O que o Brasil negro e trabalhador espera de nós

Por Adriano Bueno (*)  e Rayane Andrade (**)

Texto publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista 

O papel do eleitorado negro nas eleições

O bolsonarismo trouxe à tona um racismo escancarado, muito diferente do racismo cordial velado que historicamente caracterizou o sentimento dos racistas brasileiros em relação ao povo negro. Durante a campanha, Bolsonaro chegou a referir-se aos quilombolas expressando o peso deles em arrobas, rebaixando-os a bens semoventes de forma análoga ao que se fazia durante a escravidão. Com Bolsonaro no poder, muitos “patriotas” passaram a sentir-se à vontade para expressar e praticar racismo.

Um levantamento do Datafolha realizado entre 5 e 7 de outubro de 2022 mostrava Bolsonaro à frente de Lula (50% a 43%) entre o eleitorado branco. Entre pardos, as posições invertiam-se: Lula aparecia com 49% e Bolsonaro com 43%. Entre pretos, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro era ainda maior, com o petista alcançando 57% contra 35% do adversário. De modo geral, as pesquisas para o segundo turno expressavam este cenário. O eleitorado negro, compreendido como a soma entre pardos e pretos, foi fundamental para assegurar a vitória do Partido dos Trabalhadores no segundo turno. Podemos concluir que parcela significativa do eleitorado negro percebeu a piora em suas condições materiais de vida durante o governo Bolsonaro.

A vitória de Lula nos aponta para a possibilidade concreta de encerramento de um ciclo onde negros e negras perderam parte do que conquistaram nos governos petistas. Cresce entre negros e negras a expectativa de retomada de um processo de avanços no combate ao racismo. Mas nossa vida não será fácil, como uma simples repetição do cenário anterior ao golpe contra Dilma: racistas alcançaram ampla votação no parlamento e farão dura e sistemática oposição às iniciativas de promoção da igualdade racial. Mais do que isso, a direita racista já entendeu que não basta disputar nas urnas apenas. Estão dispostos a seguir ocupando as ruas, se necessário com violência, como fez Carla Zambelli ao sacar uma pistola e perseguir um homem negro publicamente, sem nenhum pudor, mesmo sendo gravada. Para garantir as ações do governo, será preciso que o movimento negro siga disputando corações e mentes, sem descanso. Com Lula presidente, as condições de luta melhoram muito, mas sozinho Lula não resolverá nossos problemas. Arregacemos as mangas.

O novo governo em disputa

A vitória que conquistamos nas urnas lembra a canção do pernambucano Siba que diz: “o muro está mais alto, mas tem como derrubar!”. E os paredões que movemos foram imensos. O uso da máquina do governo Bolsonaro para colocar dinheiro grosso no jogo foi gigantesco. A começar pelas fortes injeções no orçamento secreto, passando pela antecipação do calendário de pagamento dos benefícios e chegando à disposição do comando da Polícia Rodoviária Federal em executar “barreiras” no dia do sufrágio, em especial no Nordeste, ao arrepio das ordens que partiam do próprio Tribunal Superior Eleitoral.

Fizeram de tudo, mas a classe trabalhadora não se vendeu. E não foi qualquer estrato desse conjunto diverso que a gente que vive do suor da testa faz parte. Foram as pessoas mais empobrecidas e, como apontam os dados, negras e mulheres que nos deram esse voto de confiança. Razão de maior orgulho da nossa vitória! Quem mais precisa da nossa atuação firme, aquelas e aqueles que sofreram o massacre da política genocida do bolsonarismo, os que sentem o amarelar da fome que nos deram mais uma chance.

Contudo, estamos longe de quem nos é fiador. E precisamos ter consciência do desafio. O exemplo disso se vê nas dificuldades que temos de traduzir o resultado bruto dos números na ação política. No processo de transição entre as gestões, as mulheres, os negros e negras e os nordestinos não foram maioria. É certo que houve uma presença significativa, que não pode ser diminuída, contudo está longe do que gostaríamos. Afinal, não podemos colocar como métrica as gestões do golpista Michel Temer ou do autoproclamado Messias.

E essa ausência não é só simbólica. Além do desafio de lidar com o movimento de extrema-direita organizado, armado e mobilizado nas ruas, há a tarefa de fazer as disputas domésticas com os “frente-amplismos” que podem nos levar a repetir erros que nos afastaram ainda mais de quem nos garantiu subir a rampa: o povo trabalhador, pobre, negro e feminino desse Brasil.

A ver pela própria composição ministerial que logrou em tornar a pasta de Direitos Humanos em ministério e com a criação do espaço dentro do governo para a pauta dos povos indígenas. O que não oculta que entre a “maior” nomeação de pessoas negras para o primeiro escalão federal existem dúvidas sinceras sobre o processo de “mudança racial” de alguns dos nomeados.

Longe de ser mera perfumaria, gente que se identificou como branca a vida toda mudou a chave racial justamente no primeiro ano em que o orçamento eleitoral obrigou a investir dinheiro em candidaturas pretas, pardas e indígenas e está na direção do nosso governo. Assunto espinhoso, pois há entre petistas o mesmo fenômeno triste, para não dizer fraudulento, e que se acumula na pilha de contradições internas, especialmente na pauta da igualdade racial.

A dificuldade de letramento antirracista e a inexistência de consequência para quem adotou a prática da personagem Serena da novela Alma Gêmea, dão um péssimo exemplo, mas se inserem na lógica histórica brasileira da democracia racial. Como pessoa negra que está nas fileiras petistas, o silêncio sobre essas mudanças repentinas, que acontecem à revelia da Secretaria de Combate ao Racismo do próprio PT, são uma triste lembrança de como a nossa caminhada é difícil.

Abrir esse flanco de discussão em meio a uma disputa pelo significado do enfrentamento ao racismo, que vem sendo cada vez mais absorvido por uma lógica liberal, não é tarefa fácil. É preciso começar de casa o trabalho de evitar as fraudes raciais, de termos um processo sério de formação e ação política que não deixe esse debate apenas para novembro, mas que isso implique em um constrangimento imediato quando pessoas lidas como brancas mudam sua “opção” racial para ter acesso a cargos e uma fatia maior do financiamento público de campanhas.

A razão para isso é também concreta. Reconhecer da boca para fora que o racismo, o patriarcado e o capitalismo constituem as vigas do edifício Brasil não basta. Para mudar a realidade do povo brasileiro, dar consequência política a essas posições teóricas é fundamental. Afinal, quem está morrendo de desnutrição no coração da Amazônia? Quem vê seus filhos serem assassinados pela Polícia Militar nas favelas? Quem são as pessoas que ocupam as ruas e viadutos das grandes cidades? Quem são? A resposta é velha conhecida, mas, como parte da tecnologia social que nos formou, não foi enfrentada à altura.

Só poderemos falar de reparação histórica e de debate racial sério quando revermos a política de drogas, acabarmos com as polícias militares e enfrentarmos o encarceramento em massa. É preciso reconhecer que vivemos em guerra civil, que nosso exército é especializado em matar brasileiros e que a anistia não pode servir como escudo de impunidade. Mas tudo isso passa por colocar a questão racial, do patriarcado e do modo de produção no centro da conversa.

O elemento racista do bolsonarismo é eloquente. A intentona golpista de janeiro foi o desenho disso. Nenhuma morte, nenhum olho cego; ao contrário, selfies e tapinha nas costas dos policiais e dos criminosos, brancos, em ampla maioria. O elemento da racionalidade reacionária, o famoso salário psicológico de Du Bois, a herança escravocrata são a prova de como as forças de repressão são adestradas para a perseguição racista.

O direito às audiências de custódia e a proteção contra a tortura dentro da cadeia que a turba bolsonarista teve não são a regra, e a questão racial está totalmente interligada a essa diferença de tratamento.

União e reconstrução para o Brasil Negro

Nós mais que dobramos o número de estudantes no ensino superior e abrimos a porta das universidades para a juventude pobre deste país. Jovens brancos, negros e indígenas, para quem o diploma universitário era um sonho inalcançável, tornarem-se doutores”.

Presidente Lula, em discurso no Planalto no dia da posse.

Anielle Franco se apresenta em seu perfil no Twitter como “educadora, jornalista, escritora, feminista preta, mãe de meninas, doutoranda, diretora do Instituto Marielle Franco e irmã de Marielle”. Aos 37 anos, terá a tarefa de chefiar o Ministério da Igualdade Racial. Embora Anielle tenha formação para exercer a função, ainda assim será um grande desafio se pensarmos que é seu primeiro cargo público. “Cria da Maré“, como ela mesma se autointitula, o que se espera de Anielle é que, por seu perfil de mulher negra de comunidade carioca, ela tenha a sensibilidade necessária a quem ocupa cargo tão desafiador e estratégico para o povo negro. Serão quatro anos de muito trabalho duro pela frente.

Do ponto de vista da luta pela superação do racismo e da desigualdade racial, o governo Bolsonaro foi um retrocesso, pois implementou um projeto de destruição das conquistas alcançadas pelo movimento negro durante os governos petistas. Após o golpe contra Dilma, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (a SEPPIR, um órgão pioneiro sem nenhuma experiência equivalente no mundo todo até então) já havia perdido seu status de ministério e sido rebaixada para uma secretaria nacional no governo Temer. Na era Bolsonaro, a SEPPIR foi alocada no Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos, chefiado pela pastora fundamentalista Damares Alves.

Durante os anos em que Bolsonaro foi presidente, a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial sofreu sucessivos cortes orçamentários que praticamente a inviabilizaram. O Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) e o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR) perderam a centralidade. Dos 18 programas/ações que compunham o repertório prioritário da SEPPIR, em 2015, seis foram descontinuados, cinco desmantelados, seis enfraquecidos e um deles não passou por qualquer aprimoramento.

Segundo o Relatório Final do Gabinete de Transição Governamental, desde 2015 houve uma drástica redução orçamentária de 93%. O relatório conclui que “entre os principais cortes, destacam-se a redução no programa de regularização fundiária de territórios quilombolas pelo INCRA, o estrangulamento das ações finalísticas da Fundação Cultural Palmares e as previsões irrisórias para a implantação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – SINAPIR”.

Políticas de sucesso durante os governos petistas foram abandonadas. A Lei de Cotas do Ensino Superior (12.711/2012) e da Lei de Cotas de Ingresso para o Serviço Público (12.990/2014) perderam o acompanhamento institucional. As leis que tornaram obrigatório o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena (10.639/03 e 11.645/08) não tiveram acompanhamento, monitoramento e avaliação. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra também.

Foram anos muito difíceis, com órgãos como a Fundação Palmares sob diversos ataques que visavam subverter radicalmente a própria missão institucional destes organismos, frutos da luta de décadas do movimento negro brasileiro contemporâneo. Assim como a FUNAI, o INCRA também foi alvo de ataques que sabotaram a regularização fundiária de territórios quilombolas com paralisia decisória, cortes de recursos e de pessoal. O Programa Brasil Quilombola ficou resumido a ações assistencialistas pontuais. Um cenário de terra arrasada, onde o movimento negro basicamente lutou pela redução de danos.

Mas os desafios não se resumem a reconstruir e a recolocar nos trilhos as políticas de promoção da igualdade racial desenvolvidas em governos petistas. Entre os novos desafios, urge também estabelecer uma nova forma de lidar com velhos problemas que assombraram nossos governos no passado sem que soluções sólidas fossem formuladas por nós. Este é o caso do caráter racista das políticas de segurança pública no Brasil. Precisamos enfrentar e reverter a guerra às drogas, o encarceramento em massa e a brutalidade policial contra jovens negros na periferia do país.

Anielle Franco terá a difícil tarefa de unificar o movimento negro em torno de um projeto de reconstrução institucional das políticas de promoção da igualdade racial. Por sua vez, caberá ao movimento negro rearticular uma agenda positiva, retomando o debate público propositivo que faça avançar o combate ao racismo e a promoção da igualdade racial.

(*) Adriano Bueno é dirigente estadual da tendência petista Articulação de Esquerda em São Paulo e coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU) de Campinas.

(**) Rayane Andrade é dirigente estadual da tendência petista Articulação de Esquerda no Rio Grande do Norte, advogada e professora. Coordena o setorial de Direitos Humanos do PT- RN.

 

 

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