O PT entre o passado e o futuro

Por Valter Pomar (*)

Ao comemorar os 41 anos de existência, o PT enfrenta um dilema estratégico: ou se conformar em ter um grande passado pela frente ou redobrar a aposta radicalmente anti-sistêmica em favor da classe trabalhadora expressa em sua fundação.

Militância do PT com bandeiras / Foto: Reprodução.

Publicado originalmente no site da revista Jacobin

A anedota dos brioches de Maria Antonieta é mais célebre, mas talvez mais revelador seja o intercâmbio que teria acontecido entre o Duque Liancourt e o Rei Luiz XVI, em julho de 1789:

 

– Senhor, marcham para a Bastilha.
– É uma revolta?
– Não, senhor, é uma Revolução.

Por qual motivo evocar este suposto diálogo, na abertura de um artigo sobre os 41 anos do Partido dos Trabalhadores (PT), transcorridos no dia último 10 de fevereiro?

A resposta é simples. O destino do PT dependerá da resposta que o partido dê ao principal dilema vivido pelo Brasil neste ano II da Era Bolsonaro: que faremos da nossa Bastilha?

A classe dominante brasileira está nos empurrando de volta aos anos 20 do século passado, quando o Brasil era um país primário exportador, inteiramente submisso ao imperialismo. Então, a política era monopolizada pela oligarquia e a questão social era tratada como caso de polícia.

Hoje, como há 100 anos, a classe trabalhadora brasileira tem duas alternativas: ou hipoteca seu destino a alguma das frações da classe dominante ou trilha um caminho independente. Uma diferença fundamental com relação àquele passado é que hoje já não existe nenhum setor da classe dominante com disposição para virar a mesa. Ou melhor dizendo, nenhum setor disposto a virar a mesa em uma direção progressista, pois virar a mesa em uma direção reacionária é precisamente o caminho que a classe dominante escolheu desde 2016.

Caso a classe trabalhadora brasileira escolha o caminho da hipoteca, isto é, o de renunciar à independência política, suas atuais organizações – movimentos, sindicatos e partidos – provavelmente sofrerão destino similar ao de seus antepassados do século XX: cooptação e/ou definhamento.

Para uma imagem do que isto significa, pode-se comparar o PTB, o PCdoB e o PCB de 2021 com o que eram em 1964.

É essa a disjuntiva estratégica posta diante do PT em seu aniversário de 41 anos: ou se conformar em ter um grande passado pela frente ou reafirmar a aposta radicalmente anti-sistêmica expressa em sua fundação.

A necessidade da revolução brasileira

O Brasil precisa de uma revolução política, social e cultural. Não de uma “revolução” de mentira, como a de 1964, nem de uma revolução dirigida por uma fração da classe dominante, como foi a de 1930. Precisamos de uma revolução plebeia, popular, jacobina, que guilhotine a cabeça da oligarquia. Uma mobilização democrática de massas capaz de causar pânico nos poderosos, que derrube a canalha que faz o povo trabalhador viver em meio a suor, sangue, lama – e vírus.

Precisamos de uma revolução por dois motivos, um negativo e outro positivo. O negativo primeiro: a ausência de uma revolução é a principal explicação para a persistência de tantos traços coloniais, da escravidão, da política oligárquica, em nossa sociedade. É a ausência histórica de uma revolução popular que está na raiz da abissal desigualdade social de hoje, assim como da dependência externa e da falta de liberdades democráticas concretas para a maioria. O ordem capitalista no Brasil não resultou de uma grande revolução democrático burguesa, como foi o caso de outros países. Em grande medida por isso nosso capitalismo é do jeito que é: atrasado, oligopolizado, oligárquico e dependente.

Agora o segundo motivo, o positivo: só uma revolução pode garantir ao povo brasileiro um futuro qualitativamente melhor do que o passado. Sem uma revolução, o lugar do nosso país na divisão internacional do trabalho será in saecula saeculorum o de estufa de especuladores, exportador de primários, importador de produtos industriais e pacotes tecnológicos. O Brasil nunca experimentou uma grande revolução popular, e por isso a vida do povo parece as vezes um imenso vale de lágrimas interrompido aqui e ali por breves carnavais.

Precisamos, portanto, de uma revolução. Se esta revolução vier a ocorrer e for triunfante, sua dinâmica a empurrará em direção ao socialismo. Não um socialismo de tipo soviético, chinês ou cubano, mas sim um socialismo brasileiro, pelo simples motivo de que será obra não de trabalhadores russos, chineses ou cubanos, mas sim de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, em luta contra o tipo de capitalismo que aqui floresceu. Como diriam nossos amigos venezuelanos e chineses, um “socialismo do século 21 com características brasileiras”.

A classe trabalhadora brasileira será capaz de fazer, nos tempos atuais, a revolução que não conseguiu fazer no passado? Não há como saber. Líquido e certo, apenas o seguinte: para que uma revolução ocorra, será preciso que nossa classe trabalhadora – especialmente as mulheres, os negros e negras, a juventude trabalhadora, os moradores das periferias, as grandes parcelas da classe que sobrevivem em condições terríveis de exploração, os mais explorados e oprimidos, as vítimas de todo tipo de humilhação e preconceito, inclusive por parte dos setores melhor posicionados da própria classe trabalhadora — trave lutas políticas, sociais e culturais de extensão e intensidade muitas vezes maior do que no passado recente.

Se não formos capazes disso, que futuro nos espera? Aos preços de hoje, considerando a disposição da classe dominante brasileira e as tendências mundiais, o que virá pela frente é uma longa – e cruel – catástrofe.

Sob uma nova configuração geopolítica

Quando o PT foi criado, em 1980, ainda vigoravam os marcos estabelecidos pelo desfecho da Segunda Guerra. Desde 1945 até 1991, a principal variável da situação mundial era o conflito entre Estados Unidos e União Soviética, então a principal expressão geopolítica do conflito entre capitalismo e socialismo.

O processo de dissolução da União Soviética, culminando em 1991 com a patética renúncia de Mikhail Gorbachev, abriu um período de instabilidade nas relações internacionais, causada essencialmente pela tentativa que os Estados Unidos fizeram de converter-se numa espécie de “império global unilateral”, sob o pano de fundo da expansão acelerada das relações capitalistas e assentada na curiosa relação bilateral entre os EUA e o “socialismo de mercado” chinês, visto então como uma planta exótica que teria vida breve e que logo levaria ao fim do “monopólio do poder político” exercido pelos comunistas.

Não sabemos o que teria acontecido se a história tivesse seguido outro curso. O que sabemos é que a crise financeira global de 2008 alterou substancialmente a dinâmica da relação sino-estadounidense. Hoje, 41 anos depois da criação do PT e 30 anos depois do fim da URSS, a principal variável da situação mundial passou a ser o conflito entre EUA e China. Bipolaridade que, ao menos para alguns, seria também a principal expressão geopolítica do conflito entre capitalismo e socialismo. Seja isso ou não, é fato que a América Latina e o Caribe constituem um território de combate econômico, político, ideológico e, em menor escala, militar – como já havia ocorrido durante a Guerra Fria. Agora, entretanto, há pelo menos duas novidades importantes: a decadência dos Estados Unidos e a potência, ao que parece ascendente, da economia chinesa.

Por uma combinação de fatores internos e externos, há um declínio acentuado na capacidade dos Estados Unidos em exercer sua hegemonia. No médio prazo, há dois cenários fundamentais: ou os EUA recuperam sua hegemonia global ou recuam no sentido de converter-se em uma importante potência regional, que participa das questões mundiais mas não é hegemon em escala global. Na busca por reverter seu declínio, os Estados Unidos lançam e continuarão lançando mão de diversos instrumentos, dentre os quais parece inescapável o uso crescente da carta militar, ainda que “apenas” como fator de ameaça. Seja qual for o cenário que predomine, os Estados Unidos manterão pressão intensa sobre a América Latina e o Caribe em geral, e sobre o Brasil em particular.

O que aconteceria se vingar o outro cenário, ou seja: e se a China triunfar? Que será de nossa região? Diferente dos Estados Unidos no período 1945-1991, a expansão econômica chinesa não é acompanhada de um aumento correspondente da presença militar. Ademais, tudo indica que os chineses seguirão fazendo quase tudo que for possível para evitar um conflito militar generalizado. Por outro lado, diferente da União Soviética no período 1945-1991, a China adotou desde 1978 uma política que teve como desdobramento sua penetração econômica em todo o mundo e a ultrapassagem dos Estados Unidos em vários indicadores. A evidente relação deste sucesso com a estabilidade do regime chinês manda uma forte mensagem positiva em favor do papel diretor do Estado de tipo socialista, na contramão do discurso neoliberal difundido pelos Estados Unidos.

Um eventual sucesso da China no conflito com os Estados Unidos, no entanto, não produzirá, por si só, qualquer alteração significativa no “lugar” da América Latina e Caribe no mundo. Seja qual for o desfecho da nova “guerra (por enquanto) fria”, seguirá sendo funcional às principais potências do mundo que a região, o Brasil em particular, persista em sua condição de exportador de matérias primais e importador de produtos industriais e pacotes tecnológicos. Ao contrário do que ocorreu nos anos 1950, do mundo não virão muitos estímulos no sentido de algum desenvolvimento, mesmo dependente, para o Brasil.

Uma classe dominante sem vocação de potência

Oque fará a classe dominante brasileira frente a essa situação? Poderia ocorrer algo similar a 1930, quando uma fração da classe dominante e dos setores médios se lançaram em um programa de industrialização e desenvolvimento, mesmo que limitado e conservador? Impossível não é, mas dada a composição atual da classe dominante, e o excesso de capacidade produtiva instalada em âmbito mundial, parece muito pouco provável.

Caso venha a ocorrer uma grande guerra de escala planetária, que cause uma interrupção dos fluxos de bens e capitais, como em alguma medida aconteceu entre 1914 e 1945, a classe dominante pode se ver forçada a usar seus capitais na expansão da produção e do consumo interno. Excetuando-se esta situação extrema, no entanto, a classe dominante brasileira não parece em nada disposta a correr os riscos implícitos em um movimento de desenvolvimento (re)industrializante de novo tipo. Afinal, fazê-lo implicaria não só em conflitos com os capitalistas estrangeiros, como em profundas mudanças domésticas, que incluiriam desde investimentos de longuíssimo prazo até aumentos substanciais na massa salarial e, inclusive, o compartilhamento de maiores nacos de poder com outros setores sociais. Em suma, significaria abandonar a confortável posição de primazia oligárquica na política, participação aristocrática no estoque de riqueza e lucros de curto prazo relativamente abundantes.

Da situação de sócia menor de interesses estrangeiros decorrem várias implicações, entre as quais a superexploração da força de trabalho, a permanente ameaça às liberdades democráticas da maioria do povo, a perpetuação de uma mentalidade colonizada e padrões de desenvolvimento inferiores aos das potências mundiais. Estes traços são característicos de nossa formação social. Mas hoje existe uma importante implicação adicional: depois de meio século de industrialização (1930-1980), quarenta anos de desindustrialização estão fazendo o Brasil viver situação similar a de quem deita no leito de Procusto. Afinal, trata-se de fazer caber um país de 210 milhões de habitantes na moldura estreita que o país tinha quando éramos apenas cerca de 40 milhões de almas.

O retrocesso iniciou nos anos 1980, prosseguiu nos anos 1990 por obra dos neoliberais e agora segue por conta dos ultraliberais associados ao bolsonarismo. Uma associação, por sinal, que passa longe de ser mero acaso: na ausência de desenvolvimento, a brutal desigualdade existente no país não encontra válvula de escape e a questão social vira caso de polícia (e, cada vez mais, de milícia). O bolsonarismo, a tutela militar, o fundamentalismo, o genocídio pandêmico e a ampliação do comércio de armas de fogo não são, portanto, raio em céu azul: Mad Max também é aqui.

A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la

Como romper com esta situação catastrófica? Combatê-la efetivamente exigiria explorar uma rota que foi apenas insinuada pelo ciclo de governos progressistas. Seria preciso não apenas realizar políticas públicas, mas também reformas estruturais. Não apenas participar do governo, mas assumir o poder e derrubar a atual classe dominante. Propor tal coisa pode bem parecer, à primeira vista, algo como um “maximalismo fora da casinha”, ainda mais neste momento em que o país se encontra dominado pelo golpismo, com o bolsonarismo e a direita tradicional polarizando a disputa política.

Acontece que a graça dos momentos de crise geral consiste justamente nisto: ou bem avançamos muito ou bem retrocedemos muito, existindo pouco espaço para o aparente bom senso, para os supostos bons modos centristas, para os prudentes caminhos do meio e para os atalhos cobertos por vegetação frondosa e gorjeio de passarinhos. Exatamente porque a crise é profunda, as opções são radicais. E para nós restam poucas opções: ou bem a classe trabalhadora se dispõe a assumir o comando da nossa sociedade, ou continuaremos neste ambiente de crescente degradação econômica, social, cultural e política – variando na melhor das hipóteses de velocidade sem, contudo, conseguir alterar o curso.

A crise internacional de 2008 demonstrou que o capitalismo segue instável, propenso a crises abruptas e violentas, que se desdobram em “guerras” comerciais, políticas, culturais — e até mesmo em guerras propriamente ditas. O capitalismo neoliberal se mostrou incapaz de reformar a si mesmo: é cada vez menor a chance de convivência pacífica entre, de um lado, o capitalismo, e de outro lado as políticas de bem estar social e as liberdades democráticas. Assim como é cada vez menor a chance de convivência pacífica das grandes potências entre si e destas com os países periféricos.

As lutas entre as classes sociais dentro de cada país, bem como as disputas e conflitos entre os Estados nacionais, tendem ao acirramento. Parte da esquerda brasileira ainda se nega a acreditar nisto. Em consequência, deixa o socialismo na “fila de espera”. Antes de 2008, o fazia por otimismo, acreditando que o socialismo não seria necessário, ou pelo menos não seria urgente. Afinal, estávamos conseguindo avançar, melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades, afirmar a soberania, construir a integração regional, mudar pouco a pouco o mundo, mesmo sem tocar nas bases estruturais do capitalismo existente no Brasil. Agora, com um discurso bem mais pessimista, aquele mesmo setor da esquerda defende continuar mantendo o socialismo na “fila de espera”, pois a tarefa imediata seria resistir, impedir o desmonte, recuperar o terreno perdido. Só bem depois, quem sabe, tudo voltando ao normal, seria possível colocar na ordem do dia bandeiras de “longo prazo”, como o socialismo. Ao pensar desta forma, convertem o socialismo em absolutamente nada: não seria necessário quanto a classe trabalhadora está forte, e não seria factível quanto está fraca.

A experiência latino-americana (1998-2018) e, antes dela, a experiência da socialdemocracia europeia (1945-91) demonstram fartamente que a sobrevivência das reformas democráticas e dos avanços sociais depende da correlação de forças entre capitalistas e classes trabalhadoras. Por mais que as classes trabalhadoras melhorem suas posições, se elas não avançarem sobre os instrumentos de poder e, crucialmente, se não assumirem a propriedade dos meios de produção, os capitalistas sempre terão os meios materiais para “colocar as coisas no seu devido lugar” em momentos críticos de acirramento da luta de classes. Por isso é imprescindível uma estratégia socialista – uma estratégia que visa fazer a classe trabalhadora construir e conquistar os instrumentos de poder e assumir o controle dos principais meios de produção e reprodução da vida econômico-social, tendo como principal objetivo programático estabelecer um padrão de desenvolvimento que supere a desigualdade interna e externa (na relação de nosso país com o mundo).

No Brasil, essa estratégia passa necessariamente por derrotar o capital financeiro, os oligopólios, as transnacionais, o agronegócio, e colocar a vida de nossa sociedade sob controle da classe que realmente produz as riquezas: a classe trabalhadora. Apenas nestes novos marcos estruturais, que combinam medidas democrático-populares com medidas socialistas, políticas públicas tão vitais – como as de Ciência & Tecnologia, de Educação Pública e o Sistema Único de Saúde – terão pleno êxito e viabilidade de longo prazo.

Trata-se, portanto, de converter as classes trabalhadoras em classes dominantes. Uma esquerda que queria realmente vencer não pode se contentar em estar no governo, nem alimentar velhas e novas ilusões num suposto caráter neutro do aparato estatal. Nossa tarefa, nesse sentido, é lutar por um Estado de novo tipo, incluindo aí a democratização e regulação dos meios de comunicação, do sistema judiciário e das forças armadas, a fim de que sejam postos, efetivamente, a serviço da maioria da população brasileira.

Conquistar o poder e implementar uma política de desenvolvimento de tipo socialista é um objetivo que decorre não apenas da situação nacional, mas também da situação mundial. Afinal, a crise mundial do capitalismo e seus efeitos tóxicos só serão interrompidos e superados por transformações de tipo socialista: para uma crise sistêmica, uma solução sistêmica.

Vida e morte dos grandes partidos

Se a classe trabalhadora brasileira e suas organizações quiserem estar à altura da situação histórica, precisamos lutar por objetivos revolucionários: a derrubada de uma classe dominante, a construção de um poder de outro tipo. No entanto, o domínio da classe capitalista sobre a classe trabalhadora é hoje bem maior do que há dez anos. Para tornar as coisas ainda piores, parte significativa da esquerda brasileira está aprisionada ao modo de pensar segundo o qual nosso programa máximo deve ser a superação do neoliberalismo, nossa estratégia deve se limitar a transformar o Brasil por meio de políticas públicas implementadas por governos conquistados por via eleitoral, e nossa tática deve buscar derrotar o bolsonarismo costurando uma aliança com forças de centro e de direita.

Uma vez que a organização é política concentrada, os partidos – mas também os sindicatos e movimentos – passam a ter parte crescente de sua vida interna e de sua relação com a classe trabalhadora determinadas pela dinâmica institucional estatal, como se esta fosse a única dimensão da luta de classes. Esta curiosa espécie de “síndrome de Estocolmo” afeta, em maior ou menor medida, toda ou quase toda a esquerda. Por razões óbvias, o fenômeno é mais visível no PT.

Durante algum tempo, a institucionalização pareceu contribuir para o acúmulo de forças. Hoje é visível, e inegável, a desacumulação. Em decorrência, cresce dentro e fora do PT a ideia de que o destino do partido estaria selado. Os prazos e motivos variam de profeta para profeta, entre os quais há muitos que contribuíram e seguem contribuindo gostosamente, com ideias e ações, para o desfecho que preveem e trombeteiam.

Maus agouros e incoerências à parte, há pelo menos três coisas líquidas e certas. Primeiro, os partidos também morrem, ou pior: às vezes se tornam mortos-vivos. Segundo, a substituição dos caídos não é feita rapidamente: o processo pode, inclusive, arrastar-se dolorosamente por décadas. Terceiro: se não forem adequadamente superadas, certas heranças ficam e certos desfechos se repetem, num eterno looping que não deixa nada a dever a Dark. Para ficar em um exemplo caseiro: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi duramente golpeado pelo golpe de 64 e pela ditadura militar subsequente. Quem o sucedeu, contudo, não foi nenhum dos concorrentes anteriores ao golpe (Polop, AP, PCdoB), nem nenhuma das organizações de luta armada (ALN, PCBR, Var-Palmares etc.). Foram precisos 16 anos para que começasse a surgir um partido que assumisse, na esquerda brasileira, o papel hegemônico que algum dia fora do velho PCB. E assim que essa posição tornou-se fato consumado, o PT começou a exibir vários dos mesmos problemas que já haviam atingido o antigo partido comunista (a esse respeito, recomendo a leitura de um artigo de minha autoria, publicado originalmente há quase três décadas: Noventa e três e os próximos anos).

Por analogia, se o PT não conseguir enfrentar seus demônios e superar seus atuais limites, o que provavelmente virá pela frente será um longo período em que a classe trabalhadora não disporá de um instrumento político à altura de suas necessidades. O próprio PT poderá sobreviver, assim como o PTB, o PCdoB e o PCB “sobreviveram” – mas já não ocupará mais o mesmo lugar na luta de classes, nem exibirá as mesmas potencialidades. A classe trabalhadora terá então que forjar outro partido, sendo muito pouco provável que os atuais concorrentes do PT tenham o talhe necessário à tarefa. E, o que é pior, no futuro próximo o tal novo partido muito provavelmente enfrentará os mesmos dilemas que o PCB e o PT enfrentaram, sem êxito. Sic Mundus Creatus Est… ou romper este fluxo e superar o dilema, aqui e agora.

Um partido para tempos de guerra

OPT é produto do que até hoje foi a maior onda de lutas populares da história do Brasil. Sem uma onda de lutas similar, ou seja, sem que a classe trabalhadora se lance em revolta aberta contra o regime atual, assim como o fez no final dos anos 1970, nem o PT superará seus limites, nem outro dos atuais partidos de esquerda superará o PT, nem mesmo surgirá uma nova organização que ocupe na luta de classes lugar similar ao do PT.

A solução dos problemas do Brasil e a solução dos problemas da esquerda brasileira gira ao redor da ação da classe trabalhadora. O comportamento da massa da classe depende, ao menos em alguma medida, do comportamento da vanguarda da classe; e grande parte desta vanguarda (ainda) é petista. Portanto, a ação do petismo pode contribuir para que haja uma nova onda de lutas populares.

Se a atual geração não conseguir equacionar corretamente a situação, apenas transferiremos a tarefa para gerações futuras, que se verão diante de questões similares às que enfrentamos hoje, mas não necessariamente atuando em condições de temperatura e pressão melhores do que as atuais. Provavelmente, terão que tentar realizar o que não conseguimos fazer em condições ainda mais desfavoráveis.

É por isso que uma parte do que chamo de “Nação Petista” segue disputando os rumos do PT. Resistindo à conversão do PT em uma versão petebista do MDB, esta militância vietnamita segue buscando conquistar a maioria da classe trabalhadora, bem como a maioria da militância petista para uma estratégia socialista revolucionária.

Disputar os rumos do PT hoje, óbvio, é diferente de disputá-lo em 1983, em 1993 ou em 2005. Cristalizou-se no partido um conjunto de mecanismos que tornam muito mais difícil enfrentar as práticas e as ideias atualmente hegemônicas. Exatamente por isso, aliás, uma onda de lutas sociais é condição necessária para empurrar o PT para um novo curso e para construir uma nova direção no Partido, uma direção adequada aos “tempos de guerra” que vivemos.

Entretanto, pode bem acontecer que uma nova onda de lutas venha e ainda assim isto não seja suficiente. Revoluções são processos raros, mas acontecem; já revoluções triunfantes sem que exista antecipadamente um núcleo dirigente mínimo, são como rosas azuis. Exatamente por isso, é preciso atualizar nossa leitura acerca da luta contra o capitalismo e pelo socialismo no mundo e no Brasil do século XXI, formular e testar uma nova estratégia, formar uma nova geração de quadros capazes de dirigir o PT, a esquerda e a classe numa jornada que certamente não será uma corrida de 100 metros, podendo parecer mais com uma maratona em pleno deserto. O desafio imperativo é o de reconquistar maioria na classe trabalhadora para as posições democráticas e socialistas, elevar o nível programático da esquerda, garantir nossa independência de classe, estimular a luta social, reconstruir efetividade organizacional em todos os terrenos (partido, frentes, sindicatos, movimentos), reocupar territórios perdidos nas escolas, empresas, locais de moradia e todos os demais terrenos onde quer que se trave a luta de classes.

Há, claro, quem ache que a batalha pelos rumos do PT é assunto do passado; assim como há os que não enxergam ou não valorizam quem efetivamente se dedica a travar esta luta cotidiana. Os artigos de Valério Arcary e de Lincoln Secco, publicados recentemente em Jacobin Brasil, trazem bons exemplos precisamente dessas posturas que julgo equivocadas. Há também, na esquerda brasileira, quem não sinta a menor atração por esta discussão, talvez por não perceber que o destino de curto e médio prazo do Brasil está diretamente ligado às opções que o PT fará ou deixará de fazer, assim como as opções do PTB e do PCB contribuíram para o êxito do golpe militar de 1964 e da ditadura que se seguiu.

A classe dominante sabe disso e faz de tudo para destruir e desmoralizar o PT, muitas vezes com a ajuda dos integrantes da “tendência suicida” que alguns dizem ser muito influente na cúpula partidária. Quando tempo temos pela frente? Não sabemos. O que sabemos é que os acontecimentos do biênio 2021-2022 terão muita influência.

Por falar em 2022, cabe lembrar que será um ano repleto de efemérides: os 200 anos da Independência, os 100 anos da Semana de Arte Moderna, da Revolta dos 18 do Forte (marco do movimento tenentista) e, também, o centenário da fundação do Partido Comunista. Talvez a efeméride mais importante seja a do centenário de falecimento de Lima Barreto (1881-1922), que em um texto intitulado “Sobre o maximalismo”, de 1 de março de 1919, escreveu o seguinte: “Em resumo, porém, se pode dizer que todo o mal está no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia, na sua ganância sem freio de espécie alguma, que só vê na vida dinheiro, morra quem morrer, sofra quem sofrer”. E contra este mal, Lima Barreto deseja e apela por uma “convulsão violenta” contra os que “nos saqueiam, nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há outro meio de exterminá-la. Se a convulsão não trouxer ao mundo o reino da felicidade, pelo menos substituirá a camada podre, ruim, má, exploradora, sem ideal, sem gosto, perversa, sem inteligência, inimiga do saber, desleal, vesga que nos governa, por uma outra, até agora recalcada, que virá com outras ideias, com outra visão da vida, com outros sentimentos para com os homens, expulsando esses Shylocks que estão aí, com os seus bancos, casas de penhores e umas trapalhadas financeiras, para engazopar o povo”.

Este é o resumo da ópera: se não estivermos dispostos a fomentar e liderar esta “convulsão” de que falava o grande Lima Barreto, restará ao Partido dos Trabalhadores apenas um grande passado pela frente. Mas se fizermos a coisa certa, viveremos aventuras maravilhosas e contribuiremos com nossa cota parte para levar a humanidade a lugares onde jamais estivemos. Vida longa e próspera ao Partido dos Trabalhadores. E das Trabalhadoras!

(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do diretório nacional do PT.

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