Por Marcos Francisco Martins (*) e Vinícius Benedito Martins (**)
Desde a decretação do afastamento social, em virtude da pandemia de coronavírus, as ruas de muitas cidades Brasil afora se esvaziaram. Contudo, em meio à aguda crise sanitária, apoiadores(as) de Bolsonaro e seguidores(as) do insano negacionismo científico que ele defende, acostumaram-se a tomar os logradouros para si, sem enfrentar nenhum obstáculo, protegido muitas vezes pela força policial.
Nas ruas, ultimamente com reduzidas manifestações, reacionários(as) de matizes diversas, estimulados(as) pelo “mito”, bradam livremente pautas neofascistas e inconstitucionais, que repercutem nas novas e velhas mídias. Isso porque atuam sem oposição político-ideológica ou represália jurídica dos poderes constituídos, que deveriam cuidar para que preceitos constitucionais do estado democrático de direito e da civilidade não fossem agredidos a cada manifestação bolsonarista.
Contudo, desde o último dia 9 de maio, algo novo surgiu: o enfrentamento ao bolsonarismo nas ruas. E ele emergiu de onde menos se esperava: as torcidas organizadas, largamente malvistas e entendidas, recorrentemente, como baderneiras e despolitizadas. Inicialmente, elas foram às ruas em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e depois se espalharam pelo território nacional. Ineditamente unidas entre si, assumiram a vanguarda ao tomar as ruas para entoar gritos em defesa da democracia e para dizer aos neofascistas: “Recua, fascista, recua! É o poder popular que está nas ruas”.
Sem entrar na discussão sobre a origem de muitos times de futebol no Brasil, que contempla a luta político-ideológica e sindical, o grito das torcidas por democracia espantou muitos(as) e acordou outros(as) tantos(as). Um dos resultados desse fenômeno surpreendente foi abrir debate amplo na sociedade sobre se seria o momento ou não de ir às ruas durante a pandemia de COVID-19 para enfrentar o pandemônio, que é o governo Bolsonaro.
A brutal morte de George Floyd em 25 de maio, negro de Minneapolis (EUA), que teve o pescoço pressionado pelo joelho do policial branco Derek Chauvin, levou à agudização da discussão, porque gerou os maiores eventos antirracistas de multidão nos Estados Unidos desde a morte, em 1968, de Martin Luther King Jr., justamente no país que mais mortes registra na pandemia.
Na esquerda brasileira, a discussão angustiante sobre se deve ou não ir às ruas divide opiniões dada a complexidade da questão, apesar de haver certo consenso sobre a necessidade de evitar aglomerações e de enfrentar diretamente os(as) reacionários(as) e o racismo, que se manifesta com violência inaudita nas favelas contra a comunidade negra, sendo historicamente estrutural e no momento encarnado no bolsonarismo. A propósito, Bolsonaro e seus tiranetes são criticados não apenas pelas pautas reacionárias e anticivilizatórias que defendem, mas também por não respeitarem a quarentena e as medidas sanitárias previstas.
O encaminhamento deste debate, obviamente, não pode ocorrer a partir de uma disputa para saber quem é mais engajado(a) com a luta contra o neofascismo e contra o racismo, quem é o(a) mais corajoso(a), pois não é isso que está em questão. O que se coloca como desafio às esquerdas é definir a melhor tática a empregar no momento, com vistas a produzir condições objetivas e subjetivas para derrotar o neofascismo e pavimentar caminhos para que a sociedade brasileira vença o preconceito, a discriminação e o racismo que a caracteriza.
Entre as posições que tomam lugar no debate da esquerda, expressas por artistas, lideranças políticas, sindicais e de movimentos sociais, há a disjuntiva: deve-se ou não ir às ruas, com variados graus de consistência argumentativa entre as justificativas apresentadas.
A tomada das ruas no último dia 07 de junho demonstra que, enquanto a discussão ocorre em instâncias partidárias e sindicais, o povo rompeu o isolamento social para cerrar fileiras contra o racismo e para pedir “Fora Bolsonaro!”. Seria o caso de os partidos dizerem para as pessoas não se mobilizarem contra o racismo e o bolsonarismo, e ficarem em casa? Não! O que se deve fazer é tentar organizar esse sentimento de oposição ao governo e de enfrentamento ao racismo, que está se ampliando rapidamente, bem como orientar o cuidado sanitário, que cientificamente identifica que alguns(mas) têm mais condições de ir às ruas do que outros(as) e que em determinados municípios e estados isso é mais possível e em outros menos. Esse encaminhamento coloca a esquerda, particularmente os partidos, junto ao povo, o que lhe dá condições de retomar a condução das lutas sociais, protagonizar o enfrentamento ao racismo e o movimento Fora Bolsonaro, oportunidade que perdeu no início de 2020, ao vacilar para assumir essa bandeira, que estava latente, sobretudo, nas classes subalternas.
Orientar para ir às ruas é encaminhamento pautado em análise concreta de situação concreta, e não em formalismo lógico, como o de alguns argumentos, por exemplo: “Não devemos ir às ruas para não cairmos em contradição com nosso próprio discurso de defesa do afastamento social”. A política não reconhece a lógica formal, pois opera no espectro da lógica dialética, que lida com a concretude do contraditório movimento do real e opera na dimensão social da vida, segundo a correlação de forças sociais. Veja-se que alguns(mas) que advogam essa formalidade discursiva às vezes o faz utilizando serviços de entrega, que são executados por trabalhadores(as) precarizados(as), o que demonstra, mais uma vez, a impossibilidade de a lógica formal prevalecer sobre as concretas situações vividas.
Outros(as) chegam a dizer que não cabe aos partidos de esquerda orientar que o povo rompa as ordens de prefeitos e governadores, porquanto impuseram o afastamento social. Se nem mesmo o Presidente da República está respeitando os cuidados sanitários impostos no Distrito Federal, sob pena de multa, seria papel das lideranças da esquerda exigir isso de quem sente a necessidade de se manifestar? Não! Até porque os movimentos sociais, historicamente, nunca esperaram autorizações de governos para lutarem pelo que necessitam. Se fosse assim, o povo não teria avançado um milímetro sequer na conquista de direitos.
Ir às ruas, neste momento, tem se apresentado como um imperativo às classes subalternas e aos grupos discriminados, e eles estão cerrando fileiras com as torcidas organizadas, que não gozam da simpatia da classe média preconceituosa e da mídia corporativa. Os(as) integrantes dessas torcidas são indivíduos raramente alcançados pelas políticas sociais e pelos processos de formação e organização dos partidos de esquerda. Mesmo relegados(as), são reconhecidos(as) nas comunidades pela identidade futebolística. Aproximar-se deles(as), sentir o que eles(as) sentem, para bem promover formação e organização política, é oportunidade para as esquerdas retomarem o trabalho de base, ocupar as periferias e disputá-las com o neopentecostalismo sionista, por exemplo.
As manifestações do dia 7 de junho contraditaram os argumentos de quem dizia que isso acarretaria o caos necessário para Bolsonaro impor medidas de exceção, que sempre foram, declaradamente, seu projeto político. Mesmo com a presença das torcidas organizadas, o caos não ocorreu e ataques aos ícones capitalistas foram residuais. O que se viu foram manifestações de tamanho significativo, que engoliram os irrisórios movimentos bolsonaristas de rua e colaboram para fazer recuar os(as) fascistas, bem como negar o racismo. Se infiltrados(as) haviam – e deviam haver! -, eles(as) não encontraram condições adequadas para agirem conforme foram designados(as): produzir vandalismo, criar o caos.
De fato, não será com inoperância política ou com apenas manifestações nas redes sociais que se conseguirá enfrentar e derrotar a escalada do fascismo no Brasil e superar o racismo. As redes sociais são espaços importantíssimos, mas devem ser complementares às lutas nas ruas, nas fábricas, nas escolas e universidades; enfim, elas devem se associar às lutas diretas. Aliás, sem as redes sociais, não teriam ocorrido as manifestações de 7 de junho.
A luta contra o fascismo e o racismo tem que ser encaminhada por movimentos de massa. Mas não se alcança esse objetivo senão começando do começo e o começo é sempre o de movimentos pequenos, vanguardistas. Portanto, não cabe esperar a esquerda ter enorme capacidade de organização para que se articule e oriente o povo a tomar as ruas. A massividade de um movimento e sua organização ocorre no desenrolar do processo, que começa pequeno e pode se tornar gigante. A esquerda sempre agiu assim, mas isso não é privilégio dela, é uma construção que nunca se inicia do fim para o começo. Assim tenta fazer o bolsonarismo, haja vista a violenta vanguarda que acampou em Brasília, chamada de “Os 300”, que não passam de 30. Assim também se iniciou o “Fasci Italiani di Combattimento”, de Mussolini, e a “SS” (Schutzstaffel – tropa de proteção), de Hitler.
Às direções partidárias, sindicais e dos demais movimentos sociais cabe assumir dupla responsabilidade neste momento: uma político-ideológica e outra sanitária. A política consiste em recomendar a ocupação das ruas, de modo a fazer neofascistas recuarem e, assim, retomar a direção das lutas sociais, para alterar a correlação de forças. A sanitária é a de recomendar ir às ruas com todos os cuidados possíveis (máscaras, luvas, álcool em gel…), entre os quais está também considerar que indivíduos mais propensos a complicações e letalidade pela contaminação, isto é, os(as) que têm comorbidades e os(as) mais idosos, por exemplo, devem ficar em casa.
Começar miúdo para alcançar o graúdo, por meio da construção de uma luta social ampla contra o bolsonarismo e o racismo, com quem for possível articular no momento. Eis a diretiva que as lideranças da esquerda devem assumir.
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(*) Professor da UFSCar campus Sorocaba e pesquisador do CNPq.
(**) Estudante de História (Unicamp) e militante do Levante Popular da Juventude.