Por Valter Pomar (*)
Uma coisa puxa a outra: um colega professor da Universidade Federal da Paraíba localizou um texto escrito por Wladimir Pomar na clandestinidade. O texto estava acessível no Sistema de Informações do Arquivo Nacional. Remexendo no dito cujo, achei dezenas de textos produzidos pelos serviços de “inteligência”, inclusive um de 1999 (ou seja, em pleno governo FHC o petismo era investigado). Um dos textos, datado de 4 de julho de 1994 e com o carimbo CONFIDENCIAL, traz o seguinte título em maiúsculas: DOCUMENTO ELABORADO POR VALTER POMAR, INTITULADO “NOVENTA E TRÊS E OS PRÓXIMOS ANOS”. O referido documento faz uma síntese e uma análise do texto supracitado e depois o reproduz na íntegra. Mandei este e outros arquivos para várias pessoas e uma delas me chamou a atenção para alguns acertos da análise feita há 28 anos. Por conta disso decidi republicá-lo em separata. Para tal o companheiro Adriano Bueno redigitou o texto original, bem como a introdução que copio e colo a seguir.
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Este texto circulou inicialmente em cópia xerox. Posteriormente, deveria ter sido publicado numa coletânea intitulada Articulação de Esquerda 1993-1998: artigos e resoluções, cujo prefácio dizia assim: “Esta coletânea reúne os principais documentos nacionais produzidos pela Articulação de Esquerda, desde o manifesto A hora da verdade (1993) até as resoluções adotadas em 1997. Reúne, também, alguns artigos que influenciaram os militantes que deram origem à tendência. Por razões técnicas, não foi possível incluir nesta edição outras contribuições, como as de César Benjamim (Decifra-me ou te devoro), David Capistrano (Tudo que é insólito desmancha no ar), Sérgio Amadeu (Preocupações de um petista), Carlos Eduardo Carvalho, Claus Germer, Wladimir Pomar e Jorge Branco. Estas lacunas não prejudicam o objetivo desta coletânea: permitir aos militantes do PT uma visão de conjunto sobre as posições da Articulação de Esquerda nos seus primeiros quatro anos de vida”.
A coletânea planejada incluiria os seguintes textos: Manifesto aos petistas; Carta aos delegados da Articulação; O melhor ainda está por vir; À militância do Partido dos Trabalhadores; Tarefas para o próximo período; Balanço das eleições de 1996; Balanço do 11º Encontro Nacional do PT; Balanço do 6º CONCUT; Uma estratégia socialista para o Brasil; Resoluções organizativas; Noventa e três e os próximos anos; O poder, cadê o poder? e Alguns desafios do PT para 94. Alguns destes textos foram aproveitados noutra coletânea efetivamente impressa, um livro intitulado Socialismo ou Barbárie. Mas a coletânea originalmente planejada terminou não sendo impressa, estando disponível digitalmente para consultas no endereço www.pagina13.org.br”. A seguir, “Noventa e três e os próximos anos”.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT
Noventa e três e os próximos anos
Um fantasma ronda o PT: o fantasma do comunismo. Não o comunismo de que falava Marx, mas sim um comunismo pragmático, eleitoreiro, reformista, típico do velho Partidão.
Comentando a escolha de Vladimir Palmeira para líder do Partido dos Trabalhadores, o deputado José Genoíno teria afirmado que, “com isso, o PT assume uma tendência esquerdizante. Estou preparado para ser minoria”. Dando o troco, o também deputado Jacques Wagner teria dito: “Me surpreendo. Então, ele está à direita?”[1]
A disputa pela liderança foi decidida por apenas um voto, pouco tempo depois da Direção Nacional do PT aprovar, pela mesma diferença, uma resolução que estabelecia uma posição mais nitidamente oposicionista do PT frente ao governo Itamar.
Naquela ocasião, Paulo Delgado e José Genoíno deram entrevistas à grande imprensa, externando publicamente seu inconformismo com a posição majoritária na Direção Nacional. Numa linha semelhante, o secretário-geral do partido, José Dirceu, afirmava que a resolução fora aprovada por uma “maioria eventual”. O que mereceu uma resposta de Jacques Wagner (para quem maioria eterna só no stalinismo) e de Vladimir Palmeira e Sérgio Gabrielli, no Linha Direta, onde diziam que “quem assegura a governabilidade é o governo. Não cabe ao PT priorizar a estabilidade. Esta é uma tarefa dos conservadores. Cabe ao PT priorizar as mudanças”[2].
Os dois episódios mostram que o partido está, além de dividido, polarizado. Mostram também que, cada vez mais, o debate partidário será travado publicamente.
Não há porque temer isto. O PT tem influência cada vez mais decisiva nos rumos da política brasileira. É natural que isso se reflita no partido, inclusive através do acirramento da luta interna e do debate público entre suas várias tendências.
Curiosamente, a tendência majoritária do PT, a Articulação, não tem conseguido debater organizadamente as divergências presentes no partido, que são suas também. Isso apesar de termos nos dividido, ou termos sido divididos, na maioria das questões polêmicas. O que, na época dos encontros partidários, cria situações cada vez mais desconfortáveis, com a formação de maiorias para as disputas de direção que correspondem cada vez menos às maiorias formadas em torno de questões programáticas.
Essa situação, além de incômoda, é insustentável e danosa para o partido. Ademais, do ponto de vista do autor destas linhas, é muito desagradável ver a Articulação ser coletivamente responsabilizada pelas posições expressas por certos “notáveis”.
Se a Articulação enquanto tal – ou seja, os militantes que a integram – ainda quiser influenciar coletivamente a vida partidária, então ela terá de travar aquele debate. Esse é o objetivo deste texto: estimular os companheiros da Articulação a promoverem uma discussão organizada sobre as nossas divergências políticas.
Como a leitura deixará evidente, este texto não é uma tese, mas apenas um apanhado acerca do que me parece ser o nó do problema: um setor do partido está formulando e aplicando, à revelia das resoluções do partido e das deliberações do lº Congresso, uma nova linha política, muito semelhante às propostas (derrotadas) do chamado “Projeto para o Brasil”. Infelizmente, os defensores da “nova linha” – que de nova tem muito pouco – não a submeteram ao partido, que vem tomando conhecimento dela aos poucos, através de declarações à imprensa, resoluções pontuais da direção e atitudes políticas surpreendentes para os padrões petistas.
Isto já é suficiente, contudo, para estabelecer a polêmica, de resto extremamente urgente. Afinal, para o partido atuar unificadamente nos próximos anos, será necessário que o 8º Encontro Nacional debata em profundidade as divergências em relação ao governo Itamar, ao programa econômico de emergência e, inclusive, os contraditórios resultados das eleições municipais – que, se demonstraram nossa força e potencialidade, evidenciaram gravíssimos problemas, que ajudam a entender as derrotas em várias administrações petistas, as dificuldades enfrentadas no estado de São Paulo, os resultados eleitorais abaixo das expectativas etc.
Na encruzilhada
1992 deve ficar na história como o ano da “ética na política”. Mas poderia ser lembrado, também, pelo massacre do Carandiru, pelos arrastões, pela vitória de Maluf na eleição paulistana e pela “absolvição” de Quércia na CPI da Vasp.
Esses sinais contraditórios revelam os limites de um país que vem aperfeiçoando sua institucionalidade democrática, mas que continua hegemonizado por uma elite conservadora, num contexto de deterioração cada vez mais aguda das condições de vida da maioria da população.
É improvável que essa situação ambígua prossiga indefinidamente. Mesmo Francisco Weffort, insuspeito de radicalismos, pensa que “são pequenas as chances de sobrevivência da democracia em países que passam por severa e prolongada crise econômica. No Brasil continuamos sem rumo, afundando no pântano de uma permanente crise de governabilidade”[3].
Este problema não é só nosso, nem se restringe ao chamado Terceiro Mundo. Uma de suas consequências é a marginalização econômica, política e social de um setor bastante significativo da população, o que, num contexto de crise do socialismo, tem fortalecido não exatamente a direita tradicional, mas principalmente movimentos, partidos e candidatos que se apresentam como não-políticos, extra políticos, anti-establishment: Ross Perot, Fujimori, Collor, o nacionalismo e o neonazismo são expressões (diferenciadas, é claro) disso. Quanto à direita tradicional, vem tentando se reciclar, adotando um discurso populista (como fez Maluf).
É evidente que esta nova situação impõe ao PT a necessidade de atualizar sua política. Mesmo com as lacunas conhecidas, foi isso que tentamos fazer no lº Congresso. Entretanto, as posições mais à direita, derrotadas naquela ocasião, são as que parecem ter maior influência no interior da direção partidária, resultando numa política cujos principais elementos são: o privilégio concedido à institucionalidade, em detrimento da mobilização e organização social; uma política de alianças que perde de vista a necessidade de manter diferenciado o perfil partidário; uma ação governamental que desvincula as dimensões política e administrativa, privilegiando esta última; uma concepção de construção partidária antidemocrática, que facilita a diluição das instâncias, que não colabora para reduzir a distância entre direção e bases, que facilita a autonomização dos “notáveis”, a quem se reservam as grandes decisões, à revelia ou inclusive contra as bases; uma concepção que desestimula a ação partidária nos movimentos sociais; um discurso ideológico que abandona progressivamente os valores socialistas, em favor de valores socialdemocratas e até liberais; e uma estratégia que não apenas perde de vista a necessidade de rupturas revolucionárias, mas que parece apostar num inexistente espírito democrático e legalista das elites brasileiras.
Como subproduto desta política que joga suas fichas no jogo institucional, em detrimento da organização social e partidária, crescem a falta de ética, o aparelhismo, o desrespeito à democracia, o cupulismo, a disputa de feudos entre parlamentares.
A integração à ordem
A militância está cada vez mais preocupada com a possibilidade de o PT se transformar num partido igual aos outros. O processo está apenas no início, mas já provoca desencanto, angústia, perplexidade e falta de perspectivas em muitos petistas.
O que será de nossa democracia interna, se é cada vez maior a distância entre a base e a direção? O que será de nosso projeto coletivo, se tantas personalidades do partido priorizam seus projetos pessoais? O que será do partido das transformações sociais, se nossa ação política é cada vez mais ditada pelo calendário eleitoral e pelos limites institucionais? O que será de nossa organização de base, se cada vez se dá menos atenção à relação com os movimentos sociais? O que será de nossa unidade de ação, se boa parte do tempo de nossos sindicalistas é gasto em lutas internas, onde se admite todo tipo de baixaria? O que será da diferença, se começamos a realizar alianças que diluem o nosso perfil? O que será do socialismo, se o apresentamos como algo distinto da modernidade e da cidadania?
Para deter a desagregação partidária, não basta, ainda que seja necessária, uma reforma ética. É preciso, antes de mais nada, uma reorientação política. Porque os desvios éticos presentes no PT alimentam-se de uma estratégia eleitoreira, que pretende construir um partido de notáveis e que sucumbe aceleradamente diante da ilusão que encantou o Partido Comunista: a crença na vontade democratizante e reformadora da burguesia brasileira.
Nosso partido está ameaçado, hoje, pelo mesmo mal que vitimou outros partidos de esquerda, que não conseguiram resistir às pressões e à força do status quo, transformando-se em força auxiliar de partidos burgueses – como aconteceu com os comunistas durante a Nova República – ou sendo simplesmente cooptados. Este é o caso dos socialistas, comunistas (e inclusive petistas) que se deixaram engolir pelo PMDB. Descrentes na capacidade de mudança a partir de baixo, superdimensionando as possibilidades da ação institucional/estatal, importantes segmentos do PCB, do PCdoB, do MR-8 etc. terminaram convertendo-se em quadros orgânicos da burguesia, particularmente do quercismo. Um fenômeno similar ameaça hoje o PT, favorecendo as tendências gradualistas, reformistas, eleitoreiras.
Nossa ligação “com as bases”, antídoto natural para os riscos da cooptação, não parece mais ser suficiente. Além daqueles laços estarem fragilizados, já faz tempo que o centro de gravidade da ação partidária reside nos governos, nos parlamentos, nos processos eleitorais.
Extremamente positiva, a força institucional do PT contém contrapartidas:
1.Cresceu o número de militantes envolvidos na institucionalidade, como parlamentares, prefeitos, assessores, secretários municipais etc., ao mesmo tempo em que se reduziu a participação da militância não profissionalizada;
2.Aumentou o tempo dedicado pelo partido – seus militantes e dirigentes – às questões institucionais, especialmente eleitorais, ao mesmo tempo em que se reduziu nossa ação organizada junto aos movimentos sociais;
3.Cresceu a dependência política e financeira do partido frente ao Estado, ao mesmo tempo em que se reduziram as contribuições militantes.
Na ausência de mecanismos que compensassem estes fenômenos, modifica-se progressivamente o perfil do partido, reduzindo-se a sua sensibilidade diante dos temas populares e sua ligação com os movimentos sociais. Pouco a pouco, o PT elitiza-se.
O movimento sindical cutista também experimenta um processo semelhante. Cresce o peso das máquinas sindicais, dos aparelhos, do número de profissionalizados – sem que isto corresponda a uma ação mais orgânica, a uma maior organização de base – num ritmo ainda mais intenso do que o experimentado pelo partido. Note-se que a estrutura partidária continua muito aquém do necessário e muito inferior ao porte do braço sindical e do braço institucional.
Este processo de institucionalização resulta de nossas vitórias parciais, e seria pura ingenuidade imaginar que o PT pode crescer sem modificar-se. Maior ingenuidade, entretanto, é só enxergar o lado positivo da institucionalização. É o que acontece com parte da militância, que superestima o papel das disputas eleitorais, em relação às outras dimensões da luta política, social e ideológica. É em boa parte por isto, aliás, que há pré-candidatos ou candidatos capazes de comer o fígado de companheiros, para viabilizar suas pretensões, mas sempre achando que agem em nome da causa…
Como resultado, o partido perde espaço frente ao candidato, a militância perde peso diante do eleitorado, o programa corre o risco de se converter numa peça eleitoral, o eleitoralismo estimula o individualismo e a atomização da política, servindo de porta de entrada para comportamentos que a prática parlamentar ou governamental termina solidificando.
A falta de solidariedade, o individualismo e o vale-tudo cresceram no PT à medida que cresceram nossos laços com a institucionalidade. Mas só se tornaram um fenômeno ameaçador quando foram potencializados pela crise do socialismo, pela exaltação dos valores neoliberais, pelo clima de salve-se quem puder típico dos períodos de recessão e também pelo fortalecimento, dentro do partido, dos setores que defendem uma estratégia eleitoreira.
Por isto achamos que superar a falta de solidariedade e o individualismo; combater as mentiras e o mandonismo; extirpar o clima de desconfiança e restabelecer a democracia interna; evitar que as eleições sindicais sejam tomadas pelos métodos burgueses de disputa; restaurar a solidariedade partidária, socialista e petista… tudo isto exige a criação de anticorpos que minimizem a absorção do partido pela institucionalidade; exige restaurar a estratégia democrática e popular, que não se resume em eleições; exige combater a estratégia eleitoralista, que estimula a atomização da ação partidária, o individualismo e o privilégio para os eleitos e mandatários.
Exige, inclusive, a adoção de uma ética que não se limite ao comportamento dos políticos frente à coisa pública, mas que inclua entre seus temas o combate à miséria, à marginalidade, à pobreza – tudo aquilo que Cristovam Buarque chama de “ética das prioridades”.
Naturalmente não podemos nos iludir: numa sociedade como a nossa, é impossível construir um partido puro, imune ao que acontece a seu redor; cabe lembrar, também, que a luta política é espaço propício para o surgimento de comportamentos que, vistos de uma perspectiva socialista, são mais que condenáveis; além disso, os desvios éticos não surgiram agora, já se fazendo presentes noutros momentos da vida do partido; só que hoje o fenômeno atingiu tal intensidade que se constitui numa ameaça à coesão partidária. Entretanto, para conseguir mais ética, é preciso combater a política que facilita a falta de ética: o eleitoralismo, o institucionalismo.
Reafirmar a estratégia
Mais que uma fonte de desvios em relação aos princípios e a ética partidária, o institucionalismo é um jeito de fazer política, de acumular forças, de se relacionar com a população e os movimentos sociais, de conceber a política de alianças. Trata-se de uma estratégia política muito diferente daquela que o partido defende em seus documentos e resoluções, uma estratégia que se alimenta do desencanto frente às alternativas revolucionárias e que se sustenta numa brutal confusão entre governo e poder.
O PT sempre reservou um lugar importante, na sua estratégia, para a luta institucional e eleitoral. E não apenas temos conseguido ampliar nossa força nos legislativos e nos executivos, como também foi por aí que quase provocamos aquela que teria sido a maior derrota das classes dominantes, em toda a história do Brasil: a eleição de Lula presidente da República.
Contudo, a disputa do poder político envolve muito mais do que a conquista de governos e mandatos. E a luta institucional só contribui para a conquista do socialismo quando combinada com a mobilização social e com a disputa ideológica. Quem esquece isto, quem deixa de ver a luta institucional como uma das dimensões da luta de classes, termina considerando o caminho para o poder como um acúmulo de vitórias eleitorais.
A estratégia estabelecida pelo PT, desde 1987, supõe – explícita ou implicitamente – algumas condições para o sucesso de um governo democrático e popular: o apoio do movimento social organizado, das instituições progressistas e de um arco de alianças políticas e sociais; a adoção de medidas de impacto que, embaladas no apoio inicial que todo governo tende a desfrutar, possam consolidar posições junto ao grosso da população; a capacidade de gerenciar o governo, evitando ao máximo quaisquer pretextos para uma ação desestabilizadora; uma política de relações internacionais que, granjeando apoio na Europa e América, iniba ações golpistas, boicotes e que tais; e a recusa em dissociar os sucessos eleitorais e institucionais de uma perspectiva revolucionária de transformação social.
De 1987, quando se desenhou mais claramente essa política, até hoje, muita coisa mudou. De saída, perdemos o elemento surpresa: as elites sabem de nosso potencial para vencer as eleições. Por isso mesmo, consideram a adoção do parlamentarismo, ao mesmo tempo em que buscam construir alternativas para enfrentar a próxima disputa presidencial, sendo improvável que se repita o ocorrido em 1989, quando as elites, para evitar o mal maior, tiveram que optar por um aventureiro.
De 1987 até hoje, a crise brasileira aguçou-se, aumentando a urgência das reformas políticas, econômicas e sociais necessárias à sua superação e, com isso, sugerindo um início de governo mais radicalizado do que supúnhamos em 1987 e esperávamos em 1989.
A situação internacional modificou-se substancialmente: o chamado campo socialista não existe mais, a Europa inclinou-se consideravelmente à direita, evoluiu negativamente a situação na América Latina. Como resultado, os fatores de inibição à política agressiva e conservadora dos EUA são bastante diminutos.
Mais grave que tudo isto, os movimentos sociais encontram-se numa situação difícil, não apenas por efeito da recessão, mas também por conta da crise política que se abateu sobre vários deles, somados ainda às disputas internas ao PT e às desilusões produzidas por parte dos governos municipais petistas.
Por último, a crise político-ideológica que se abateu sobre a esquerda colocou em questão, para muita gente, elementos essenciais da estratégia e do pensamento socialista, como a noção de que não pode haver socialismo sem revolução.
O quadro apresenta-se, portanto, muito mais complexo e difícil do que nos anos anteriores. Como enfrentá-lo? Quais as alterações necessárias em nossa estratégia?
Um horizonte difícil
Quando as coisas estão difíceis, não cabe aos socialistas esperar dias melhores; cabe sim lutar por dias melhores. Mas é importante ter em mente quais as perspectivas desta luta, quais as forças com que se conta, quais os obstáculos a superar.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que dias piores virão. Apesar da onda neoliberal ter esgotado seus atrativos, isso não nos faz prever o início de um período mais positivo para as forças de esquerda. Ao contrário, o recuo das forças socialistas, a ofensiva político-ideológica do capitalismo e o crescimento do conservadorismo racista e militarista de extrema direita são fenômenos que devem durar ainda bastante tempo.
Mesmo sem desconsiderar a possibilidade de vitórias pontuais ou de resultados positivos para a esquerda, devemos estar preparados para uma luta de longo curso e bastante difícil.
Esta maneira de considerar a situação não nos leva a minimizar as potencialidades da luta pelo socialismo no Brasil: somos um dos poucos países do mundo onde existe um movimento político-social de massas, sindical e popular, fortemente influenciado por uma esquerda radical, independente e socialista, que conseguiu acumular significativas vitórias ao longo dos últimos doze anos.
Mesmo aqui, entretanto, temos que considerar o forte impacto – político e principalmente ideológico – da dèbâcle do chamado campo socialista e, de uma maneira geral, da alteração na correlação de forças em nível mundial. Some-se a isto o efeito devastador de uma prolongada recessão, cujos efeitos são reforçados pelas conhecidas mudanças no processo de trabalho, que atingem em cheio a classe trabalhadora, especialmente seu setor industrial. E, finalmente, é preciso levar em conta o fenômeno, já comentado, da cooptação pela institucionalidade.
Entretanto, não é só o campo popular que enfrenta graves problemas. No Brasil, a burguesia tem motivos de sobra para estar preocupada: a abertura planejada pelos militares foi atropelada pelas Diretas Já; a transição negociada sob Tancredo resultou na instável Nova República de Sarney; a Constituinte de centro-direita resultou numa constituição, sob vários aspectos, mais progressista do que eles desejavam; as eleições diretas quase resultaram na vitória de um socialista; e o paladino do neoliberalismo revelou-se príncipe da corrupção.
A instabilidade política, principal marca dos últimos quinze anos, possui uma causa básica: nem as elites conseguiram impor completamente seu projeto aos trabalhadores, nem a oposição democrática e popular conseguiu reunir forças para impor um caminho alternativo ao das classes dominantes. Como resultado, a situação econômica e social do país vem deteriorando-se progressivamente, sem que se consiga dar início a um novo ciclo de desenvolvimento, mesmo do ponto de vista do capitalismo.
É improvável que esta situação se estenda por muito mais tempo – e, se o fizer, será às custas da estagnação, do agravamento das condições de vida da população, e de tornar crônica a crise política.
São basicamente três os desenlaces alternativos para esta situação: ou bem a burguesia impõe uma derrota profunda à organização sindical e popular, aos partidos de esquerda e aos setores reformistas da sociedade civil, o que nas condições atuais exigiria uma ruptura com a legalidade; ou bem a burguesia coopta um setor da oposição democrática e popular, estabelecendo o tão sonhado pacto social; ou as forças de esquerda conseguem virar o jogo. O objetivo do PT deve ser no sentido de viabilizar este último desenlace. É a partir desta perspectiva que enxergamos nossa intervenção na conjuntura atual.
A instabilidade pode ser democrática
A instabilidade no Brasil é social: a decadência, a marginalização, a piora nas condições de vida estabelecem uma tensão surda, um ruído de fundo, uma guerra civil de baixa intensidade. A instabilidade é econômica: há mais de uma década fala-se da crise do modelo econômico, sem que outro tenha sido erguido no lugar. A instabilidade também é, evidentemente, política: não custa lembrar que até ontem Fernando Collor era celebrado por ter introduzido “novos temas” na agenda nacional. Vê-se agora que “novos temas” eram aqueles.
Diante de um país tão instável, as elites – e não só elas – promovem uma espécie de culto à estabilidade. Assim tem sido celebrado, por exemplo, por importantes órgãos da imprensa brasileira e internacional, o afastamento de Collor e seu julgamento: como uma prova da maturidade da nação. Enfim uma crise de porte é enfrentada por meios constitucionais.
A moral da história é bem diferente da exposta acima. Mais uma vez ficou evidente a profunda instabilidade do país. Mais uma vez ficou patente a incompetência das elites em gerar um projeto nacional que possibilite superar a crise e deflagrar um novo período de crescimento do país.
Essa situação nos faz lembrar que, no Brasil, as grandes mudanças sociais e políticas sempre foram produto combinado de acordos por cima e golpes de força articulados pela classe dominante. A tentativa presente – de transitar para um novo período histórico, com acordos por cima, mas sem o recurso a golpes ou medidas do gênero – é em boa medida inédita e, do ponto de vista das elites, sem sucesso.
Isto decorre de duas razões principais: a primeira é que não se construiu um consenso, ou algum tipo de hegemonia, entre as classes dominantes, sobre o projeto nacional que substituirá o modelo parido pela ditadura e atualmente moribundo[4].
Isto, por sua vez, impossibilita aos militares apresentarem-se como “promotores da nova ordem” (leve-se em conta, também, os desgastes da recente experiência ditatorial; o novo contexto internacional; a proposta de criar uma força armada internacional, reservando-se aos militares tarefas policiais; e a desestruturação do aparelho produtivo estatal, que juntos provocam bastante confusão entre os militares).
A outra razão é também simples: a oposição democrática, popular e socialista vem conseguindo, até agora, obstaculizar as tentativas que a burguesia tem feito para aplicar o(s) seu(s) projeto(s).
Nisso reside o paradoxo da situação: não temos força suficiente para impor o nosso projeto (que não está tão claro qual seja), mas eles também não conseguem aplicar completamente o deles (que tampouco está claro). Em parte porque não existe o projeto da burguesia; em parte porque somos fortes demais para sermos derrotados apenas por meios institucionais – e, na ausência de maiores riscos à dominação burguesa, não parece ser possível, nem parece valer a pena adotar, de momento, outros meios.
Incapazes de nos derrotar, as classes dominantes fazem seguidas tentativas de cooptar a esquerda, que até o momento vinham se chocando contra a nossa teimosa insistência em dizer não. Nisso pesavam tanto os vínculos sociais do partido, que o punham em guarda contra os acenos das elites, quanto a orientação estratégica do PT, que pelo menos até agora vinha se mantendo distante do tradicional adesismo comunista. É exatamente por isto que nos preocupa a atitude do PT diante da crise do governo Collor.
As classes dominantes fizeram de tudo para evitar que a crise atingisse também o projeto neoliberal e as elites que o sustentaram. Para isso, elas desenvolveram toda uma operação ideológica, que visava estabelecer um cordão sanitário que protegesse – a elas e a seu projeto – da podridão collorida.
Diante disso, era de se esperar que o PT mirasse não apenas Collor, mas também o projeto neoliberal e as elites. Não foi esse o tom, entretanto, da intervenção do partido no movimento Fora Collor. A partir de uma posição correta – a necessidade de estabelecer alianças que garantissem o impeachment – nos colocamos muitas vezes na posição de fiadores do processo e, em nome disso, agimos com cautela desnecessária na hora de defender nossas próprias posições.
Para afastar Collor, preservando a “agenda modernizante”, as classes dominantes desenvolveram também uma operação política, para comprometer a oposição democrática e popular com o esquema de poder que seguiu-se ao day after.
Nesse particular, o sucesso da operação foi praticamente completo. Incorporaram-se ao governo Itamar não apenas quase todos os partidos de esquerda, mas até o PT foi comprometido – pois participou das discussões sobre a composição do governo e da indicação (envergonhada) de Walter Barelli – situação que poderia ter se agravado se o Diretório Nacional, numa histórica votação, não tivesse deixado claro que nosso lugar é na oposição.
Nesse episódio todo, o comportamento da Executiva Nacional do PT revelou uma tendência muito forte à conciliação. O que teve início ainda antes do movimento Fora Collor, quando o partido adotou uma tática recuada. O que teve prosseguimento durante o movimento Fora Collor, com a aproximação do PT e dos setores da oposição conservadora, com o risco de confundir perfis – coisa que não ocorreu, em boa medida, graças ao “sectarismo” de nossa base. O que fica também evidente na discussão sobre o governo Itamar, quando alguns querem participar do governo, e outros consideram como nossa tarefa contribuir para a governabilidade de Itamar.
Essa tendência conciliatória presente na Executiva Nacional do PT vincula-se a uma concepção incorreta que vem crescendo no partido, acerca do papel do PT e das eleições de 1994. Trata-se de uma somatória de posições, de atitudes e de concepções que abrem caminho para uma estratégia alternativa, profundamente diferente daquela que o PT vem defendendo ao longo dos últimos anos.
O institucionalismo
A hipótese estratégica central do PT é conhecida: nosso caminho para o poder passa por ser governo. Trata-se, sem dúvida, de uma política bastante arriscada – como de resto a experiência chilena já demonstrou.
Afinal, mesmo desalojadas do governo federal, as elites manterão suas relações internacionais, seu poder econômico, sua influência sobre os meios de comunicação e as forças armadas, sua presença no legislativo, no judiciário e noutros níveis do executivo e da burocracia governamental – e, a partir de lá, tudo farão para cooptar, submeter, desestabilizar ou, no limite, inviabilizar a execução do programa democrático e popular.
Por isso, criar as condições para uma vitória eleitoral – por exemplo, em 1994 – é também criar as condições que tornarão possível aplicar o nosso programa, ou seja, governar. E é dos desdobramentos concretos da vitória e da ação governamental que pode, ou não, resultar um avanço no sentido do socialismo.
Ocorre que um programa democrático e popular atenta, necessariamente, contra interesses solidamente estabelecidos, porque está estruturado em torno de um objetivo central: incorporar ao Brasil, às vidas econômica, social, política e cultural, a enorme maioria de nosso povo, que encontra-se marginalizada. Uma operação desta magnitude supõe impor uma derrota profunda às elites.
Considerado de um ponto de vista estritamente eleitoral e institucional, trata-se de um problema de difícil solução: afinal, a maioria das forças políticas que podem se aliar a nós rejeita a radicalidade das reformas que propomos; assim, ou bem não conseguiríamos vencer, por falta de alianças; ou bem não conseguiríamos governar, por falta de aliados.
A solução que setores do partido têm apresentado para este problema é muito simples: trata-se de rebaixar nosso programa, viabilizando assim a criação de um arco mais amplo de alianças, o que possibilitaria tanto a vitória eleitoral, quanto o governo. É claro que isto dilataria no tempo a execução das reformas necessárias ao país. Mas seria um caminho mais seguro do que o aventureirismo de querer vencer e governar sozinhos.
O bom senso deste argumento é apenas aparente e esconde um paradoxo: supondo que fosse factível compor, em torno do PT, o arco de alianças com que sonham tantos setores do partido, teríamos como resultado não um governo democrático e popular, disposto a realizar reformas estruturais na perspectiva do socialismo; mas sim um governo cujo limite máximo seria enfrentar a crise brasileira, nos marcos do capitalismo[5]. Noutras palavras: a aliança não se daria em torno de nós ou de nosso programa, mas em torno de outro programa e forças políticas[6].
Pode até ser que um governo federal petista não consiga aplicar o programa democrático e popular e que, efetivamente, termine mantendo-se nos estritos limites do capitalismo. A questão, contudo, não é saber se conseguiremos ir até o final na aplicação do programa, ou se ficaremos pela metade; o que está em questão é saber se nós vamos tentar criar as condições para aplicar até o final nosso programa. O risco que se esconde por trás dessa busca desesperada pela ampliação do leque de alianças é, já de saída, desistirmos de boa parte de nossos objetivos.
A história é bastante cruel com quem age desta maneira. Conseguiríamos no máximo a desconfiança e o desânimo de nossas bases sociais e eleitorais, sem conquistar outros setores. E, diga-se de passagem, sem reduzir a animosidade das elites contra nós[7] – como demonstrou a recente campanha eleitoral, especialmente na cidade de São Paulo.
O mais grave, contudo, é a hipótese que está subjacente àquela proposta: a de que o Brasil poderia experimentar, sem rupturas maiores, uma sequência de governos reformistas, democráticos e progressistas. Somente este horizonte torna razoável defender que o PT suavize agora suas reivindicações e adote uma estratégia gradualista.
Quanto pior, pior
As forças de esquerda precisam pensar mais sobre as consequências políticas da acelerada degradação das condições de vida da maioria de nosso povo. Há mais de uma década que as liberdades políticas vêm se ampliando, há mais de uma década que os movimentos sociais pelejam por reformas parciais, e há mais de uma década aumenta o número de pessoas que estão abaixo da linha da miséria.
A miséria, quando se apresenta desorganizada, é facilmente manipulável pelas forças de direita, que a utiliza não apenas como instrumento de pressão contra os assalariados e os setores médios, mas também como reserva eleitoral e, inclusive, pretexto para defender governos fortes e soluções policiais para as questões sociais, o que encontra apoio inclusive entre os próprios miseráveis – que aliás parecem ter ganho muito pouco com a democracia.
Sabemos que, por mais revolucionário que seja um governo federal petista, o processo de elevação das condições de vida da maioria do povo será necessariamente lento. Por isso mesmo, trata-se de correr contra o tempo, porque as demandas são enormes e certamente serão amplificadas diante de um governo de esquerda, que desperta expectativas de mudança rápida.
Se não soubermos administrar estes elementos – a expectativa, a esperança, que, aliás, são os principais motivos que levam as pessoas a votar num partido socialista – se o principal componente de nossa estratégia for a moderação, corremos o risco de ser abandonados exatamente pelos que confiaram em nós[8].
A alternativa – temida por alguns, sonhada por outros – de um governo moderado, que decepcionaria os setores mais radicais de nosso eleitorado, mas que conseguiria levar a cabo reformas de base no país, não nos parece sustentável nem convincente. Cabe perguntar: o povo sustentaria um governo que não o defende? A direita permitiria um governo de esquerda sem apoio popular?
O Chile mostrou que a estratégia gradualista, moderada, do passo a passo, pode terminar em tragédias maiores do que o aventureirismo vanguardista.
Sem ilusões
A política apresentada por setores do partido – rebaixar o programa, ampliar o leque de alianças, moderar a oposição, reduzir o horizonte de nosso governo – nos parece a pior tática possível.
Em primeiro lugar, porque a tradição das elites brasileiras nunca foi a de negociar ou tolerar as ações independentes dos “de baixo”. Aqui, ao contrário da Europa, em que a burguesia em parte aceitou, em parte viu-se forçada a deixar que forças de esquerda administrassem por ela a crise do capitalismo, as elites brasileiras não têm largueza de visão nem prática democrática.
Ademais, as elites possuem suas próprias alternativas para enfrentar as eleições de 1994, podendo dispensar uma eventual aproximação com o PT. Mesmo forças que hipoteticamente estariam mais próximas de nós – o PDT, o PSDB – além de possuírem alternativas próprias, demonstraram um tal nível de vacilação diante do governo Collor que nada garante que, em 1994, aceitem marchar conosco. O PSDB, aliás, mostrou que possui setores suscetíveis inclusive ao malufismo, ao mesmo tempo em que sua principal estrela – o senador Mário Covas – recusou-se a gravar seu apoio a Suplicy[9].
O caminho para o PT crescer – e inclusive conquistar a base social de outros partidos – é semelhante ao que seguimos durante a Nova República: a oposição radical, sem subterfúgios, sem meios-termos, sem ambiguidades, evitando ao máximo confundir, perante o povo, nosso perfil com o dos demais partidos.
Mostrar nossas diferenças em relação a “tudo que está aí” é essencial, inclusive para ganhar o apoio das maiorias desorganizadas, marginalizadas, “descamisadas” da sociedade[10]. Sem ganhar estes setores, será muito difícil sustentar um programa consequente de reformas. Mas para fazê-lo teremos que mudar nosso discurso e nosso jeito de fazer política; executar uma ação governamental que incorpore à atividade econômica os milhões de deserdados sociais – condição imprescindível para lhes assegurar uma cidadania política que não seja meramente formal; e aprender a trabalhar com o imaginário, o simbólico, e nos dotarmos dos mecanismos de comunicação que viabilizam fazê-lo massivamente.
Naturalmente, é improvável que consigamos, no curto espaço de dois anos, dar conta das tarefas acima relacionadas. Entretanto, uma das maravilhas da luta política é que se pode conseguir em um dia o que poderia demorar anos. Por isso é que só conseguimos conceber a vitória de Lula, em 1994, num contexto de radicalização de paixões, de disputa política aguda, em que nós despontemos como a única força disposta de fato a realizar reformas profundas na sociedade brasileira.
Raciocínio semelhante aplica-se ao governo. Uma coalizão de esquerda só se sustentará caso leve até o fim seu programa. É ilusão achar que, transigindo em nossos objetivos, será possível evitar retaliações de uma direita consideravelmente mais forte. Ao contrário, só uma política radical – leia-se, a que vai até o máximo que nossas forças permitem – criará as bases populares e institucionais para um governo democrático e popular.
Em resumo: uma política baseada num acordo de cavalheiros, na ampliação do nosso leque de alianças à custa de um programa de reformas mais tímido, bem como à custa da redução do nível de ação e de radicalidade da esquerda, só serviria para reduzir o nosso poder de fogo, debilitando o cacife que poderia forçar outros setores a negociar conosco.
O caminho da conciliação desmoraliza o PT, desfigura a esquerda. Nos faz perder apoios orgânicos e eleitorado. Nos enfraquece. Enfim, é o caminho para uma derrota em 1994.
Eleição sem organização?
Partimos da hipótese de que o caminho para uma vitória eleitoral consequente em 1994 deve combinar dois movimentos, em certa medida contraditórios. De um lado, uma oposição radical ao governo de plantão, às elites, à sua política econômica, a seus partidos, que nos apresente como o que de fato somos: uma alternativa a “tudo que está aí”.
Ao mesmo tempo em que firmamos um perfil político-ideológico diferenciado no plano nacional, devemos consolidar apoios sociais, partidários, institucionais, de massa, à política concreta de reformas sociais, econômicas e políticas que estamos defendendo. O que só se fará, aliás, se tivermos estabelecido aquelas diferenças.
Este duplo movimento é necessário para evitar ao máximo que nossa eventual vitória nos encontre sem uma retaguarda social mobilizada e organizada. E isto é fundamental, porque não acreditamos que um governo democrático e popular seja outra coisa senão um governo de crise, de enfrentamentos.
A principal qualidade de um governo democrático e popular deve ser a capacidade de articular apoios políticos, especialmente de massa. Isso exige mais que capacidade de gerenciar o cotidiano; exige mais que competência técnico-administrativa e honestidade.
Se queremos aplicar um programa democrático e popular na perspectiva do socialismo, carece ainda retomar nosso discurso socialista, nosso combate ideológico ao neoliberalismo, nossa crítica aos fundamentos da modernidade que o discurso hegemônico apresenta como disfarce[11].
É evidente que uma política deste tipo supõe um lugar destacado para a ação orgânica do partido: preservar e ampliar nossa estrutura militante, garantir o bom funcionamento de nossas instâncias democráticas, integrar a política das bancadas e das prefeituras à política do conjunto do partido, garantir uma efetiva coordenação entre a ação partidária e a ação dos movimentos sociais a nós ligados etc. E tudo isto, por sua vez, pressupõe uma política e uma direção dispostas a isso.
Ao mesmo tempo em que nos empenhamos pela vitória de 1994, é preciso também levar em conta os possíveis cenários alternativos. Por exemplo, uma derrota – seja no primeiro, seja no segundo turno – pode provocar uma crise profunda na militância, que tem sido levada a imaginar a próxima eleição presidencial como a hora da onça beber água.
Outro cenário possível é o da vitória da esquerda, mas sob regime parlamentarista e com um Congresso oposicionista. Um terceiro cenário, comum em países como o Brasil, é o da interrupção total ou parcial do processo democrático. Nunca é demais lembrar que crises como a que o país está vivendo agora sempre foram solucionadas manu militari.
A existência de cenários alternativos ao Feliz 94 deve servir como um alerta de que nosso caminho para o poder passa por vitórias eleitorais e por um governo democrático e popular somente no caso de manterem-se as condições atuais da luta política. E mesmo nesse caso, o caminho para o poder passa pelas eleições, mas não se limita nem se reduz a elas.
[1] Folha de S. Paulo, 19.12.1992.
[2] Linha Direta nº 112, de 20 a 26 de novembro de 1992.
[3] Folha de S. Paulo, 6.12.92.
[4] Aliás, tenho grandes dúvidas sobre se a burguesia brasileira é capaz de gerar um projeto nacional semelhante aquele que orientou a ação dos militares durante a ditadura. Nesse sentido, a própria burguesia passa por um teste: ela conseguirá, sem ditaduras, sem golpes, sem intervenção militar, formular um projeto hegemônico e ganhar apoio social e político para implantá-lo? Como já disse, tenho dúvidas sobre isso. Até porque uma das condições para a formulação de um projeto desta natureza seria a existência de uma alternativa democrática e popular consistente, o que também não existe de maneira muito clara. Com isso, na ausência – de um lado e de outro – de projetos nacionais mais definidos e antagônicos, o país vai descambando.
[5] Como disse o prefeito de Goiânia, Darci Accorsi, “se o Lula assumir a presidência da República, em 1994, o que ele vai fazer é gerir a crise do capitalismo”. (Brasil Agora nº 29, de 7 a 20 de dezembro de l992).
[6] É por isso que julgamos extremamente oportuna a crítica que César Benjamin dirigiu às Diretrizes para um programa emergencial de política econômica: “É uma tragédia; estamos perdendo nossa capacidade crítica e deixando de ser um partido de reforma social, justamente no momento histórico em que essa bandeira é mais importante para o Brasil(…) Reformismo, no PT, está virando doença infantil.” (Brasil Agora nº 30, de 21 de dezembro a 29 de janeiro de 1993).
[7] Afinal, não estamos na França ou na Espanha, onde uma elite mais arejada – é verdade que às custas de duas guerras mundiais, de uma guerra civil, das pressões combinadas do movimento socialista nacional e internacional – aceitou que partidos socialistas executassem o programa neoliberal. Nossa burguesia não é suficientemente esclarecida.
[8] Foi em certa medida o que ocorreu l988 quando conquistamos os votos “descamisados”, que foram atraídos por Collor em l989 e por Maluf em 1992. Paradoxalmente, a administração democrática e popular realmente priorizou os investimentos sociais e a periferia. O que reforça a ideia, em nosso entender, de que não basta “inverter as prioridades” administrativas sem, simultaneamente, travar a batalha política – perdida pela administração e pelo conjunto do PT em episódios como o IPTU ou a greve dos condutores. Registre-se que André Singer, numa análise publicada pela Folha de S. Paulo em 13.12.92, argumenta num sentido exatamente oposto.
[9] Apesar disso, há setores do Partido embevecidos com a possibilidade de compor uma aliança com o PSDB ainda no primeiro turno de l994, fingindo não ver que sua atitude na eleição paulistana sinaliza qual a perspectiva do PSDB: tentar ocupar o centro, que as dificuldades do quercismo ameaçam deixar vago. E para isto, nada mais improvável do que uma aliança entre o PSDB e o PT – salvo se o PT quiser ocupar lugar secundário nesta aliança.
[10] Numa palestra feita no Instituto Cajamar, Eric Hobsbawm bateu exatamente nesta tecla: para ele, vivemos um período histórico onde as forças anti-establishment de direita têm conseguido capitalizar a insatisfação popular contra a política e os políticos. A vantagem relativa do PT é exatamente não ser visto como parte integrante do establishment. Cauteloso, Eric Hobsbawm acrescentou a esta última frase um “hasta la fecha”…
[11] Isso supõe, como diz Emir Sader, em artigo publicado no Brasil Agora nº 25, de 12 a 25 de outubro de 1992, enfrentar “o risco da cooptação da esquerda por parte das elites tecnocráticas derrotadas na versão Collor, mas revividas política, ideológica e tecnocraticamente em parte não desprezível da oposição”; enfrentar “a força ideológica acumulada pelo neoliberalismo, inclusive na esquerda e no próprio PT”, expressa por exemplo numa “estranha comunidade de parlamentares economistas, que convivem no Congresso de forma promíscua ideologicamente, como se os imperativos técnicos da economia se impusessem sobre as prioridades políticas e sociais. Basta recordar como o plano Collor chegou a ser saudado por economistas do PDT, do PMDB e do próprio PT”.