A feminização da pobreza e a pandemia da COVID-19

Por Clarice de Freitas Silva Ávila (*)

O alto índice de mortalidade entre homens negros e jovens pode ser um motivo importante para explicar o acréscimo do número de mulheres na sociedade e, consequentemente, o número de mães como chefes de seus lares, afirma AVILA (2011). Essas mulheres são obrigadas a assumirem empregos de baixa remuneração e de menor status social e, involuntariamente, influenciam no processo de empobrecimento econômico. Quase dez anos depois dessa pesquisa, o retrato do Brasil segue rumando para o que a autora identificou: a pobreza é feminina e negra e a pandemia reforça essa realidade. É verdade que o vírus não escolheu classe, gênero e raça. Mas se levarmos em conta as probabilidades da contaminação, junto às mazelas do capitalismo, será fácil descobrir que as desigualdades e o racismo configuraram elementos adstritos à COVID-19.

Todos nós ouvimos governantes dizerem que a economia não pode parar. No Brasil, o presidente outorga esforços nesse sentido. Se a economia não pode parar, que tal sacrificarmos a vida? Tomaz Konicz, em artigo traduzido no Blog da Boitempo, traz uma reflexão sobre o sacrifício da vida aventado nesses discursos. Recentemente funcionários da Paraíba foram obrigados a se ajoelharem na frente dos comércios pedindo a retomada dos trabalhos. Os empresários, que rechaçam todos os dias os empregados, pagam baixos salários e exploram a mão de obra, agora os vilipendiam. Não podemos esquecer que, no Dia do Trabalhador, Jair Bolsonaro foi capaz de dizer que seu desejo era o de que todos os trabalhadores voltassem ao trabalho, mas que essa decisão não era sua (referindo-se aos governadores). Konicz conclui em seu artigo que “o capital é o fim em si mesmo de um movimento de valorização sem limites. Um fim em si mesmo ao qual tudo pode ser sacrificado”.

A vida de Sandra Maria Aparecida Ribeiro nos comprova essa reflexão e nos coloca em confronto com a lógica perversa desse capitalismo. Sandra, mulher negra, chefe de família, 45 anos, mantenedora de dois filhos menores de idade, responsável pelos pais idosos de saúde frágil, saiu para trabalhar como fiscal de um supermercado na Região Metropolitana de Curitiba e foi brutalmente assassinada porque tentou conter um cliente que insistia em adentrar ao estabelecimento sem o uso obrigatório da máscara. O empresário assassino disparou sua arma sobre uma mulher no exercício legítimo da sua função. Os colegas de trabalho de Sandra não puderam tirar um dia de luto porque o supermercado precisou funcionar normalmente. A economia não pode parar!

O Relatório “Mulher no centro da luta contra a crise da COVID-19”, divulgado pela ONU Mulheres, conclui que a pandemia afeta mais às mulheres porque elas representam 70% dos profissionais da saúde do mundo. São esses corpos que se expõem diretamente ao risco do contágio. Seguem nessa estimativa as domésticas e trabalhadoras do setor informal.

Com o isolamento, os índices de violência doméstica e feminicídio têm aumentado no mundo todo, porque as mulheres estão mais expostas e mais próximas do parceiro ou do parente agressor e, paradoxalmente, os mecanismos de denúncia e os organismos de atendimentos às mulheres vítimas de violência estão ainda mais debilitados, a ponto de a OMS orientar a todos os países para que esses serviços sejam tratados como essenciais.

Entre os idosos, há mais mulheres vivendo sozinhas e são delas os rendimentos mais baixos. O isolamento fará com que o trabalho não remunerado, entre as mulheres, triplique. Antes da pandemia, esse número já era três vezes maior do que o dos homens. O setor têxtil emprega 3/4 (três quartos) de mulheres e hoje é considerado um dos setores mais afetados pela pandemia, portanto contabilizará mais desemprego.

Após o golpe contra a única presidenta eleita no Brasil e com a eleição de Bolsonaro e de muitos governos nos Estados, vivemos um retrocesso sem precedentes na luta pelo reconhecimento de que existem desigualdades entre homens e mulheres e entre negros e brancos. As políticas foram esvaziadas com fechamentos de organismos especializados e cortes de recursos e investimentos. Não obstante, até o momento, as políticas de combate à COVID-19 não se apresentaram eficazes e a curva da doença está em ascensão.

Bolsonaro desdenha da doença e prioriza a economia destoando frontalmente de vários líderes mundiais. Com seu discurso desrespeitoso, em todos os sentidos, e com o propósito de não valorizar a vida, distancia o Brasil de políticas de combate à pandemia como as realizadas em países como Alemanha, Nova Zelândia, Taiwan, Finlândia e Islândia – países de governos liderados por mulheres com ações exitosas que contribuem efetivamente no combate à COVID-19.  Em crises como a que estamos vivendo, podem surgir ótimas oportunidades, para governantes e sociedade civil principalmente, de colocarem em prática a visão solidária e de equidade que, há décadas, busca-se construir para as mulheres.

(*) Clarice de Freitas Silva Ávila é militante do PT-RJ e dirigente do Sepe.

 

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