Por Mateus Santos (*)
Creio que alguns leitores desse texto já possuem a informação ou ao menos elementos a mais que indicam quem será o próximo presidente dos EUA nos próximos quatro anos. No exato instante que escrevo, pesquisas continuam a indicar que o candidato democrata, ao menos no voto popular, permanece favorito. No entanto, não quero aqui fazer projeções, pois a disputa eleitoral estadunidense corre o risco de se estender enquanto elemento de tensão política entre as forças concorrentes, numa das conjunturas mais complexas das últimas décadas.
Do que falarei? Quero ocupar esses breves parágrafos com uma reflexão que chamarei de “detalhes que não são meros detalhes”. Em momentos de crise, é comum as sociedades recorrerem à História, na busca de supostas explicações para o seu conjunto de incertezas. Longe de produzir esse tipo de relação, quero aqui me dedicar a analisar algo que pode ter passado despercebido (ou percebido, porém não compreendido) por uma parcela significativa dos telespectadores brasileiros que acompanham um dos maiores telejornais da mídia nacional. Afinal, conforme disse o francês Jean Jacques Becker, citando seu compatriota Marc Bloch, é um dever da História se ocupar não somente da busca pela compreensão de como os acontecimentos ocorreram, mas também dedicar-se à maneira como aqueles foram percebidos.
Assim, na semana de reportagens especiais sobre as eleições estadunidenses, uma me chamou especial atenção. Mesmo não sendo um especialista em História dos EUA, logo senti certa estranheza. Tratou-se de uma discussão sobre o Colégio Eleitoral, seu descompasso com o chamado voto popular nas últimas duas décadas e as polêmicas sobre sua validade no sistema político estadunidense, especialmente diante do fato dos Republicanos terem governado o país três vezes, tendo respaldo popular em apenas uma delas (2004 com George W. Bush). Evidenciando a desproporcionalidade do peso do voto entre Estados mais populosos e outras unidades no interior do país, a chave de análise da reportagem para o susposto “desvio democrático” se encontraria na transformação demográfica do país nos últimos tempos. Disso, não há dúvidas.
Ao recorrer à História, encontra-se aí o problema. De forma pontual, a explicação dada à existência desse sistema residiu no reconhecimento da implantação de uma “barreira”: uma tentativa de impedir com que um suposto governante “populista” com intensões “autoritárias” alcançasse o posto mais alto do sistema político do país. Desta maneira, em nome da Democracia, um recurso antidemocrático sustentaria o suposto combate ao autoritarismo. Ainda que homens como Alexander Hamilton defendesse a necessidade da presidência ser ocupada por homens “de capacidade e virtude”, tal explicação me pareceu incompleta.
O vocabulário da política é perigoso. Conforme pontuou Noberto Bobbio, em seu Dicionário da Política, “A linguagem política é notoriamente ambígua”, possuidora de uma multiplicidade de significados. Termos como populismo, democracia, autoritarismo, Estado, poder, aristocracia e ditadura podem dizer tudo e nada ao mesmo tempo. Afinal, enquanto categorias também históricas, estas sempre estarão submetidos ao crivo das vicissitudes de sociedades situadas em tempos e espaços distintos. Por isso, aquilo que se coloca enquanto uma espécie de problema estrutural constituído a partir da perda de espaço quantitativo da população WASP (A população branca, anglo-saxã e protestante), deve ser compreendido numa perspectiva de longa duração, retirando o monopólio dos chamados “pais fundadores” da República e olhando para atores silenciados neste processo.
Proponho, portanto, que ao invés de falarmos em “populismo” ou “autoritarismo” como características centrais para a compreensão da formação do sistema eleitoral indireto estadunidense, falemos de “escravidão” e “liberdade”, de “cidadania” e de “negação de direitos”. Nesse mesmo jornal, na edição de maio deste ano, analisei os entraves estruturais que impedem com que um Bernie Sanders alcance degraus mais altos na disputa pela Casa Branca, sempre esbarrando nas prévias e no establishment Democrata. Naquela ocasião, buscamos as raízes mais profundas desse problema a partir de uma compreensão que remonta à formação da República Estadunidense.
Para isso, o passo fundamental reside em “desnaturalizar” a construção do Estado nas antigas Treze Colônias Inglesas e compreendê-lo como fruto de um projeto que foi vitorioso diante de uma alternativa política “de baixo para cima”. A esta, seguindo os passos de Peter Linebaugh e Markus Rediker, chamada de “Horda Heterogênea”. Enquanto um ator multiétnico, agregando homens livres (alguns nem tão livres assim, como os marinheiros) e escravizados, a Horda expressou uma verdadeira “força motriz de uma crise revolucionária”, sendo, ao mesmo tempo, construtora e construída por um Atlântico em efervescência. Mais do que uma imensa massa de água, este oceano foi espaço de integração de povos, de migrações forçadas, de opressões e resistências, atos e processos que culminaram com a constituição de trajetórias de luta compartilhadas.
Experiências de rebelião e resistência entre os anos 1760 e 1770, tendo como principais atores escravos e marinheiros, contribuíram ativamente para a instabilidade política que culminaria com a independência das Treze Colônias. Mais do que isso, novas concepções de liberdade, igualdade e direitos foram desenvolvidas a partir de uma práxis coletivizada, influenciando atores políticos naquele território e até mesmo no mundo Atlântico afora. Ao criar condições para uma democracia verdadeiramente democrática, uma liberdade extensiva a sujeitos que não gozavam desse privilégio além da possibilidade de cidadania, um projeto de Revolução Americana de outras cores (para além da branca), de outras classes (para além das elites) e de outros objetivos (além da constituição do Estado Republicano com contornos liberais) se apresentava.
A Horda Heterogênea representou um verdadeiro desafio político aos “pais fundadores”. Mesmo um radicalismo cristalizado na memória do país como o de Thomas Paine, autor de Common Sense, não fez diferente em relação à maioria de seus pares, temendo que a Guerra Política se transformasse em um conflito social capaz de abalar os interesses de comerciantes e latifundiários. Paine, Washington, Addams, Franklin e outros mais, paradoxalmente, fizeram de sua revolução uma contrarrevolução. Seus receios quanto à força e a disposição política de negros, marinheiros e outros personagens fundamentais nessa trajetória, optaram pela conservação de determinadas estruturas (como a escravidão) e por uma saída pelo alto. Num projeto que aos negros representou muito mais continuidade do que ruptura, expresso pela manutenção da escravidão (ainda que se considerem as fugas de milhares de escravizados durante a guerra), aos indígenas o aprofundamento do retrocesso com a expansão das áreas dos antigos colonos e aos pobres a limitação de sua cidadania, uma independência WASP pouco foi revolucionária para aqueles e aquelas que efetivamente contribuíram para o desenvolvimento de uma situação propícia à ruptura política.
A eleição indireta para a escolha do maior representante do país assume assim uma condição de parte integrante de um projeto político vitorioso, “revolucionário” para uns, “contrarrevolucionário” para outros. Se, na concepção de Manuel Castells, a vitória de Donald Trump em 2016 representou uma reação da chamada “América Profunda”, esta mesma América é resultado de um processo político constituidor das estruturas deste Estado, pois, mesmo as contradições eleitorais em determinados contextos não culminaram com uma derrota hegemônica desse segmento que ainda ocupa uma posição destacável na política, na sociedade e em outras esferas.
As expectativas em torno de uma eternização da liberdade, conforme aquelas apontadas por John Adams a Jefferson, encontram-se maculadas desde os primeiros passos estadunidenses enquanto República independente. O Colégio Eleitoral e seu descompasso frente ao voto popular não é um problema dos últimos vinte anos, mas um modelo de acomodação histórica das elites dos Estados Unidos dos “pais fundadores” frente aos outros Estados Unidos, constituído pelos atores silenciados e derrotados neste processo. O “detalhe” histórico da reportagem daquele telejornal deixou de ser mero detalhe ao ser submetido à crítica histórica. Na tentativa de manter a imagem cristalizada na mente de muitos sobre um país bastião da democracia, os EUA construído pelas telinhas não sobrevive aos EUA dos livros de História.
(*) Mateus Santos é historiador e militante do PT
OBS: A REPORTAGEM ANALISADA FOI A SEGUINTE: