Sobre a transição, a outra

Por Valter Pomar (*)

Grande parte da coalizão que venceu as eleições presidenciais está atenta à composição e aos trabalhos da comissão de transição instalada no CCBB.

Entretanto, é preciso atenção também para outras dinâmicas que seguem em curso, por exemplo: o ambiente internacional; a ação dos neofascistas; a chantagem dos neoliberais; e o pano de fundo do processo, a saber, a desindustrialização do país e todos os seus efeitos.

A definição de nossa política nacional e internacional para o período aberto com a vitória eleitoral exige, como ponto de partida, entender que 2023 não é 2003.

A situação internacional segue tempestuosa. A guerra entre Ucrânia e Rússia é parte integrante da guerra estratégica entre Estados Unidos e China. Esta guerra possui dimensões militares, políticas, sociais, econômicas, ambientais e ideológicas. E repercute de diferentes maneiras em cada região do planeta. O governo brasileiro que toma posse no dia 1 de janeiro de 2023 precisará de uma política nacional e internacional que nos permita, no contexto desta guerra global, converter nossa região num dos polos do mundo. E para isso não basta prestígio diplomático, nem tampouco basta ser um grande exportador de primários; para ser um dos polos do mundo, é necessário poder real, o que inclui capacidade científica, tecnológica, industrial.

O que nos remete para a transição. Não aquela sediada no CCBB, mas a outra, a “grande transição” que começou em 1980 e não terminou até hoje.

Em 1980 o Brasil estava a caminho de converter-se numa grande potência industrial.

Então tivemos a crise da dívida externa, a transição conservadora e o fernandismo neoliberal.

Como resultado, o país foi se desindustrializando fortemente.

Aí vieram os governos Lula e Dilma, que tentaram colocar um freio e até reverter este processo de desindustrialização.

Então tivemos o golpe de 2016, os governos “temer” e cavernícola.

E de quase potência industrial viramos subpotência agroexportadora e minério exportadora, além de paraíso do capital financeiro, o país do “agro é pop, deus, tudo”.

Essa “grande transição” afetou tudo: mudou a classe dominante, mudou a classe trabalhadora, mudou o ambiente político e cultural no Brasil.

Foi nesse ambiente que os neoliberais vieram e ainda não foram embora. Foi em reação a esse ambiente que nós ganhamos quatro eleições presidenciais entre 2002 e 2014 e agora novamente. Foi também nesse ambiente que os neofascistas vieram e também ainda não foram embora.

Na eleição de 2022 impusemos uma derrota eleitoral aos neofascistas. Mas é preciso concluir o processo.

Os neofascistas, seus nomeados e seus aliados continuam ocupando espaços importantes na administração federal (como é o caso da presidência do BC); governam estados importantes (como é o caso de RJ, MG e SP); controlam parte importante do Congresso nacional, sem falar de prefeituras por todo lado.

Por isso, não basta a vitória eleitoral de 2022: se faz necessário impor uma derrota política completa aos neofascistas.

Não apenas derrota política, mas também militar: trata-se de desarmar os grupos paramilitares e trata-se de estabelecer outros comandantes, outra cultura e outro padrão de funcionamento às forças armadas e às polícias que foram colonizadas pelo neofacismo.

Não apenas derrota política e militar, mas também derrota cultural: trata-se de construir na maioria da nossa população uma cultura democrática, popular e socialista, ao mesmo tempo nacionalista, antiimperialista e latinoamericanista.

Não apenas derrota política, militar e cultural, mas também institucional: a maneira como atualmente funciona o Estado brasileiro e seus marcos constitucionais não apenas foram incapazes de impedir o surgimento do neofascismo, como também acabaram estimulando a onda neofascista, na exata medida em que promoveram o neoliberalismo.

Neste sentido, não cabe confiar no bonapartismo judicial como alternativa idônea contra o neofascismo. Não haverá superação do neofascismo, enquanto não houver superação do neoliberalismo e, também, uma nova institucionalidade.

Portanto, a grande questão é saber se o governo que tomará posse no dia 1 de janeiro de 2023 será capaz de servir de ponto de partida para uma nova “grande transição”, desta vez de subpotência agro-minério-exportadora para uma verdade potência industrial de novo tipo.

Para que isso ocorra, há muitas batalhas a serem vencidas e muitas decisões a serem tomadas, entre elas a já citada definição de uma política internacional que dobre a aposta na integração regional e nos BRICS; a definição de uma política adequada para enfrentar a hegemonia ora neoliberal, ora neofascista, nas chamadas instituições (STF, BC, Congresso, grande mídia, forças armadas, polícias, organizações do grande empresariado, além das empresas-sem-fé); medidas práticas e imediatas que nos permitam consolidar e ampliar apoios nos setores populares; e a batalha da posse.

Sobre isso, seguem em curso as manifestações da extrema direita, até agora sob o olhar cúmplice dos comandantes de boa parte das forças de segurança e defesa. Não há até agora sinais de que as manifestações possam converter-se em golpe. Mas mesmo não havendo golpe, se nada for feito, a posse não será um passeio.

Neste sentido, ao mesmo tempo que devemos estimular o comparecimento popular à festa do dia 1 de janeiro em Brasília, cabe tomar medidas efetivas de proteção ao deslocamento das caravanas e também à manifestação da posse.

Todas as questões políticas tratadas anteriormente dependem, no limite, de ampliarmos muito os níveis de consciência, organização, mobilização e disposição de luta da classe trabalhadora.

Noutras palavras, a boa política depende da organização e vice-versa.

Cabe, portanto, debater um conjunto de medidas organizativas no plano do Partido dos Trabalhadores, das frentes de esquerda e dos movimentos.

Teremos pela frente uma longa disputa contra o neofascismo e contra o neoliberalismo. E seguiremos enfrentando imensos desafios de natureza orgânica, que dizem respeito a maneira como nos vinculamos com a classe trabalhadora e que, correlatamente, dizem respeito a maneira como nos organizamos.

Afinal, se por um lado o PT mais uma vez reafirmou sua condição de partido de massas, sem o qual não haveria vitória contra o neofascismo; por outro lado também é verdade que em nosso Partido, mas também em todas as organizações de esquerda, há sintomas de degeneração, fadiga de material e desorientação política e ideológica, que se expressam numa contaminação neoliberal e num relaxamento socialdemocrata.

Contra isso, é preciso adotar um conjunto de medidas, inclusive organizativas.

A primeira dessas medidas: estimular a criação de núcleos presenciais do Partido nos locais de trabalho, nos locais de estudo, nos locais de moradia, nos espaços de cultura e lazer. Não basta ter presença nas redes, é preciso ter presença física na vida cotidiana da classe trabalhadora, participar organizada e coletivamente de suas lutas, de suas entidades. Todo militante deve estar ligado a algum organismo de massa e a algum organismo do Partido. É preciso elaborar, implementar e avaliar de forma contínua um plano cotidiano de trabalho junto as nossas bases sociais e eleitorais. Este é um dos caminhos para que tenhamos um partido também de militantes, não apenas um partido de filiados ou de eleitores.

É preciso que as direções funcionem, em âmbito nacional, em todos os estados, municípios e setores de atuação: reuniões periódicas, análise da situação, divisão de tarefas, balanço do realizado. Este método por si só não garante nada. Mas sem ele, nenhum dos problemas será efetivamente resolvido.

É preciso impulsionar exponencialmente nossas atividades de formação e comunicação, de forma a atingir o conjunto da base partidária, social e eleitoral. Se quisermos ampliar a influência do PT, é preciso ter presença institucional, é preciso ter presença nos movimentos sociais, é preciso ter funcionamento adequado da máquina partidária, mas é preciso também e até principalmente ter presença na batalha de ideias. E, como base para isto tudo, é preciso que tenhamos mais capacidade coletiva de formulação acerca dos grandes problemas do mundo, do continente e do Brasil.

Acrescentamos outra medida: é preciso lutar para que o PT retome a contribuição financeira militante. E é preciso, para além desta medida essencialmente política, termos iniciativas que nos permitam dispor de mais recursos, tornando possível ter sedes & centros culturais e outras iniciativas de massa em cada cidade.

Finalmente, é preciso enfrentar caso a caso, com paciência e método, os problemas políticos e organizativos que impedem nosso crescimento e/ou que reduzem nossa influência em vários estados e cidades.

Nosso partido atua num ambiente que geralmente é hostil para as posturas militantes e socialistas; anos de vida eleitoral e institucionalização partidária, as dificuldades dos movimentos sociais, a influência de concepções neoliberais e desenvolvimentistas conservadoras, a perda da memória e da prática da vida coletiva, agravada pela profissionalização de atividades que antes eram realizadas de forma militante, tudo isso junto e misturado só será superado se houver um trabalho de “retificação” do funcionamento do nosso Partido e, no que couber, das demais organizações da esquerda partidária e social com quem devemos buscar um trabalho cada vez mais frentista.

Nossa campanha presidencial de 2022 foi vitoriosa essencialmente porque recebemos o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras pobres, destacadamente as mulheres trabalhadoras, negros e negras com consciência de raça e classe, da intelectualidade democrática, dos que lutam contra o fundamentalismo e contra todo tipo de preconceito, dos povos indígenas e dos quilombolas, da juventude que ocupou um maravilhoso espaço em todas as nossas manifestações, do “nordeste político-cultural” que existe não apenas na região geográfica que chamamos de nordeste, mas no “nordeste” que existe em cada região, estado e cidade de nosso país.

Nosso Partido precisa transformar essa base social e eleitoral que se mobilizou para conquistarmos o governo, em base militante para conquistar o poder. Aí, quem sabe, a outra transição saia do papel.

(*) Valter Pomar é professor da UFABC  e membro do diretório nacional do PT

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