Por Marcos Jakoby (*)
Yanis Varoufakis e Fernando Haddad
A Fundação Perseu Abramo, a Escola do PT e a Secretaria de Formação Política estão organizando 13 jornadas de debate sobre o socialismo no século 21. Uma ótima iniciativa, uma vez que nos encontramos em uma grande crise do sistema capitalista, comparada por muitos à crise de 1929; e nada mais apropriado do que um partido socialista debater e caracterizar essa crise de maneira aprofundada e apontar uma alternativa sistemática capaz de superá-la em favor das classes trabalhadoras e dos setores populares.
Sendo assim, a primeira jornada realizou-se no dia 18 de março, data que marca os 150 anos da Comuna de Paris. Os expositores foram Fernando Haddad, ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo; Nilma Lino Gomes, ex-ministra da Igualdade Racial; e Yanis Varoufakis, economista e ex-ministro das Finanças da Grécia, com a mediação de Valter Pomar e Alberto Cantalice, integrantes da diretoria da FPA. Aos que se interessarem e ainda não tenham visto a mesa inaugural, é possível assistir aqui https://www.youtube.com/watch?v=38mFyj-jgjE&t=5495s .
A análise de Nilma adota a perspectiva das relações de poder, das lutas emancipatórias, da luta pela igualdade em todas as dimensões e da maneira como essas questões estruturam a luta anticapitalista e da luta pelo socialismo, demonstrando como se constituem os sujeitos dessa luta e de como a classe trabalhadora concreta, realmente existente, é multifacetada e marcada pela diversidade.
Aproveito este texto (dividido em duas partes), porém, para tecer alguns comentários sobre as falas de Varoufakis e Haddad, uma vez que as duas intervenções abordaram, em comum, o socialismo sob o prisma da crise econômica e das vias de desenvolvimento, bem como suscitaram questões ou aspectos dos quais tenho um entendimento diferente e/ou crítico. Ademais, é propósito das próprias jornadas estimular o debate entre a militância petista e de esquerda.
Varoufakis inicia a exposição dizendo que antes de falarmos de socialismo precisamos falar do capitalismo atual, o que parece ser um método acertado. Afinal, não lutamos por construir uma alternativa socialista a partir de um tipo ideal de capitalismo, mas sim a partir de um historicamente e concretamente existente. Ele faz uma caracterização do capitalismo entre o pós-guerra e a crise do início da década de 1970, para então analisar período subsequente até 2008.
A crise de 2008 marca um ponto de inflexão importante no capitalismo, segundo Varoufakis, pois mudou os termos da situação mundial. Trilhões em recursos públicos foram drenados para os bancos, ao mesmo tempo que impunham a austeridade para a maioria da população. Não poderia haver outra consequência senão o aumento da desigualdade social.
Mas ele explica que os recursos públicos destinados aos bancos não são repassados à população, porque nos encontramos numa depressão econômica e a maioria dela não tem meios para arcar com mais dívidas ou de ampliar o seu consumo; então emprestam à grandes empresas, que pela mesma razão também não revertem na ampliação da produção e acabam investindo na bolsa, recomprando suas próprias ações, que se encontram em outras mãos, o que sobrevaloriza estas ações.
Já a China teria ampliado ainda mais o investimento produtivo, aumentando o mercado interno, consumindo assim parte das exportações que deixaram de ser feitas em razão da crise. E destaca que a pandemia somente acentuou aspectos de uma crise que vinha desde 2019.
Mas, para demonstrar como a crise de 2008 impactou a economia mundial, Varoufakis saca uma frase de efeito: “não vivemos mais sob o capitalismo”. No mesmo instante me perguntei qual seria então esse sistema que se parece cada dia mais capitalista em sua essência e mais hegemônico.
Provando que sempre podemos ser surpreendidos, o ex-ministro das finanças da Grécia responde: “vivemos no tecnofeudalismo”. Ele menciona que as grandes empresas de tecnologia, cita como exemplo a Netflix e Amazon, não lucram mais por si, mas que mantém sua saúde financeira por transferência de riquezas através do Estado. Varoufakis não chegou a citar alguma fonte para melhor detalhar essa afirmação – de que essas empresas não têm mais lucro próprio, a não ser contando com recursos do Estado.
Mas o que Varoufakis não parece levar em conta, é que esses recursos advém de uma sociedade onde a maioria da força de trabalho está submetida a relações de trabalho assalariadas e ao capital. E que parte da riqueza produzida pelas classes trabalhadoras é que forma os fundos públicos dos estados e que depois são repassados, por diversas formas e serviços, aos capitalistas ou ao restante da sociedade.
No entanto, convém lembrar que a própria Amazon tem mais de 1 milhão e 300 mil funcionários, que são trabalhadores assalariados e que vivenciaram, durante a pandemia, a intensificação da exploração de sua força de trabalho. Paralelo a isso, os trabalhadores buscam se organizar, inclusive sindicalmente, para assegurar melhores condições de trabalho. Essas relações, a meu ver, são tipicamente relações capitalistas. O mesmo acontece com outras empresas de tecnologia.
O termo tecnofeudalismo foi cunhado por Cédric Duran, economista francês, que argumenta que o domínio das mega-plataformas criou dependência e controle muito mais graves. Varoufakis menciona que ao entrar em um site das gigantes de tecnologia, estamos entrando num território que é propriedade dessas empresas. Compara com um bairro, onde tudo o que existisse ali fosse propriedade de uma empresa. Lembrei-me das vilas operárias construídas pelas empresas nos primórdios da industrialização brasileira, onde as essas empresas construíam bairros com vistas a ter disponibilidade de força de trabalho (e proximidade com a unidade produtiva), discipliná-la e ter um maior controle e influência sobre ela, e ainda se apresentando como uma empresa filantrópica, preocupada com o bem-estar social de seus funcionários, embora os remunerassem com baixos salários e resistissem em cumprir e/ou ampliar direitos trabalhistas.
Por outro lado, Varoufakis deve saber muito bem, mas parece impressionado com a crise de 2008 que deixa de colocar em perspectiva histórica, que os capitalistas de tempos em tempos, ou mesmo sistematicamente, recebem recursos estatais que ajudam a manter sua lucratividade e a não “quebrar” nos momentos de crise. Talvez o que tenha chamado a atenção de Varoufakis, é o volume desses recursos e o período mais prolongado no estágio atual. Mas isso não denuncia a própria dimensão e profundidade da crise capitalista?
Creio que afirmações do tipo de que “não vivemos mais sob o capitalismo” ou de que vivemos uma era do “tecnofeudalismo”, mais confundem do que ajudam a compreender a situação atual. O capitalismo nunca foi tão hegemônico, a mercantilização dos mais diversos aspectos da vida social nunca foi tão avassaladora; e por isso, talvez, que a crise gere tantos impactos objetivos e subjetivos, a tal ponto de gerar muita confusão, inclusive entre os anticapitalistas.
Seja como for, que caracterizemos a crise, Varoufakis questiona o que fazermos. Argumenta que não pode ser uma mera redistribuição de renda dos poucos para os muitos, que é importante, mas que seria muito fácil de reverter. Nas palavras do economista grego: “Defendo que é fundamental redistribuirmos o direito à propriedade sobre as riquezas, empresas, terras, todos os fatores de produção que podem produzir a riqueza. Que a mera redistribuição de renda é superficial e não pode durar muito tempo. O socialismo precisa significar novamente a propriedade comum dos meios de produção, não pode ser simplesmente a redistribuição usando o sistema fiscal. Algumas migalhas da mesa dos ricos. Eu não sou contra, mas isso não é socialismo. Não é uma perspectiva sustentável de longo prazo. A questão é como chegarmos lá. A meu ver precisamos passar por duas fases.”
O primeiro passo seria um new deal verde e internacional. Um programa amplo de investimentos com preocupação ambiental, pois do contrário, segundo Varoufakis, não existirá nada pra socializar e as condições de vida estarão muito deterioradas. E menciona que antes das transformações socialistas, precisamos fazer isso. Ele tateia um caminho e imagina que se elegêssemos governos progressistas e de esquerda, e tivéssemos representantes no Banco Mundial, poderíamos colocá-lo a serviço dessa orientação. Em resumo, o que ele propõe é um keynesianismo internacional verde, internacional, onde alguns dos agentes seriam os organismos financeiros reformados e governos progressistas.
Então, ele passa para o que seria a segunda fase, dessa etapa pré-socialista, pois a primeira fase seria insuficiente, porque não redistribui a renda e a riqueza da maneira que é necessário. O problema do keynesianismo verde, segundo Varoufakis, mesmo que ele tenha êxito, é que rapidamente os financistas, os oligarcas, as empresas, vão encontrar maneiras de derrubá-lo e nos levar de volta para o neoliberalismo. Foi o que eles fizeram nos anos 1970, arremata.
O que seria então necessário? Erradicarmos dois mercados. O primeiro deles, o mercado de trabalho. Isso se daria fazendo com a aprovação de uma legislação onde cada funcionário de uma determinada empresa teria uma ação – que não poderia ser negociada – e o direito a voto nas decisões da respectiva empresa. Cada empresa seria uma unidade cooperativada. E não teríamos mais bolsa de valores porque não teríamos mais ações comercializáveis.
O segundo mercado a ser abolido seria o do dinheiro, segundo ele, em outras palavras, bancos privados. Não seriam proibidos, mas se extinguiriam. De que forma? Se os bancos centrais abrissem uma conta bancária gratuita para cada residente em seus respectivos países. As pessoas não teriam razão de querer buscar outro banco. Além disso, mais uma renda básica seria depositada em cada uma dessas contas.
Cumprida essas duas fases – a reconstrução das condições objetivas com um new deal verde e internacional e a abolição dos mercados de dinheiro e trabalho – passaríamos então a etapa de construção socialista.
Não entraremos aqui na seara de como isso seria possível em nível global ou de sua aplicabilidade. Mas essas medidas exigem uma força política, social e cultural gigantescas, que nos perguntamos porque estas medidas não podem fazer parte de um projeto de transição socialista, e não de um projeto histórico que vê a luta pela superação do capitalismo em duas etapas distintas. Afinal a “abolição dos mercados de dinheiro e de trabalho” são medidas passíveis de serem conquistadas sem que a classe trabalhadora se transforme em classe dirigente do Estado?
Varoufakis parece combinar medidas programáticas radicais com uma estratégia política “moderada”. Onde governos, instituições multilaterais reformadas e uma nova legislação seriam capazes de dar conta destas tarefas, preparando as condições objetivas e subjetivas para a luta socialista.
Lembrando que Varoufakis foi ministro do governo de Alexis Tsipras, do Syriza, em 2015, e pediu demissão quando o governo estava dando sinais claros de que iria capitular frente à troika – o trio formado por Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu (BCE). Por outro lado, Varoufakis não construiu e não aconselhava um caminho de ruptura, advogava a permanência na zona do euro, mas sem adotar a política de austeridade que estava sendo imposta à Grécia pela troika. Ou seja, do ponto de vista político ele se recusou a ser um instrumento do ajuste neoliberal, mas ao mesmo tempo ele estava prisioneiro da mesma circunstância do Tsipras, a de não conseguir pensar uma estratégia política de ruptura com a armadura fianceira-política-econômica representada pela União Europeia, comandada pela Alemanha.
A exposição realizada por ele na Jornada também parece demonstrar esse descompasso, de medidas aparentemente radicais, mas acanhadas no plano político-estratégico, incapaz de envolver rupturas que tenham potencial de colocar na ordem do dia a construção do socialismo. Esse roteiro “etapista” e por “dentro” da ordem, mas combinado com medidas que se chocam frontalmente com capitalismo realmente existente, tem limites que vão ficando cada vez mais evidentes com a crescente polarização social e política no mundo. Enfim, ao meu juízo, será preciso mais do que isso para construirmos o socialismo do século XXI.
(*) Marcos Jakoby é professor e militante do PT