Tarso, Xandão e a reconciliação

Por Valter Pomar (*)

Alguém já disse que nossa memória é curta.

Pensei nisso ao reler os textos escritos pelo Reinaldo Azevedo, na Veja, atacando o PT.

Penso nisso, também, quando vejo muita gente boa vibrando com os ministros do Supremo, especialmente com Xandão, em particular depois da multa aplicada ao PL.

Até aí, compreensível.

Difícil mesmo é quando passam da vibração para a “teorização”.

Foi o que, assim me parece, tentou fazer o companheiro Tarso Genro, em artigo publicado recentemente no Sul 21.

O texto citado está aqui: Xandão é o ‘Filho do Século’ do Estado de Direito (por Tarso Genro) – Sul 21

Nele Tarso afirma que “muitas pessoas de dentro das instituições do Estado – aqui quero me referir a estas sem compará-las com aquelas que na sociedade civil e nos partidos lutaram heroicamente para sustar o avanço do fascismo – merecerão serem lembradas ao longo da nossa história por não desistirem da democracia, num momento de avanço do fascismo em nosso país”.

Realmente, é melhor não comparar, pois se compararmos será inevitável lembrar que “muitas pessoas de dentro das instituições” merecerão ser lembradas por terem traído as liberdades democráticas e terem contribuído para o avanço do fascismo.

Inclusive vários ministros do STF.

Tarso também afirma que Bolsonaro “se apressou em montar estruturas paralelas junto ao crime organizado e armar civis para disputar o monopólio da força e das armas com as próprias instituições militares. No episódio atual, portanto, Bolsonaro – o “mito” – tentou formar o “partido militar” depois da eleição, buscando cooptar centenas de militares para cargos de Governo, mas sem conseguir dominar a caserna”.

Não foram centenas, mas milhares de nomeados para cargos.

Não houve disputa do monopólio da violência, porque as forças armadas apoiaram o armamento em massa dos setores ricos.

E a caserna não foi dominada, pelo simples motivo de que é a caserna (ou melhor, o alto comando da caserna) quem domina. Bolsonaro é “apenas” uma das muitas expressões do partido militar.

Tarso diz que Bolsonaro é um “um político medíocre” que pretendia fazer “uma corrosão do sistema “por dentro” das instituições. E ele o faz com o apoio majoritário do Congresso e ergue o fascismo – sem o apoio expresso ou o estímulo das instituições militares – à condição de uma alternativa política concreta, quase consagrada num processo eleitoral de reeleição, no qual ele lutou até o fim para fraudar”.

Sem o apoio expresso dos militares?

Sem o estímulo dos militares?

A verdade é outra: a cúpula das forças armadas foi um dos principais agentes do golpe de 2016 e do que veio depois.

E foi nas forças armadas que se constituiu o núcleo duro das concepções bolsonaristas (ou seja, do atual “fascismo” à brasileira).

Por quais motivos Tarso subestima o papel dos militares na ascensão do bolsonarismo?

Um dos motivos é óbvio: fingindo que eles são menos perigosos do que são, fica mais fácil convencer as pessoas de que devemos (re)conciliar com eles.

Por exemplo, nomeando um ministro da Defesa “escolhido” pelos milicos.

É esta lógica – fazer de Bolsonaro um paraquedista e poupando a responsabilidade das instituições – que leva Tarso a afirmar que o ascenso de Mussolini teria sido o “ascenso da vontade contra a força das instituições”.

A verdade é outra, como demonstra o mesmo Tarso Genro nas linhas seguintes de seu texto, ao falar dos “namoros dos velhos políticos liberais italianos com o autoritarismo” e da “cínica postura dos monárquicos”.

Na Itália fascista, na Alemanha nazista e no Brasil do cavernícola, as “instituições” se dividiram, mas predominou a conciliação com a extrema-direita.

Mais adiante, Tarso afirma o seguinte:

O filho do século, no protofascismo brasileiro, todavia, não estava próximo às estruturas do Estado, nos lugares onde se reproduzia o golpismo bolsonárico (Congresso e Executivo), nem na sociedade civil, que as lideranças fascistas tentavam se organizar com dinheiro e com as promessas utópicas da volta ao passado medieval. Nem era um partido de oposição, nem um mito, nem um grupo; nem era um político de vulto e de responsabilidade como Lula. O filho do século não estava fascinado em observar diretamente o “fascismo societal” em curso, pois era “por dentro do Estado”, submetendo Executivo e as representações do Parlamento que o golpe poderia prosperar. Não tremeu de medo nem vacilou: usou e usa capa preta e não tem vínculos ideológicos com a esquerda. “Xandão”, sem se impressionar com os blefes golpistas e suas ameaças de morte, é o nosso Filho do Século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini, descrito por Scuratti: sua arma foi e é a Constituição e sua vontade corajosa dentro do STF, foi a maior de todas, desde que a Constituição de 88 foi proclamada por Ulysses Guimarães, que tinha ”nojo da ditadura” e de todos os ditadores”.

A construção dos raciocínios e os elogios a Xandão chegam a ser engraçados, de tão tortuosos e exagerados. Por exemplo: sua arma “foi e é a Constituição”, omitindo que o procedimento de Xandão foi e é “customizado”.

Mas o mais interessante é o duplo sentido da afirmação segundo a qual Xandão seria “o nosso Filho do Século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini”.

Nesta passagem de seu texto, se é que entendi o que ele quis dizer, Tarso atirou no que viu e acertou no que não viu. Ou no que esqueceu de ter visto, pois ontem mesmo Moro e antes dele Barbosa já haviam feito testes para o personagem que – segundo Tarso – Xandão estaria interpretando: o do bonapartista judicial.

Tarso encerra dizendo que “provisoriamente, a democracia venceu, mas agora temos que vencer o ódio que os fascistas disseminaram como uma peste medieval, cuja vacina – desdobrada no tempo – deve ser mais democracia, mais comida na mesa, mais educação, liberdade e reconciliação com um futuro de segurança e paz: sem armas e sem gangues de assassinos daqueles “filhos do século” que cultuam a morte e a violência infinita”.

Neste palavrório, o termo chave é “reconciliação”.

E, ao contrário do que diz Tarso, a verdade é a seguinte: se a “reconciliação” vencer, se a conciliação vencer novamente, se a ilusão nas “instituições” seguir predominante em certas cabeças, o “fascismo” também terá vencido, pouco importando que artista encarnará o “filho do século”.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT

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