria do Realismo Periférico

            Os fundamentos gerais da teoria do Realismo Periférico é de responsabilidade do cientista político argentino Phd pela Universidade de Yale Carlos Escudé, hoje com 78 anos, cuja a concepção foi adotada pelo presidente Argentino Carlos Menem (1989/1999) caracterizado por abertura econômica, desregulamentação do Estado, amplo programa agressivo de privatizações das empresas públicas argentinas e da destruição da política peronista. Alguns dos analistas econômicos de maior credibilidade apontam que o resultado das privatizações de setores estratégicos promovidas por Menem é o vetor principal que hoje resulta no fato da Argentina não ter capacidade e fonte de receita própria para sair da crise econômica em que está, somado a política econômica do governo Macri.

O conceito central de Escudé explicitado em seu “Realismo Periférico: fundamentos para la nueva política exterior argentina” é de que há uma hierarquia na ordem mundial e países que não impõem “regras do jogo” pagam alto custo quando confrontam os países desenvolvidos que são os que estabelecem as regras, ou seja, os países da periferia devem se subordinar aos interesses do núcleo central do capitalismo. Do ponto de vista de observação teórica é importante assinalar que o Realismo Periférico não se manifesta apenas em uma “visão de mundo”, mas se materializa no exercício de uma política externa cuja a concepção é a de que o plano que elevará o desenvolvimento do país será atingido a partir de relações de causalidade entre os objetivos da política externa e as estratégias de atuação internacional do país definidas para a consecução destes objetivos.

A essência do programa desta política externa é de que o alinhamento automático a uma potência traria benefícios de tal patamar que levaria o país ao status dos países desenvolvidos a partir do crescimento econômico e simultaneamente a melhoria de vida da população. A lógica adotada para chegar aos objetivos é o de alinhamento e não mais de autonomia.

O desenvolvimento teórico de Escudé parte da noção de que a aplicação acrítica de teorias clássicas de relações internacionais em países subdesenvolvidos fomentavam políticas externas extremistas nestas nações. Para Escudé “as margens de ação de um Estado deveriam ser medidas em função dos custos relativos mediante o uso de uma liberdade de ação internacional ilusória”.

De acordo com a teoria do cientista político argentino “países dependentes e pouco estratégicos” – como Argentina e Brasil – “deveram abster-se de qualquer tipo de confrontação que não estivesse vinculada a assuntos materiais”. Na definição do Realismo Periférico de Escudé as políticas externa dos países subdesenvolvidos “deveriam estar definidas não somente em termos de custo e benefício, mas através de cálculos entre os custos dos ricos e dos custos eventuais de seu comportamento internacional”.

Um dos pontos mais importantes e impactantes da teoria de Escudé que se faz necessário assinalar aqui diz repeito ao desprezo a soberania nacional e a própria nação. Escudé aponta que “uma nova agenda de política exterior implicaria em concebê-la como uma política de longo prazo, independente de interesses ligados às elites nacionais e pautada explicitamente em premissas econômicas”.

Desde o início de 2019 assistimos uma mudança significativa no modelo da política externa do Brasil que se dá em termos conceituais a partir da teoria do Realismo Periférico. Os Governos Lula/Dilma tinham uma política internacional protagônica e prioritariamente de articulação e integração econômica Sul-Sul, com países latino-americanos, asiáticos e do oriente médio, com economias em desenvolvimento que colocavam o Brasil em patamar igualitário de negociação de taxas de importação e exportação, transferência de tecnologia e de ganho na balança comercial. Uma das estratégias do Realismo Periférico é tentar apagar da memória as políticas que precederam o atual governo para dar a legitimidade necessária a política externa pragmática do governo atual.

O governo Bolsonaro por sua vez passou a acreditar que os EUA seria o principal parceiro a impulsionar o seu desenvolvimento em uma relação, a priori, quase que de adesão unilateral. A boa vontade do Brasil em relação a potência norte-americana é demonstrada em inúmeros episódios de alinhamento; votos com os EUA na Assembleia Geral da ONU, assinaturas de acordos internacionais, Acordo de Salvaguardas Tecnológicos (AST) do Centro Espacial de Alcântara com os EUA assinado por Bolsonaro e Trump no dia 18 de março que permitirá aos EUA utilizarem a base de Alcântara – no Maranhão para o lançamento de foguetes e satélites, enfraquecimento das relações comerciais com parceiros econômicos tradicionais sul-americanos, hostilidade a países limítrofes e uma ruptura da agenda de tentativa de conquistar a credibilidade junto a economia internacional.

O presidente da Fundação Perseu Abramo e professor de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) em entrevista “A Esquerda” afirmou que a tese do Realismo Periférico é no governo atual muito presente e vigora nas Forças Armadas e no próprio Ministério das Relações Exteriores. Segundo Pochmann em síntese o entendimento do Realismo Periférico é de que “o Brasil não tem condições de ser protagonista da política internacional, é um país subdesenvolvido, com problemas locais e não estaria capacitado de governança para assumir algum tipo de liderança internacional”.

Pochmann descreve que “para os adeptos desta teoria, a experiência da política externa dos governos do PT teria sido um equívoco profundo, teria distanciado o Brasil dos centros desenvolvidos e, portanto, a ideia do realismo periférico estaria na ideia do Brasil aceitar esta condição que é a de ser submisso a uma superpotência, que no caso obviamente é os EUA”.

Ainda de acordo com o professor da Unicamp “segmentos militares muitos deles que integram o governo Bolsonaro compartilham de uma interpretação de que o mundo estaria na eminência de uma quarta guerra mundial, entendendo eles (os militares) que nas três outras guerras mundiais o Brasil esteve ao lado dos EUA e nesta quarta não seria o caso do Brasil estar distante dos EUA. Ou seja, a 1ª e 2ª Guerra Mundial conhecida de todos e que o Brasil fez parte, sobretudo a 2ª que para eles teria sido fundamentalmente uma guerra contra o fascismo e o nazismo. Entendem estes militares que entre 1947 e 1991 tivemos uma longa guerra chamada Guerra Fria contra o comunismo e o Brasil também esteve ao lado dos EUA. E agora a 4ª Guerra, a guerra cibernética, a guerra híbrida mundial, o Brasil teria avançado para o lado asiático, sobretudo a China, e agora (no governo Bolsonaro) estaria um movimento de aliança com os EUA”. Portanto, o que destaca Pochmann é de que esta teoria – Realismo Periférico – predominante nas Forças Armadas, em especial os setores que integram o governo Bolsonaro,  é a de submissão.

Saldo econômico da submissão

Análise do resultado destes primeiros meses do governo Bolsonaro e da sua política de subordinação aos EUA se faz ainda mais emergente no curso da divulgação da decisão da última segunda-feira (2/12) do presidente dos Estados Unidos (EUA) Donald Tramp, que em retribuição a postura de submissão do governo brasileiro anunciou sobretaxar em 25% o aço e em 10% o alumínio brasileiro em uma decisão prejudicial à relação comercial bilateral entre os dois países.

De acordo com a Associação Brasileira do Alumínio (ABAL) de janeiro a outubro 43% da produção de alumínio foi destinado a exportação para os EUA. De janeiro a outubro o total da exportação de semifaturados de aços e ferro para os EUA representa 1,2%, que corresponde a 9,5% de tudo que é exportado para os EUA no período.

Necessário destacar que a exportação de commodities é a principal receita derivada da balança comercial com os EUA, o impacto desta medida de Trump de sobretaxar o aço e o alumínio é do Brasil deixar de ser um dos principais exportadores de alumínio e aço para o EUA, queda na exportação brasileira, redução do crescimento econômico e redução de geração de empregos.

Forças Armadas, Defesa e Política Externa

Apontamentos sobre qual deveria ser o foco a ser desempenhado pelas Forças Armadas se faz necessário balizar a partir de um arcabouço teórico para se estabelecer um parâmetro a este desenvolvimento argumentativo. Primeiro é necessário considerar que o poder militar necessita de uma base material real e não apenas uma base discursiva. Em segundo lugar no que se refere ao Estado, a qualquer Estado, a força armada é indissociável do sentido de poder estatal lato sensu.

             Um dado importante a ser considerado sempre é de que diferente do que o senso comum compartilha que a América Latina é uma região fundamentalmente pacífica e sem conflitos o professor de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia David Mares em “Violent Peace: Militarized Interstate Bargaining in Latin America” registra “que entre 1884 e 1993, teriam havido 237 episódios de disputas interestatais militarizadas na região – 110 na América Central e 127 na América do Sul”. No período que vai de 1980 a 1997 – correspondente ao retorno da democracia à maioria dos Estados latino-americanos – teriam “ocorrido 52 disputas interestatais militarizadas, sendo que 16 delas ocorridas depois de 1990”, se deram entre países de regimes democráticos.

            Se esses dados estiverem corretos, é possível afirmar baseado no evento guerra/paz que o subcontinente sul-americano não é tão pacífico quanto se quer fazer pensar. Na verdade, os dados compilados por Mares indicam, segundo este cientista político,  a partir de critérios de classificação internacional que a América Latina, em geral, e a América do Sul, em particular, possuem nível de conflitividade interestatal intermediário.

            Neste aspecto – se em função desta parte da análise colocarmos de lado momentaneamente o histórico das Forças Armadas de repressão popular e intervenção na política brasileira – e observarmos objetivamente pela perspectiva da política pública e do Estado nacional brasileiro, o mais adequado em termos de governança seria priorizar a função das Forças Armadas a sua missão de defesa do território, tendo em tela o Brasil conter a maior reserva de biodiversidade e uma das maiores de petróleo do mundo.

A atual política externa brasileira tem se constituído uma ruptura com a agenda não-confrontacionista dos governo Lula/Dilma que era fundamentado na tradição da chancelaria do Brasil desde Barão do Rio Branco que sempre se valeu de um repertório de jurisdicionismo latino-americano e no soft power. A atual política externa brasileira tem sido a de enfraquecimento das relações econômicas com parceiros comerciais latino-americanos em favorecimento aos EUA.

A política dos governo Lula/Dilma foi o de integração das economias do sub-continente aprofundando o processo iniciado nos anos 90 com o Mercosul. O governo Bolsonaro tem acumulado episódio de agressões aos países do sub-continente e a aliados históricos da Europa como França e Alemanha e se indisposto com países de antigas e sólidas relações estáveis como a Palestina.

De todo modo – colocando também a parte a destemperança com que a atual política externa brasileira está sendo conduzida – uma política adequada seria retomar o que fez o governo Lula e recolocar as Forças Armadas do Brasil em destaque na conformação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) para salvaguardar a soberania e a autodeterminação dos povos da América do Sul.

Para as Forças Armadas do Brasil desempenhar um papel primordial da consolidação do CDS, da estabilidade do subcontinente e da securitização territorial é necessário retomar a política de reajuste e aumento salarial, reaparelhamento e investimento para superar a obsolescência de armas, frotas e equipamentos. Foi o Governo Lula que reestruturou o setor de Engenharia do Exército. Não há dúvida alguma que há inúmeros quadros técnicos nas Forças Armadas que contribuem significativamente para o desenvolvimento do país, inclusive alguns que ocupam pastas técnicas no atual governo Bolsonaro.

Mas no que se refere a uma estratégia que contemplasse os interesses econômicos e comerciais do Brasil e ao mesmo tempo ampliasse o poder militar da nação em uma perspectiva de fomento da estabilidade e preservação da soberania regional, um plano estratégico-militar de envergadura seria a implementação de indústria de produção conjunta de armamentos com os países sul-americanos.

Uma iniciativa desta natureza que já está prevista no CSD, se o Brasil liderar este processo iria desenvolver a indústria bélica nacional, aproximaria ainda mais os estamentos militares dos Estados sul-americanos, estreitaria o relacionamento político na região, assim como determinaria redução dos custos de aquisição de sistemas de armas. Isto resultaria na criação de um pequeno conglomerado de indústrias bélicas no subcontinente, capitaneada pelo Brasil.

É possível – a exemplo de outros países – estabelecer em acordos e contratos, inclusive, o fornecimento de modo sistemático, por parte das Forças Armadas, de material de emprego militar de segunda mão para os países de menor receita financeira da América do Sul. Uma relação militar desta característica aos Estados do CSD constituiria gesto político relevante que, no longo prazo, poderia reduzir a influência exercida pelos EUA e outras superpotências sobre os exércitos da região. Os efeitos desse tipo de parceria seriam francamente favorável à tradição da diplomacia brasileira de aumentar a coesão política e econômica sul-americana, ampliando o poder de negociação do Brasil tanto no relacionamento com seus vizinhos quanto com potências exteriores.

A todo mais é imprescindível a atualização e ampliação material bélica das Forças Armadas para que o desenvolvimento nacional possa seguir seu curso sem interferências externas cerceadoras. Da mesma forma, ele é crucial para ampliar as possibilidades de atuação internacional brasileira.

Exército Vermelho

Embora seja incidental da agenda acadêmica do Brasil há obras historiográfica – tal qual “A esquerda das Forças Armadas Brasileiras: História Oral de vida de militares nacionalistas de esquerda” – que registram a presença e a importância da esquerda nas Forças Armadas brasileiras, em especial de suboficiais, soldados de baixa patente e movimentos políticos de militares subalternos que cumpriram funções decisivas para a efetiva defesa do povo, inclusive em oposição material ao papel de opressão violenta e brutal que suas próprias instituições militares desempenhavam contra a classe trabalhadora.

No entanto, como já discorreu o professor de História Marcos Jakoby aqui mesmo neste Página 13, a tradição das Forças Armadas do Brasil é de repressão às rebeliões populares; Duque de Caxias acumula massacres às revoltas populares e regionais em sua época, como a Balaiada, no Maranhão, a própria República brasileira é proclamada por meio de um golpe militar, os dois primeiros presidentes são militares e estiveram a serviço da estabilidade ao novo regime político das oligarquias. E no curso da República Velha, o Exército cumpriu papel decisivo em atender os interesses do capital na destruição de novas revoltas populares tal qual Canudos e o capital estrangeiro no trágico episódio do Contestado no Sul do país, o golpe de 1937, o governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), que havia sido ministro de Guerra responsável por colocar o PCB na ilegalidade, como comandante do Exército esteve a frente da repressão da Intentona Comunista. Ainda mais presente é o hoje comprovado terrorismo de Estado executado a partir da ditadura militar (1964/1985).

É necessário observar com atenção que na atualidade os fenômenos políticos de ruptura da democracia e de convulsão social que ocorreram nos últimos meses de 2019 no continente, os militares tem sido partícipe, senão diretamente do golpe de estado, de forma contundente da repressão a reação popular a política econômica que está subtraindo direitos e levando a população a miserabilidade. Assim tem sido a presença dos militares no Equador, Chile e Bolívia. A sucessão de golpes é uma estratégia e uma articulação internacional da extrema-direita.

Há características comuns entre os grandes capitalistas latino-americanos; dependência e subordinação aos EUA, não estão mais dispostos a aceitar os resultados eleitorais e as regras da democracia liberal e total inclinação em subtrair as liberdades democráticas e reprimir brutalmente com a política da força estatal o povo e opositores da sua política econômica fundamentada na superexploração da classe trabalhadora.

Isto não é novo, a história dos movimentos de emancipação das colônias e de libertação nacional demonstram que com a instituição de uma crise econômica internacional os países de economia central ao terem a concorrência ameaçada pelos países da periferia do capitalismo, para salvaguardar seus investimentos e acúmulo de capital como também de uma reação hostil de resistência a exploração, o país subdesenvolvido é colocado em subjeção política em geral pelas forças militares dos governos de seus próprios países ou até mesmo, se necessário, dos países do centro do capitalismo.

A instrumentalidade do poder militar na política é vedado pela Constituição Federal. Inclusive o então constitucionalista hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moares em artigo dispôs que “A multiplicidade dos órgãos de defesa da segurança pública, pela nova Constituição, teve dupla finalidade: o atendimento aos reclamos sociais e a redução da possibilidade de intervenção das Forças Armadas na segurança interna”.

A advogada Gabriela de Sá Vara afirma que no Estado Democrático de Direito “as Forças Armadas, como parte da Administração Pública, devem ser fiéis às leis vigentes na nação, e tem o papel de proteger os direitos inseridos no ordenamento jurídico, provendo condições ao Estado para que este proteja de maneira efetiva os bens jurídicos tutelados, assim, uma intervenção militar iria totalmente contra os princípios fundamentais e condutores da organização, atentando contra o Estado Democrático de Direito, os princípios e normas constitucionais vitais, a paz e estabilidade social, os quais dita instituição tem como propósito a sua proteção”.

O cientista político norte-americano e que foi professor da Universidade de Yale Robert Dahl tem uma contribuição teórica conceitual que defini os contornos do que se entende por democracia liberal hoje. Em seu “Poliarquia: participação e oposição” dispõe que em democracias plena “os sistemas políticos competitivos dispõem de menos recursos para coagir sua população (…) e uma diversidade de limitações legais e constitucionais efetivas a coerção governamental”.

Mesmo sem uma rigorosa pesquisa quantitativa, os estudos acadêmicos apontam que ao longo de sua história as Forças Armadas brasileiras e na atualidade é a instituição e seus integrantes majoritariamente formada por conservadores, apoiadores do mercado e entreguistas. Mas ainda que minoritários também historicamente e no presente há tendência das Forças Armadas democratas, legalistas e constitucionalistas, os verdadeiramente nacionalistas que entendem que a missão da Instituição Militar é defender a democracia e a soberania nacional.

É possível citar alguns exemplos de vulto da tendência democrática das Forças Armadas como a primeira eleição direta no Brasil, em 1879, em que dois militares concorreram no Rio de Janeiro à Câmara dos Deputados; Sena Madureira e Cunha Matos suas lutas eram pelo direito dos militares de livre manifestação do pensamento. Houve o movimento de fuzileiros navais pelo fim dos castigos corporais, dos baixos soldos, da má alimentação, a que a corporação era submetida, movimento que deu início à Revolta da Chibata e que impactou a cidade do Rio de Janeiro no ano de 1910. Esses amotinados foram parcialmente anistiados, mas acabaram sendo novamente perseguidos, dessa vez na Ilha das Cobras.

É possível citar ainda o Tenentismo dos anos 1920 que teve como destaque a Coluna Prestes comandada por aquele que viria a ser o líder comunista Luiz Carlos Prestes, há também o general Teixeira Lott, cuja a intervenção garantiu a posse daqueles que haviam ganho a eleição de 1955 o presidente Juscelino Kubitschek e de seu vice João Goulart, o general José Machado Lopes, comandante do III Exército, e outros oficiais aderiram a mobilização do então governador do Rio Grande do Sul à Campanha da Legalidade e acabam por se tornarem fundamentais para a derrota do movimento golpista que tentara impedir a posse de João Goulart.

Cabe lembrar que da mesma Campanha da Legalidade participou aquele que viria a ser um dos mais importantes intelectuais marxistas brasileiros o historiador Nelson Werneck Sodré, que ficou preso por dez dias por se opor a tentativa de golpe em 1961, o mesmo evento do Brizola. Sodré escreveu livros clássicos da historiografia militar do Brasil e da imprensa. Na carreira militar chegou a general e, de acordo com o historiador Raphael Silva Fagundes, Sodré dedicou sua produção a “análise materialista da sociedade brasileira e, embora suas teses de um passado feudal no Brasil estejam ultrapassadas, foi de grande importância para movimentar a intelectualidade de seu tempo”. Há ainda o Capitão Carlos Lamarca que desertou do Exército para comandar grupos da Vanguarda Popular Revolucionária, e mais tarde o MR-8, contra a ditadura militar de 1964.

A experiência internacional do movimento dos trabalhadores também proporciona exemplos essenciais para a esquerda brasileira. Nós socialistas que lutamos por outra democracia que não a liberal, portanto por melhoramentos na democracia atual, por uma democracia substantiva, uma democracia radical, devemos compreender que a adesão ao programa socialista dos setores democratas das Forças Armadas é determinante como tem demonstrado os eventos sociais recentes na América Latina.

A Revolução Alemã (1918/1919) é exemplar. Em 1916 o alto comando do Exército era o verdadeiro governo da Alemanha, uma ditadura militar com expedientes tal qual prisões preventivas, censura, estado de sítio, que funcionava como um governo paralelo ao parlamentarismo do Reich. De acordo com o jornalista alemão Sebastian Haffnner são os soldados de baixa patente que ao aderirem ao movimento operário é que eclodem a insurreição revolucionária em 1919. O país já estava em convulsão social, greves, manifestações, ocupações, e naquele ano alguns oficiais da marinha da Alemanha se amotinam em um navio de guerra e se recusam a aceitar o fim da guerra e a ordem do comando geral das Forças Armadas de cessar fogo. Os oficiais ordenam aos marinheiros seguirem com o navio em ataque a uma esquadra inglesa. Os marinheiros fazem um motim de militares de baixa patente no navio contra os seus oficiais e tomam o navio de assalto. Este movimento de militares toma corpo por todo o país e aderem ao movimento operário que tinha na vanguarda o Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), o Partido Social Democrata Independente da Alemanha (USPD) e sobretudo o Partido Comunista da Alemanha (KPD) de Rosa Luxemburgo.

Para citar dois exemplos latino americanos, embora a tomada do poder pelos trabalhadores tenha sido um processo revolucionário e não através da eleição, mas o país vivia sob uma ditadura, após a vitória da Revolução Cubana as forças armadas regulares foram destituídas e os guerrilheiros passaram a comandar e a constituir as forças armadas oficiais. Na Venezuela, em 2002 o presidente Hugo Chavez já eleito democraticamente foi alvo de uma tentativa de golpe militar que foi revertido em um contragolpe pelos homens leais a Chavez. A partir de então Chavez afastou os militares golpistas, colocou em posições de comando das forças armadas somente militares comprometidos com a revolução bolivariana, reformou as instituições militares e iniciou um novo processo rigoroso de militares. Tanto em Cuba como na Venezuela foi treinada e armada, não para um cidadão atentar contra o outro, mas para quando necessário proteger o Estado socialista.

Embora tenham feito muito pela melhoria das Forças Armadas, tratado com toda dignidade e respeito a altura da instituição, ainda assim vigorou durante todo o governo oficiais das Forças Militares que viam em seus comandantes em Chefe, os presidentes Lula e Dilma, os “inimigos” do passado. Afirmo isto categoricamente porque oficiais de alta patente, comandantes de batalhões, me afirmaram isto em caráter oficial à época. E este é o debate inadiável para a esquerda como um todo e para o PT em particular, nossos governos deveriam ter constituído um ordenamento institucional que impusesse limitações legais e constitucionais efetivas a coerção das Forças Armadas ao povo e os colocados sob o controle social.

Além disto, o PT e a esquerda deveriam ter executado em seus governos uma reforma na formação dos oficiais das Forças como também de todo o corpo de militares. Houve uma formação diferenciada de entendimento a garantia dos direitos humanos e de garantia dos preceitos constitucionais, mas deveria ter havido uma reforma ainda mais profunda nas ementas de formação de militares e na própria Instituição Militar para embutir no corpo da Marinha, do Exército e Aeronáutica a agenda democrático popular e da soberania nacional que estava em curso no Brasil e a relevância da defesa desta agenda para a nação.

Condecorado pelo Exército brasileiro, conheci generais do mais alto generalato das Forças Armadas, não burocratas, mas de experiência de comando de combate real de guerra, ainda que talvez minoria dentro da Instituição Militar, no entanto democratas e constitucionalistas, homens de honra e de princípios, me ensinaram a combater com honra e que o forte que oprime o fraco é o covarde, o forte deve proteger o mais fraco, que a missão das Forças Armadas é de defender a Constituição e de proteger o povo brasileiro e não  a de oprimi-lo.

A esquerda deve se aplicar intelectualmente para elaborar uma política capaz de conscientizar setores das Forças Armadas de que pertencem a classe trabalhadora e que hoje sob este governo estão a serviço do subjugo do povo brasileiro e que chegara a hora de estarem ao lado das forças progressistas para defenderem a democracia e a emancipação econômica do povo.

Maquiavel nos “Discursos de Tito Lívio” afirma que “quando o Estado é corrompido e não cumpre seu papel o povo deve ser o guardião da liberdade”.

(*) MARLON DE SOUZA é bacharel em Comunicação Social, jornalista e militante petista e da tendência Articulação de Esquerda

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