Por Wladimir Pomar (*)
As relações entre os Estados Unidos e a China tornaram-se, em especial após o desencadeamento da crise capitalista de 2008, um dos principais focos de instabilidade internacional, com forte incidência sobre as relações de ambos com os demais países e sobre o desenvolvimento mundial.
Por um lado, a China continua praticando, desde o final dos anos 1970, um processo de desenvolvimento econômico e social que combina a orientação estatal com o funcionamento do mercado, incluindo a presença de empresas capitalistas estrangeiras em seu território, e de empresas chinesas em diferentes países do mundo. Inúmeras empresas capitalistas estrangeiras, inclusive multinacionais norte-americanas, foram atraídas para joint ventures com empresas chinesas, estatais e privadas. Logicamente, com a obrigação delas transferirem novas e altas tecnologias para as empresas chinesas, em troca da exploração de sua mão-de-obra mais barata do que a dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos.
Nessas condições, na relação entre os dois países, os Estados Unidos beneficiaram-se da elevação da lucratividade de suas multinacionais que investiram no mercado chinês. Por outro lado, internamente, isso continuou sendo acompanhado do aumento do desemprego no território americano, assim como pela elevação de sua produtividade industrial, e pela transferência de plantas industriais, tanto para a China quanto para outros países de mão de obra mais barata, intensificando a chamada “globalização” do capital.
Paralelamente a esse processo de atração de empresas estrangeiras, a China modernizou sua agricultura, ampliou sua industrialização estatal e privada, e passou a combinar seu desenvolvimento industrial com um forte desenvolvimento científico e tecnológico. Como resultado, ela não só elevou sua produção e multiplicou suas condições de emprego, como retirou muitos milhões de pessoas da pobreza. Em especial, a partir de 2010, apesar da crise mundial capitalista, os chineses intensificaram ainda mais suas condições produtivas e de emprego, ao mesmo tempo que passaram a concorrer fortemente com os países capitalistas no mercado internacional.
Em termos gerais, é evidente que tal desenvolvimento também resultou no crescimento da exploração de grandes segmentos da classe trabalhadora chinesa, seja pelas multinacionais estrangeiras, seja por crescentes segmentos de empresas chinesas, tanto capitalistas quanto estatais. Alguns analistas consideram que tal combinação altamente lucrativa foi a base do florescimento da corrupção e da destruição do poder do trabalho, tanto nos Estados Unidos quanto na China, embora não apontem dados concretos sobre o emprego, nem sobre o combate à corrupção na China.
Na prática, tais analistas desconsideram a lógica dialética e a lógica histórica do desenvolvimento do capital e não tiram ensinamentos, tanto do crítico processo de desenvolvimento dos países capitalistas avançados e do fracassado processo de desenvolvimento socialista soviético, quanto do forte desenvolvimento chinês. Não levam em conta que os Estados Unidos e algumas outras potências industriais, pelo menos desde os anos 1950, ingressaram, crescentemente, no processo crítico de funcionamento do capitalismo.
Isto é, à medida que intensificam sua produtividade, as empresas capitalistas criam uma massa de desempregados, incapazes de absorver sua crescente oferta de mercadorias. Assim, criam um problema civilizacional, reduzindo ao mesmo tempo tanto a geração da mais valia e da taxa média de lucro, essenciais para o próprio desenvolvimento do capital, quanto as condições de vida da crescente massa humana desempregada, incapacitada de usufruir da capacidade produtiva elevada.
Foi a partir dessa evolução que o capital desenvolvido, para resolver a queda de sua lucratividade, obrigou suas grandes empresas a mudarem a antiga política de impedir a industrialização, e a concorrência, dos países atrasados. Na busca incessante por mão de obra mais barata, capaz de produzir uma taxa de mais valia mais elevada, elas passaram a investir na industrialização de países pouco desenvolvidos. A partir dos anos 1970, foi basicamente essa busca incessante de mão de obra mais barata que globalizou o capitalismo.
A China, por seu lado, completou em 1949 sua revolução democrático-popular, que teve a participação de uma parcela importante da burguesia nacional chinesa. E levou em conta não só a predominância feudal na agricultura, mas também o atraso do desenvolvimento capitalista industrial no país, com a existência de enclaves estrangeiros monopolistas, em várias regiões litorâneas, em associação com a chamada “burguesia compradora” chinesa.
Ou seja, a possibilidade de utilização do mercado e da propriedade privada capitalista, sob a orientação do Estado, tendo em vista o fortalecimento industrial, tecnológico e social da China, foi tentado desde o processo revolucionário dos anos 1940 e 1950. No entanto, torpedeado tanto pela voracidade da burguesia nacional chinesa, quanto pelas ameaças bélicas dos Estados Unidos e de outros países capitalistas, a China se viu compelida a tentar outros caminhos que lhe permitissem tanto superar a situação de atraso das condições materiais capitalistas do país, quanto ingressar na transição socialista sem necessitar da participação do tradicional mercado capitalista.
Tais tentativas, porém, esgotaram-se durante os anos 1970, com o fracasso da Revolução Cultural e com os crescentes sinais de esgotamento do estatismo e do planejamento altamente centralizados de tipo soviético. De certo modo retornando às previsões marxistas, os chineses se deram conta de que o estatismo e o planejamento centralizados, antes do país haver alcançado alto grau de desenvolvimento industrial, seriam incapazes, por si sós, de completar as tarefas de desenvolvimento econômico e social não realizadas historicamente pelo capitalismo.
Por outro lado, também consideraram que Marx tinha razão ao deduzir que a contradição básica do desenvolvimento capitalista reside no fato de que sua alta produtividade, ao descartar cada vez mais a necessidade da força de trabalho humano, produz não só uma queda em sua taxa de extração de mais valia e, portanto, em sua taxa de lucro, mas também uma crescente contração da capacidade de circulação das mercadorias, criando uma situação que só se resolve com a superação do próprio capitalismo.
Ou seja, ao gerar um desemprego crescente, em contraste com sua alta produção e sua alta produtividade, mesmo barateando as mercadorias, o capitalismo desenvolvido cria a necessidade histórica, por um lado, de buscar mercados de força de trabalho mais barata e, por outro, de ser superado por um novo sistema social, o socialismo, que garanta a sobrevivência da força de trabalho através de outras atividades humanas. É isso que já havia levado o capitalismo desenvolvido, a partir dos anos 1950 e, mais intensamente, a partir dos anos 1970, a exportar investimentos para países industrialmente atrasados, embora aumentando, desesperadamente, o desemprego industrial em seu próprio território, como ocorreu principalmente nos Estados Unidos.
Na China, como vimos, acontecia justamente o contrário nesse período. Apesar de todos os esforços, seu desenvolvimento industrial e sua capacidade de emprego continuavam relativamente baixos, mantendo fortes tensões sociais, apesar dos resultados positivos da reforma agrária e do aumento da capacidade da produção agrícola. Portanto, comparar como idênticas as condições econômicas e sociais dos Estados Unidos e da China, desde 1980, assim como os objetivos de ambos os países até a crise global de 2008, para encontrar similaridades entre os desenvolvimentos industriais de ambos, e concluir que o processo de exploração capitalista em ambos é da mesma natureza, como procuram fazer alguns críticos do caminho chinês, é uma aberração histórica.
Na verdade, a partir de 2008 o mundo se confrontou com mais uma crise clássica do capitalismo, com as bolhas do sistema financeiro fazendo estragos ainda mais danosos no mercado de trabalho de todo o mundo, inclusive da China. Porém, diferentemente dos países capitalistas, incluindo os Estados Unidos, o governo chinês adotou medidas para evitar que a crise atingisse seu sistema produtivo e seu mercado de trabalho, e injetou estímulos financeiros estatais para manter seu sistema funcionando.
De certo modo, também foram medidas idênticas que ajudaram o mundo a sair da crise. Mas, no caso da China, elas intensificaram ainda mais a atração de investimentos externos, ao mesmo tempo que encorparam os investimentos chineses no exterior. E tornaram evidente que o desenvolvimento industrial da China, a partir desse período, passou a reverberar mais intensamente no mercado internacional.
As empresas chinesas, tanto privadas quanto estatais, assim como as multinacionais estrangeiras lá localizadas, passaram a inundar o mercado mundial com preços extremamente competitivos, causando pressões cada vez maiores sobre a oferta de vagas de trabalho, os salários, e os preços praticados pelas empresas situadas nos Estados Unidos e em outros países capitalistas.
Isso explica, em certa medida, o surgimento de novas correntes políticas anti-China, das quais Trump provavelmente é o representante mais categorizado. Incapazes de enxergar no próprio capitalismo, ou em sua contradição básica de elevação simultânea da produtividade e da supressão acelerada do mercado de trabalho, acentuando o desemprego e a contração na circulação das mercadorias, tais correntes supõem possível trazer de volta para os territórios norte-americano e europeu as empresas que fabricam em países com mão-de-obra mais barata, aí incluída a China.
Portanto, não se acanham em culpar a China por um problema que diz respeito ao sistema capitalista e que só pode ser resolvido com sua substituição por um sistema socialista.
(*) Wladimir Pomar é jornalista e escritor