Por Marcos Jakoby (*)
Como muitos sabem, o diretório nacional do PT vem debatendo e elaborando um documento intitulado “Plano de reconstrução e transformação do Brasil: Outro mundo é preciso; outro Brasil é necessário”. O texto tem o intuito de ser uma base programática de curto, médio e longo prazo. Abrange níveis diferentes, articula temas bastante distintos, que vão de pautas conjunturais às questões mais estratégicas, mas, mesmo assim, isso pressupõe que haja vínculos entre eles. Todos devem convergir para os nossos objetivos históricos, de longo prazo, isto é, acumular forças e nos aproximar deles.
E nosso principal objetivo histórico é a construção do socialismo. O citado Plano está em fase de debate de suas emendas, de modo que o tema do socialismo foi um dos que recebeu várias proposições, que foram discutidas na última reunião do diretório ocorrida no dia 21 de agosto.
O debate deixou claro as diferentes perspectivas sobre o socialismo, tanto no diretório, quanto no conjunto do Partido. Especificamente na reunião do dia 21 de agosto, houve um debate que contrapôs, de um lado, os companheiros Valter Pomar e Rui Falcão; e, de outro lado, os companheiros Luis Dulci e Penildon, bem como a companheira Mônica Valente. Infelizmente, a reunião não foi transmitida ao vivo e, portanto, o que passo descrever baseia-se no relato detalhado feito pelo companheiro Valter Pomar.
Segundo ele, Luís Dulci teria afirmado que o Plano de reconstrução e transformação será útil para que se possa aprofundar a disputa nessa conjuntura da vida brasileira, inclusive para um debate que não seja só local, mas que seja também nacional, que paute também os desafios, os problemas e os desafios do país. Dulci reconheceu, também, que o PT nunca separou o Programa Democrático e Popular da perspectiva histórica socialista.
Porém, segundo Dulci, o PT sempre relacionou as duas coisas, mas nunca confundiu as duas coisas. E cita exemplos, como a proposta de fortalecer o sistema público financeiro e fazer uma nova regulação do sistema privado, o que já iria além da correlação de forças desse momento. Disse isso para alegar que a proposta de estatização do sistema financeiro é uma proposta socialista e que, portanto, não caberia nesse plano. Dulci cita outro exemplo, a da reforma tributária proposta, que, segundo ele, já é uma medida radical, com o imposto sobre os super ricos e sobre juros e dividendos. E que somente isso já seria o suficiente para uma guerra com a classe dominante, para assim demonstrar, mais uma vez, que não cabem medidas mais avançadas.
Na opinião de Dulci, as posições defendidas por Rui Falcão e Valter Pomar estariam confundindo momentos históricos: o que seriam temas reais da disputa política no Brasil de hoje, ou seja, de um programa imediato, com um programa que seria de longo prazo, como a estatização completa do sistema financeiro. Ele chega a ilustrar uma situação hipotética na qual ganharíamos a presidência da República e questiona se teríamos condições de fazer isso. E emenda que se não tem condições, estaríamos propondo um programa que não será executado, e que na prática estaremos traindo o nosso próprio programa. Na opinião dele, o Plano de reconstrução e transformação é radical e, inclusive, chegaria a ir além um pouco da correlação de forças recomendada em algumas questões.
Também na opinião de Dulci, o socialismo está devidamente pautado no documento; segundo ele, aqueles que querem dar mais ênfase ao tema, que querem propor medidas também de cunho socialista no âmbito do Plano, estão na verdade propondo uma mudança, uma alteração no caráter do programa. Passar-se-ia a ter um programa que confunde reivindicações propriamente democrático-populares, com reivindicações diretamente socialistas. E afirma que com isso ele não está de acordo e supõe que centenas de pessoas que ajudaram a elaborar esse plano de reconstrução também não estejam.
Dulci reiterou, ainda, que o plano foi elaborado numa perspectiva democrática e popular, articulando estrategicamente com a perspectiva do socialismo democrático, mas sem confundir as duas dimensões, pois isso pode ser muito danoso para a efetividade da nossa luta política no momento histórico que o país tá vivendo.
Mônica Valente foi outra companheira que fez uma fala no Diretório sobre o tema. Apoio-me aqui, mais uma vez, nos relatos do companheiro Valter Pomar. Para Monica, os problemas que vivemos não foram por causa da falta de um programa socialista nítido no período em que nós governamos, e sim da nossa incapacidade de colocar o povo como protagonista nesse processo, tanto do ponto de vista de governo, como do ponto de vista partidário, e que é isso o que nos impediu de construir uma correlação de forças para mantermos o governo.
Mônica também opina que para construir o socialismo não basta propagandear o socialismo no Programa Democrático e Popular, dado o atual estágio da luta de classes no Brasil e no mundo. Porque que não adiantaria propagandear? Porque o povo, as massas, a base social do Partido é quem deve levantar essas propostas, ou não vai passar da propaganda, de “letras bonitas”. Alega que é por isso que sempre falamos em socialismo democrático. Porque é um socialismo se constrói a partir e com o povo, ampliando a democracia.
Portanto, a questão democrática do Programa Democrático e Popular seria essencial pra construir uma nova correlação de forças, e não simplesmente colocar num plano de reconstrução que seríamos a favor do socialismo ou de propostas que não estão na ordem do dia. E afirma que qualquer programa nosso tem que ter viabilidade eleitoral, porque o PT escolheu esse mecanismo de disputa de poder. Mas em seguida – sempre segundo o relato que nos foi feito por Valter Pomar – Monica afirmou que não é esse o critério que deve nos guiar, pois nem mesmo este programa teria viabilidade eleitoral se a gente não alterar a correlação de forças.
Outra fala interessante no debate, segundo o relato feito por Valter Pomar, foi a de Penildon, professor da UFBA e dirigente da tendência intitulada Movimento PT (a mesma de Romênio Pereira, atual secretário de relações internacionais). Penildon teria alegado que o Plano já é bem mais avançado do que os programas de eleições e governos passados. E cita as proposições de rever a Emenda Constitucional 95, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a reforma agrária. Que é um documento adequado para dialogar e fazer disputa política no momento visando alterar a correlação de forças. E alega que a existência de um programa mínimo e um programa máximo não significa que serão implementados ao mesmo tempo. Que o programa mínimo é que cria as condições para a implementação do programa máximo. Dá exemplos como a estatização do sistema financeiro, que se apresentássemos não conseguiríamos dialogar com a classe trabalhadora, setores médios e a centro-esquerda. De que não estamos numa correlação de forças favorável. Portanto, o Programa Democrático e Popular visa acumular forças para o futuro. E que num processo de aproximação e de avanços é que vamos falando e pautando um programa “máximo”.
Essas intervenções realizadas no DN revelam várias questões que merecem ser refletidas. Nas três falas aparece a questão do tema da correlação de forças como argumento para refutar algumas medidas no Plano, como a estatização do sistema financeiro e uma maior ênfase no tema do socialismo. Evidente que se tratando de um programa de curto e médio prazo, haverá propostas para as quais não há ainda correlação de forças, em que ela precisará ser construída. Mas se nunca falarmos nelas, nunca pautarmos na sociedade, junto da nossa base social, como construiremos essa correlação?
Uma das respostas envereda para o espontaneísmo. O tema do socialismo e das medidas mais avançadas devem ser uma proposição do povo e das massas. Como se brotassem do chão. Ora, não é exatamente o papel do Partido de apontar as saídas políticas para as mais profundas contradições e problemas da sociedade? Não cabe justamente ao Partido apresentar medidas que podem resolver as necessidades do povo brasileiro, apontando para outro tipo de desenvolvimento e de sociedade? De politizar todas as lutas, demonstrando os limites do capitalismo e de que precisamos romper com esse sistema?
Na verdade, trata-se também de uma concepção permeada por um economicismo, como se as lutas reivindicativas e específicas, naturalmente, levassem amplos setores da classe trabalhadora de uma consciência reivindicativa a uma consciência socialista. No entanto, para que esse avanço da consciência ocorra, é necessário que aconteça muita luta política, ideológica e cultural, tarefas que devem ser assumidas como tarefas do PT.
A resposta a isso parece ser de que não caberia ao Partido um papel “propagandístico”. Todavia, em nenhum momento das falas citadas, deixa de se reconhece a pertinência e a necessidade de construirmos medidas de caráter socialista para superar os profundos problemas e impasses do país. Portanto, ao contrário do que alguns dirigentes nacionais acham, não vejo problemas de o Partido fazer propaganda. Aliás, fizemos muita propaganda, agitação, campanhas, debate público, atividades culturais em eleições, acerca do modo petista de governar, das realizações dos nossos governos e das plataformas eleitorais; porque não podemos fazer o mesmo sobre a necessidade de mudar estruturalmente o que são forças armadas e as polícias militares? Por que não podemos fazer o mesmo a respeito do sistema financeiro? De uma Constituinte para o país? Ou o mesmo sobre a necessidade de construirmos uma alternativa sistêmica ao capitalismo? Nunca vi alguém se queixar do papel “propagandístico” do Partido em uma eleição, mesmo quando não havia correlação de forças favorável. Aliás, muitas vitórias eleitorais demonstram o papel que essas iniciativas políticas, de “propaganda”, podem ter para mudar uma determinada situação desfavorável.
Outra confusão que se faz é sobre o caráter de um programa, ou um plano de Partido, reduzindo-o a um programa eleitoral. Um programa partidário articula objetivos de curto, médio e longo prazo. Um programa partidário não orienta somente governos, mas toda a luta social e política que o Partido desenvolve e ajuda a desenvolver. Orienta a luta de classes de conjunto.
A companheira Mônica Valente – segundo o relato feito pelo Valter Pomar — chegou a dizer que o critério deveria ser a viabilidade eleitoral, mas logo se dá conta de que nem mesmo um programa mínimo tem viabilidade hoje se não alterarmos a correlação de forças, e que, portanto, o eleitoral não deveria ser um critério guiador. No que está corretíssima. Ano passado não reunimos condições e forças nem mesmo para barrar a reforma da previdência, que atinge em cheio um direito básico de milhões de trabalhadores. Cito isso para demonstrar o quanto é equivocado a construção de um programa tendo como parâmetro único ou principal a correlação de forças atual. Se assim fosse, construiríamos um programa raso, sem profundidade.
O companheiro Dulci –a julgar pelo relato de sua intervenção no DN, relato feito como já dissemos pelo Valter Pomar – parece ser prisioneiro dessa lógica. Cita a situação hipotética na qual voltaríamos à presidência. Ora, para isso acontecer, será necessário derrotarmos o golpe e impormos uma profunda derrota à classe dominante. Num cenário desses, obviamente, estaríamos em outra correlação de forças, muito diferente da atual; portanto, também não faz sentido utilizar a correlação de hoje como referência única ou prioritária.
Um programa, ou um Plano como o proposto pelo diretório nacional, também não está separado de um desenho estratégico. Não negamos aqui que a implementação desse programa far-se-á com mediações de acordo com a situação política de cada momento. Mas, como foi dito, o programa é parte de um processo. Portanto, não podemos abrir mão das medidas mais radicais, que alteram estruturalmente o desenvolvimento do país, apenas porquê na largada não temos as condições de implementá-las. Pelo contrário, precisamos ter nitidez sobre elas, pois só assim chegaremos até elas. Não pautar isso no programa é deixa-lo capenga. E meio caminho para deixarmos de persegui-las efetivamente.
Portanto, o programa não só deve estar sintonizado com uma estratégia, como é parte dela. Mônica Valente coloca que o problema central não foi a ausência de um programa socialista ou mais radicalizado enquanto estivemos no governo, mas o fato de não conseguirmos estimularmos que o povo fosse protagonista. Como se as duas coisas não tivessem relação!!! Vou citar apenas um exemplo. No dia seguinte ao segundo turno das eleições de 2014, a direita lançou sua operação golpista. Qual foi a resposta do governo e da maioria do Partido? A busca da conciliação na moderação programática, supondo que o lado de lá fosse recuar.
Colocamos um representante dos bancos, Joaquim Levy, no ministério da Fazenda, adotamos medidas de ajuste fiscal, mexemos em vários benefícios sociais. Isso causou uma frustração grande em nossa base social, depois de uma campanha muito polarizada, criou conflitos no interior da esquerda, desapontou amplos setores populares e deu sinal para o lado de lá de que poderiam avançar. Se tivéssemos adotado outras medidas programáticas, talvez tivéssemos um resultado diferente. Mesmo que não fosse possível aplicá-las na integralidade, isso teria criado melhores condições para que o “povo fosse protagonista” e impor uma resistência maior ao golpe. Sem falar que o resultado econômico e social seria diferente. Portanto, há um nexo estreito entre programa e participação política.
Outra dimensão importante do assunto: afirma-se que há relação entre programa democrático e popular e o socialismo, mas que seriam coisas diferentes, e que assim sempre foi tratado nas resoluções partidárias. Parece haver aqui um tipo de visão etapista, onde primeiro aplicaríamos as medidas de caráter democrático e populares e somente então, em um novo estágio do desenvolvimento econômico e da luta política em nosso país, passaríamos a implementar medidas socialistas.
Tenho uma visão distinta. Sobretudo nas formulações dos anos 1980, a luta por reformas democráticos e populares e a luta pela transição socialista eram elos de um mesmo processo. Ou alguém imagina que seja possível implementaremos o conjunto dessas reformas sem que a classe a trabalhadora seja dirigente do Estado e da sociedade? Que não haverá uma contrarrevolução da burguesia, do imperialismo e dos setores conservadores? Ou de que é possível um desenvolvimento realmente democrático e popular sem adoção de algumas medidas socialistas?
Como foi afirmado, mesmo a adoção de medidas de um programa mínimo geraria uma guerra com as classes dominantes. E como também foi dito, é fundamental o protagonismo popular, mas a questão é: vamos entrar numa guerra erguendo somente as bandeiras do que aquilo que supostamente a correlação de forças atual permite e vamos abaixar as demais? Essa é a melhor forma de reunirmos toda força, mobilização e energia para as transformações de quais o país necessita?
Nesse particular, conversando com o companheiro Valter Pomar, ele fez questão de esclarecer que – na sua opinião – as posições de Monica, Penildon e Dulci incorrem num segundo problema: a pretexto de rejeitar o maximalismo, rejeitam também medidas democrático-populares mais radicais, por exemplo as que dizem respeito a como lidar com o agronegócio, com o extrativismo, com as transnacionais e com o oligopólio financeiro. Segundo Valter Pomar, os que gostam de falar da China atual e os que gostam de falar do New Deal, deveriam estudar o que foi feito com o setor financeiro nesses dois casos. E deveriam refletir se é possível fazer uma transformação profunda na sociedade brasileira, sem revolucionar o setor financeiro brasileiro, neste caso desfazendo o que os neoliberais fizeram nos anos 1980 e 1990. Valter confessa seu espanto com o fato do lado de lá ser tão audacioso — as privatizações realizadas pelos neoliberais nos anos 1990 foram uma “expropriação contrarrevolucionária” – e como o lado de cá é tímido até nos planos.
Valter destaca, também, que “para o neoliberalismo foi chave fazer uma mudança no setor financeiro, reduzindo a presença dos bancos estatais, ampliando a presença dos bancos privados, concentrando e centralizando a propriedade, dando origem ao oligopólio financeiro que aí está. Claro que para mudar isso, tem que ter acumulação de forças, mediações etc. Claro, também, que o desenho final não é um único banco estatal, pode ser um conjunto de vários bancos estatais de grande porte, vários bancos privados e estatais e cooperativos de médio porte etc”. Valter considera insuficiente a proposta de impor limites ao tamanho dos bancos, impor a concorrência dos bancos públicos e aumentar o controle dos órgãos reguladores. Segundo ele, “mesmo supondo que isso tudo possa dar certo, ainda assim caberia perguntar: porque lutamos pelo monopólio do petróleo e não lutamos pelo monopólio da moeda? Porque deveríamos aceitar dividir este poder, este controle com o setor privado?”
Por fim, cabe aqui dizer que essa discussão não se trata apenas de um debate teórico ou ideológico, mas, principalmente, político. Vivemos uma profunda crise sistêmica do capitalismo. Comparada em gravidade com a crise de 1929, ou até mais aguda, porque o hoje o capitalismo é mais hegemônico do que antes, e a financeirização da economia atingiu níveis sem precedentes na história. Por outro lado, há um declínio relativo da potência imperialista hegemônica. Os conflitos militares escalam. A desigualdade social polariza cada vez mais as sociedades capitalistas. No Brasil vivemos essa realidade. O lado de lá age com muita radicalidade para destruir os direitos sociais, as liberdades democráticas, a soberania nacional e nos jogar de volta aos anos 1920. Para revertemos esse processo será preciso transformações profundas na sociedade e no estado brasileiros, que somente serão possíveis em um contexto de alternativa sistêmica, socialista. O fato de nosso plano não enfatizar sua vinculação com o socialismo, reduz nossa capacidade de reconstrução e limita nossas possibilidades de real transformação do Brasil.
(*) Marcos Jakoby é professor e militante do PT