Forças Armadas: fantasia e realidade em Brasânia

Por Marcos Jakoby (*)

Com o advento do governo Bolsonaro, a questão militar tem ganhado muita relevância nas preocupações e nos debates sobre a situação política do país. O fato de Bolsonaro e seu vice serem militares e cultivarem relações de vários tipos com a caserna, o fato de que o cavernícola fale em “minhas Forças Armadas”, o fato de que os militares ocupem milhares de postos no governo federal – a ponto de muitos o considerarem um governo militar -, reforçam, para muitos, a percepção de “politização” das Forças Armadas, ligando os alertas para os riscos de um autogolpe e/ou um “fechamento do regime”.

Em novembro de 2020, o então comandante do Exército, general Edson Pujol, diante de uma bravata de Bolsonaro utilizando-se das Foças Armadas, disse que “não somos instituição de governo, não temos partido. Nosso partido é o Brasil. Independente de mudanças ou permanências de determinado governo por um período longo, as Forças Armadas cuidam do país, da nação. Elas são instituições de Estado, permanente. Não mudamos a cada 4 anos a nossa maneira de pensar e como cumprir nossas missões”.

Acrescento: realmente, as Forças Armadas brasileiras não mudam a cada 4 anos. Diria que pelos menos desde 1964 que elas não mudam. Porém, a manifestação foi o suficiente para que muitas pessoas acreditassem nas intenções democráticas e de que elas não serviriam aos propósitos autoritários do governo Bolsonaro. No entanto, lá estavam as Forças Armadas para uma “parada militar” em agosto deste ano, em que a sua cúpula topou (ou propôs) servir nitidamente de instrumento de pressão sobre o Congresso acerca de uma votação que tratava do voto impresso, com nítidos propósitos de tumultuar as próximas eleições e para gerar pretextos golpistas.

Ainda em março deste ano, diante da demissão do ministro da Defesa, seguida da troca dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, o ex-ministro da Defesa, Jacques Wagner, alegou que isso deveu-se ao fato deles “não compactuarem com a sanha golpista do Planalto”, o que “diz muita coisa. Reforça o caráter de Estado que caracteriza essa instituição”. Tratou-se de uma leitura curiosa de Wagner, pois os quatro, de alguma forma ou outra, contribuíram para os golpes desde 2016 (contra Dilma, contra Lula, contra as eleições de 2018, contra os direitos sociais, contra a soberania nacional etc.).

Nesta semana, o The Intercept Brasil publicou reportagem (aqui ), acompanhada de documentos oficiais, onde relata, com detalhes, um treinamento “anti-esquerda” do Exército.  Uma simulação, feita em 2020, revela que a elite do Exército, as Forças Especiais, estão sendo treinadas para combater a esquerda e os movimentos sociais populares.

Segundo o Intercept, o texto de apresentação do treinamento militar descrevia um “Exército de Libertação do Povo Brasaniano”, o ELPB, “criado a partir de um projeto de partido político de caráter marxista e com uma organização armada clandestina, nascido de uma dissidência do Partido dos Operários e que recruta e treina militantes do MLT” num país fictício chamado Brasânia.”

Como afirma a reportagem “as referências, óbvias, são ao Exército de Libertação Nacional da Colômbia, ao Partido dos Trabalhadores e ao MST. Existe, também, um movimento que luta pela reforma agrária chamado Movimento de Luta pela Terra, fundado na década de 1990 na Bahia.” Há inúmeras outras referências óbvias à esquerda e à luta popular.

Não entraremos aqui na discussão do grau de autonomia das Forças Armadas frente ao governo Bolsonaro, ou do quanto elas estão implicadas nesse governo genocida. De qualquer forma, é cristalino que a cúpula militar é cúmplice e agente da destruição em curso em nosso país. Destruição para o povo, porque os ricos continuam muito bem.

A questão que julgamos importante destacar é que não existe somente uma “politização” das Forças Armadas por parte do bolsonarismo. Por isso, não estamos entre aqueles que se sentem mais tranquilos quando a sua cúpula ou algum general afirma que o Exército, a Aeronáutica são “instituições não de governo, mas de Estado”.

Por uma razão muito simples. Estas instituições, realmente existentes, defendem um Estado antipopular, antidemocrático e antinacional. Por isso, coincidem com o governo Bolsonaro, com a extrema-direita, com a direita, com o neoliberalismo, com a subordinação ao EUA, com os golpes e ditaduras que marcam história republicana no Brasil há muitas décadas.

O episódio retratado na reportagem não é um raio em céu azul quando se trata do combate, simulado ou real, das Forças Armadas à esquerda e ao povo. A infiltração e a vigilância de movimentos sociais, como no caso do coronel do Exército, conhecido como “Balta Nunes”, nos protestos contra Temer em 2016, são uma constante.  Trata-se da perpetuação da guerra ao “inimigo interno”, tão difundida pela Doutrina de Segurança Nacional durante a Ditadura Militar.

E esse “inimigo interno” são os movimentos sociais, o sindicalismo, os partidos de esquerda, a população negra e periférica, os trabalhadores e os pobres em geral, especialmente aqueles que se organizam para lutar e mudar as condições do país.

Jeferson Miola escreveu um texto interessante sob o treinamento das Forças Especiais em “Brasânia” (clique aqui ) . O seu último parágrafo diz que “os militares só formalmente estão subordinados ao comando do poder civil. Eles não se submetem a controles públicos, gerenciam com obscuridade [e corrupção] um orçamento anual de mais de R$ 100 bilhões e pior de tudo: atuam como facção partidária e milícia armada que corrompe a democracia, afronta o Estado de Direito e é adestrado para aniquilar segmentos do próprio povo brasileiro.”

Pondero, no entanto, que exatamente o atual “Estado de Direito” que cria muitos dos mecanismos e das condições para que os militares atuem para “aniquilar segmentos do próprio povo”.

Lembremos do tão debatido Artigo 142 da Constituição Federal, onde se lê que: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Por mais que se possam fazer leituras jurídicas distintas, a questão é que “a garantia da lei e da ordem” está lá e não por acaso os militares fizeram tanta pressão, durante a Constituinte, para que a menção estivesse presente no artigo. É ela, por exemplo, que fornece o principal estatuto legal para as Operações de Garantia da Lei e da Ordem, que contribuem para a militarização da segurança pública e para a cultura do “inimigo interno”.

É por meio do atual “Estado de Direito” que se viabiliza que “eles tenham justiça própria, previdência própria, escolas próprias, currículos próprios, regulamentos próprios, leis próprias, ética própria, pensões vitalícias para filhas, privilégios e mais regalias intrínsecas à vida que levam – à parte e acima do controle da sociedade civil.”

Ademais, o atual “Estado de Direito” permitiu que as Forças Armadas pudessem sair intactas do processo de redemocratização, de modo que os militares que cometeram crimes passaram ilesos e de modo que a sua estrutura e a sua “doutrina” não fossem afetadas.

Portanto, a meu ver, a simples defesa do atual “Estado de Direito” não vai resolver os nossos problemas de fundo. Serão necessário reformas nestas instituições, para que se altere a sua lógica e a coerência interna, de maneira que possamos ver novamente, ao menos, uma corrente democrática, nacional-popular, de esquerda, capaz de disputar as Forças Armadas para cumprir um papel histórico positivo.

Encerro com um episódio:  nos meses de outubro e novembro deste ano, o Senado discutiu a inscrição de João Cândido, o Almirante Negro, na “lista dos Heróis e Heroínas do Povo Brasileiro”.

O texto enfrentou dura resistência da Marinha, que até hoje se recusa, mesmo depois de mais de cem anos da Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, a considerar como legítimo o movimento que aboliu os castigos físicos na Armada.  A nota da Marinha afirmava que que o movimento não pode ser avaliado como “um ato de bravura” nem de “caráter humanitário” porque todos tiveram a sua “culpa e [suas] omissões”.

Essas são as Forças Armadas brasileiras enquanto instituições de Estado, efetivamente existentes, não algumas fantasias de que elas hoje seriam totalmente “profissionalizadas” e de que não teriam mais nenhum pendor autoritário ou golpista; isso, realmente, não fica no Brasil.

(*) Marcos Jakoby é professor e militante petista

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