Sobre a russofobia

Por Rubens Figueiredo (*)

Pode haver exceções, mas em regra a origem dos preconceitos não é natural, espontânea, cultural nem mesmo diretamente política. O preconceito é fruto de um interesse ou pressão material, do impulso de reduzir a concorrência e, de certo modo, é um aspecto da disputa pelos recursos escassos: excluídas as mulheres, os nordestinos, os pobres, os negros etc. dos setores mais vantajosos, as chances de quem não é nada disso são maiores. O procedimento pode se manifestar em vários níveis, desde a esfera privada até a ordem dos Estados. Depende da intensidade da disputa.

Alguns preconceitos que mencionei acima são, hoje, em certos casos, combatidos com honras de Estado. Mas há outros que são autorizados e fomentados também com honras de Estado. Prova de que o problema não são os preconceitos ou as injustiças em si, mas sim quem exerce o preconceito e contra quem ele é exercido. O problema não é a moral ou o direito ou a lei, mas quem os exerce e contra quem eles se voltam, tema de fundo, aliás, do romance Ressurreição de Tolstói, por exemplo

Em nosso tempo (falando em grande escala), um dos preconceitos fomentados, sem disfarces e até em tom festivo, é justamente a chamada russofobia. Em filmes, livros, noticiário, histórias em quadrinho, desenhos animados, uma pessoa como eu, por exemplo, desde que nasce, passa décadas sendo doutrinada a desprezar, desconfiar e temer esse povo. Caso contrário, ao identificar-se com eles de alguma forma, a pessoa vai sentir-se ameaçada de também sofrer os danos de que eles são alvo. Quando se trata de alguém que se interessa, com uma afeição especial, pela cultura, arte e história do povo russo, essa pessoa, na melhor hipótese, terá de pagar penitência, deixando claro que as qualidades das obras que ela tanto aprecia constituem ou uma exceção ou, de preferência, representam uma acusação velada, voltada contra o próprio país que, afinal, as engendrou.

Mas qual é a origem desse preconceito? Do ponto de vista da classe dominante dos EUA, a Rússia não pode existir. O presidente americano Woodrow Wilson (ampliando a tese inicial do general Pilsudski, presidente da Polônia) afirmou, na segunda década do século XX, que a Rússia devia ser repartida em vários pequenos países (a chamada balcanização). A tese fez fortuna ao longo dos anos e Zbiegniew Brzezinski (ex-conselheiro de Estado dos EUA) reafirmou o mesmo programa várias décadas depois, de modo mais detalhado. Acrescentando, aliás, que não interessavam aos EUA os países bálticos: o que importava, de fato, era dominar (ou “liderar”, segundo o seu eufemismo) a Ucrânia.

Mas por que fomentar tal preconceito? Também aqui, trata-se de eliminar a concorrência. É preciso impedir que a Rússia se desenvolva, pois seu potencial de desenvolvimento é grande demais: prova-o o fato, talvez único na história, de a Rússia ter sido destruída três vezes em 80 anos e ter se reerguido três vezes, praticamente sozinha. Refiro-me aos períodos entre 1914 e 1922 (Primeira Guerra Mundial, Revolução, Guerra Civil e intervenção estrangeira), entre 1941-1945 (invasão nazista) e à década de 1990 (fim da União Soviética, choque neo-liberal – a mais devastadora das três situações). Constata-se também, nesse processo, que é de todo indiferente o caráter do regime político ou do sistema econômico em vigor, na ocasião. Ou seja, o alvo não é um governante específico, mas a mera existência de um Estado e de um regime político minimamente organizados e estáveis. O grave, além disso, é a comprovada capacidade de o país desenvolver-se e, pior ainda, em grande parte, com recursos próprios, ou seja, de forma independente. Embora ele nunca tenha tido a chance, ou o tempo necessário, de levar mais longe essa capacidade.

Mudemos a perspectiva e vejamos um exemplo menor. Na ditadura militar, no Brasil, houve um breve período de forte desenvolvimento na década de 1970. Nos círculos governantes dos EUA, foi dado um alerta e uma frase repetida era: Não precisamos de um novo Japão na América Latina. Quanto ao Japão, eles já estavam cuidando de pôr um freio. Contra o Brasil, usaram os mecanismos da dívida externa para empurrar o país para trás. No caso da Rússia, no entanto, não se trata apenas de crescimento econômico, mesmo limitado, mas também do desenvolvimento paralelo de uma considerável força cultural, política e militar, a despeito dos recursos disponíveis para tanto serem incomparavelmente menores. Aqui, o preconceito é também uma arma de guerra: uma vez desumanizado, o inimigo poderá ser destruído impunemente. Este é, há mais de um século, o projeto reservado para a Rússia. E disso nem se faz segredo, como vimos acima.

A propósito, lembro que, quando Biden venceu Trump nas eleições de 2020, assisti pela internet a um debate na tevê russa entre dois historiadores, já idosos. Um deles fez uma declaração que me impressionou muito. Disse: com Trump, tivemos um adiamento de quatro anos, uma pausa para nos organizar um pouco. Mas agora eles vão querer terminar o que não conseguiram fazer na década de 1990. O historiador tinha em mente o destino de países como Líbano, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria. Todos esses países têm considerável relação histórica ou cultural com a Rússia e todos foram destruídos.

Observando de hoje, em retrospectiva, me parece que a russofobia era um preconceito apenas embrionário, quando comecei a me interessar pela literatura russa, na década de 1970, fase em que a Rússia fazia parte da União Soviética. Pois, nas últimas décadas, ele ganhou até foro de pseudociência, numa linha que lembra os argumentos de Gobineau, um dos filósofos do racismo no fim século XIX. É bastante revelador que tais experimentos tenham se exacerbado justamente na Ucrânia. Lá, prosperou a tese de que a Rus de Kíev (medieval) preservou a pureza da raça russa, ao passo que a Rússia de Moscou se contaminou com o sangue tártaro, em virtude da ocupação mongol. Não por acaso, em mais de um ensaísta americano, já li que Lênin e mesmo o atual presidente da Federação Russa têm traços mongóis, como se isso fosse uma explicação. Todavia esse racismo de feitio colonial clássico não é criação espontânea de ucranianos: foi implantado ali artificialmente, quase como num laboratório, por pressões externas, patrocinadas por organizações dos EUA, como a NED (Fundo Nacional pela Democracia, um belo nome), que recentemente apagou do seu site os financiamentos que distribuiu na Ucrânia. Afinal, não foram só laboratórios de “pesquisa biológica” que os EUA construíram naquele país.

Por último, o recente repúdio a obras musicais e literárias russas, o banimento e a perseguição eufórica de maestros e cantores russos, caso não assinem textos de cunho político contrário às suas convicções, a exclusão de óperas e filmes russos das programações, a chantagem sobre artistas e intelectuais que, de um lado, são ameaçados de terem as carreiras destruídas e, de outro, recebem promessas de impulso promocional caso cumpram um programa político que não parte da iniciativa deles mesmos – processos que estamos testemunhando em países que se intitulam civilizados e que se julgam portadores únicos da civilização –, eu comparo isso simplesmente com os monumentos históricos de Palmira, na Síria, destruídos pelo Estado Islâmico em 2015. Com indumentária, língua e cor de pele diferente, trata-se do mesmo fanatismo de um poder que se crê investido da autoridade de uma civilização superior e que, por isso, tem licenças excepcionais e exclusivas.

Dostoiévski e Tolstói tratam desse tema. Pois, em seu tempo, ambos eram, de ângulos diferentes, críticos acerbos da pretensão de superioridade da Europa. Eles usavam as formas literárias importadas da Europa como um espelho em que aqueles estrangeiros que se julgavam superiores terminariam por se ver refletidos com uma imagem bem menos lisonjeira do que eles gostariam. Como é difícil (mas não impossível) fingir que tais obras não existem, elas têm de ser reinterpretadas à força, de modo a dizer quase o contrário do que nelas está escrito. Técnica bem conhecida entre juízes, promotores, jornalistas, historiadores e críticos literários, quando devidamente patrocinados.

(*) Rubens Figueiredo é escritor e tradutor

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